segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O alvo

A festa transcorria alegremente, minhas amigas já estavam na pista de dança, prontas para soltar o grito de “Feliz Ano Novo!”. Eu continuava sentada solitariamente na minha mesa. Nenhum dos rapazes se aproximava. Nenhum me convidava para a pista de dança. Embora uma das minhas amigas me chamasse para a pista, eu não queria estar entre ela e o namorado. Muito ajuda quem não atrapalha. Célia, Lúcia, Cláudia, todas foram convidadas para a pista de dança. Namorados ou colegas da firma as escolheram e me descartaram. Eu até gostava do Marcos, mas ele estava lá, quieto e arredio, do outro lado do amplo salão de festas. Ele era tímido e não se aproximava mesmo. O cabelo arrumado no capricho, quase duas horas no salão, maquiagem, perfume, anéis e brincos, tudo para ficar bonita e produzida e nada! Lá estava eu, solitária, na mesa, bebericando vinho. Até vesti o tradicional, roupa branca, minha blusa branca, na esperança de que o ano se iniciasse mais alegre, que cobrisse um pouco da tristeza do ano anterior. Como a vida é um bocado complicada quando nos encontramos sozinhas e largadas numa festa. Ainda mais numa festa de fim de ano... 
Percebi que o Marcos também estava sozinho e pensei porque o idiota não se aproximava. Eu já tinha sorrido, balançado a cabeça num cumprimento tosco e nada. Ele era bonito e seria uma companhia agradável para uma noite em que, no meio de tanta gente, eu me sentia solitária. Eu até sentia uma pequena atração por ele, mas, esperava que ele desse o primeiro passo.  Mas, os homens hoje em dia ou são ousados demais ou ficam igual o Marcos, olhando e desviando os olhos igual um pateta. No momento que nossos olhares se cruzaram novamente, dei o meu melhor sorriso e levantei a taça de vinho num brinde mudo. Ele também sorriu e levantou a taça de vinho. Mas, não veio até minha mesa. Que idiota!! Cruzei e descruzei as pernas, sorri, joguei o cabelo para trás, lancei olhares lânguidos e nada. Voltei minha atenção para o rapaz da banda que se apresentava, um loiro alto que cantava com paixão. Já estava pensando que era melhor mudar o foco para o loiro quando percebi, pelo canto dos olhos, que o Marcos, enfim, se aproximava.  Ele veio com a taça de vinho quase transbordando, meio temeroso, mas com um sorriso nos lábios. Ensaiei um sorriso receptivo, desanuviado, mas quando ele contornou a mesa, tropeçou e desequilibrado, derramou meia taça de vinho na minha blusa branca. Quase solto um palavrão! Quase o chamo de filho da... Meu Deus!! Meus olhos fuzilaram o idiota do Marcos que, sem reação, só gaguejava:
- Des.. des.. descul... cul ... pe...
Não acredito! Minha blusa branca mostrava a mancha enorme do vinho. Parecia um alvo de tiro. Minha vontade era pegar minha taça e jogar o resto de vinho no idiota do Marcos, mas me contive. Ele gaguejou “desculpe” novamente e se afastou. Sumiu do outro lado da pista e, realmente, era o melhor a fazer, antes que eu tomasse uma atitude drástica. Com a blusa branca em forma de alvo, já estava pensando em como ir embora da festa sem passar mais raiva. Como eu podia acreditar que tinha interesse num idiota tão desastrado? Minhas amigas sequer perceberam o que aconteceu e continuavam felizes e dançando com seus pares. O vinho formou um belo alvo na minha blusa branca. A vontade era sumir, mas apenas deslizei um pouco mais na cadeira, escondendo a bendita mancha de vinho. As horas voavam. Trinta minutos após o desastrado ter estragado minha noite, o pessoal já se animava, preparando a contagem regressiva.
O idiota do Marcos está voltando novamente. Não tem perdão. Além de tornar minha blusa branca um alvo, tinha se afastado sem sequer se desculpar normalmente. Aquele desculpe gaguejado horrivelmente, não era desculpa. Pelo menos desta vez, para evitar outro desastre, ele chegava sem copo de vinho. Trazia um embrulho nas mãos e falou, sem gaguejar:
- Isto é para perdoar meu estilo um pouco desajeitado...
Um pouco? Quase o questionei, mas achei melhor ficar calada.
- A atendente da loja insistiu para embrulhar em papel de presente, embora o Natal já seja passado. Vale a intenção. Espero que me perdoe.
Abri o embrulho e me deparei com uma linda blusa branca. Parecida com a que eu usava, mas com a gola rendada. Instintivamente olhei a etiqueta e o tamanho. M. Que bom, ele não me considerava nem muito magra, nem gorda. 
- Vá ao banheiro e troque de blusa. Eu te aguardo aqui mesmo, sem nenhum copo de vinho nas mãos.
De repente eu estava sorrindo, feliz. Não tinha como apagar da mente o tanto de vezes que chamei o Marcos de idiota, mas, agora ele subiu no meu conceito. Vesti a blusa com alegria e agradeci ao regime severo de meses atrás. A blusa parecia sob medida. Pelo menos o bom gosto e avaliação de tamanho do Marcos eram bastante satisfatórios.  Aproveitei para retocar a maquiagem, pentear o cabelo, treinar um olhar sedutor e um sorriso cativante. Dessa vez ele merecia. Voltei e parei diante dele, do outro lado da mesa, como quem pergunta “como estou?”. Marcos sorriu:
- Eu sabia que a blusa combinaria com você e sua beleza.  – ele levantou as mãos vazias e disse – Pode se aproximar; não estou com copo de vinho nas mãos.
O pessoal começou a contagem:
- 10... 9... 8... 7...
Dei a volta à mesa e me aproximei dele. Ele pegou minhas mãos.
- Se você não se importar, gostaria de ser sua companhia neste momento mágico.
- 6... 5... 4...
- Podemos ir para a pista de dança, ou simplesmente sentar e conversar porque, como eu já disse e você já percebeu, sou um bocado atrapalhado...
Suas mãos, segurando minhas mãos, transmitiam a magia do momento, a alegria da companhia.
- 3... 2... 1...
- Feliz Ano Novo!!

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O ébrio

Eu sou muito paciente com os bêbados. Às vezes, no ponto do ônibus, tarde da noite, percebo bêbados esperando o ônibus como eu, e fico triste, pois sei que na casa deles, mãe ou esposa, ficarão tristes ao vê-los chegar daquela maneira. Houve uma vez que um estava recostado na parede, do meu lado. Começou a deslizar para o lado, quase caindo. Resolveu sentar. Falou alguma coisa comigo, provavelmente sobre o ônibus que ele ia pegar. Eu disse o número do meu ônibus e perguntei se ele ia pegar este também. Ele negou e falou o número do ônibus dele, que infelizmente, eu não entendi. O meu ônibus veio e ele ficou lá, já dormindo, caído de lado. São situações complicadas do nosso viver.

Quando solteiro, eu gostava de tomar um chope nos botecos do centro. Claro que conversava, com dificuldade, com alguns dos frequentadores do bar. Principalmente os que "pegavam o jeito" de conversar comigo, que é um pouco mais devagar, mas quase normal e movimentando bem os lábios. Ocorre que, às vezes, nem adianta eu falar que sou surdo. Tem alguns bêbados que "não ouvem" o que eu digo.
Estou tomando meu chope, o cara chega e me dá um abraço:
- Zé Luiz, como vai? - a voz arrastada, está muito bêbado mesmo. Porém, eu leio perfeitamente o que ele disse e respondo:
- Colega, eu não sou o Zé Luiz.
- Como não? Brincamos muito lá em Venda Nova, quando sua falecida mãe ia visitar a minha.
- Minha mãe ainda está viva.
- Caramba! Me disseram que ela tinha morrido no ano passado! Que boa notícia, Zé Luiz! - grita para o garçom - Traz mais um chope para o Zé Luiz e uma pinga para mim.
- Colega, eu não te conheço, você está me confundindo. Meu nome é Jairo.
- Deixa disso, Zé Luiz! - ele parecia não ter escutado nem metade do que eu disse - Você ainda é o bamba no pandeiro?
Eu não consegui deixar de rir. E informei ao "colega":
- Eu?? Cara, eu sou deficiente auditivo. Sou 100% surdo.
Ele colocou as mãos na cintura e ficou me olhando; aqueles olhos de bêbado, vermelhos, que não conseguem fixar bem a imagem. Já tinha uns vinte minutos que a gente estava conversando "normal" e só agora eu dizia que era surdo. Pela cara dele eu percebi que ele ia acabar chorando. Como eu também estava bebendo (mas não estava bêbado) demorei a achar a melhor solução, que era até simples:
- Cara, vou te mostrar minha identidade, para provar que você está me confundindo.
Mostrei minha identidade e também a carteira da Associação dos Surdos.
- Porque você não falou logo, rapaz!!
- Mas eu falei, você é que não me deu ouvidos.
- Você é muito parecido com o Zé Luiz! Você tem irmãos em Venda Nova?
Eu ri, novamente:
- Só tenho irmãs!
Ele não desistiu:
- Como você está conversando normal comigo? Você não é surdo coisa nenhuma.
- Você tem um movimento labial bom, fala um pouco devagar e está "de fogo", nem percebe quando eu não entendo alguma coisa.
Ficamos amigos. O nome dele era Elias. Outras vezes bebeu comigo ali naquele mesmo bar, e uma vez, sóbrio, disse:
- Quando você disse que era 100% surdo, eu quase chorei. Porque o Zé Luiz adorava uma roda de samba, tocava pandeiro como ninguém... Uma tristeza muito grande me abateu naquele momento. Jairo, deve ser uma dureza ser surdo, né?
- Dureza, é, Elias, mas eu sou um cara muito feliz. Principalmente porque neste mundo existe pessoas como você.

(tradução:saúde!viva!felicidades!)
(Publicado originalmente em 22 de dezembro de 2009)

domingo, 1 de dezembro de 2013

Química de aprovação

 Daniel reclama:
- Ah, não, Jonathan, química está difícil demais.
- É das matérias que eu não gosto, além de Física.
- Não sei para que a gente tem que aprender essas coisas difíceis de Química. O básico já era suficiente. Saber uma ou outra coisa de Química, conhecer a Tabela Periódica.
- Verdade, Daniel Eu até acho muito interessante algumas coisas, mas aqueles desenhos complicados representando alguns componentes químicos, arre, não tem cabimento!!
- Pelo menos você está com boas notas. Eu, se ficar em recuperação, não vou voltar para fazer as provas em dezembro.
Estávamos com os boletins sobre as carteiras, as somas até o terceiro bimestre.
- Preciso de 12 pontos no quarto bimestre. Quanto você precisa?
- Você somou aí “de cabeça”, só olhando os números? – ele riu muito – Eu não consigo isso não, tenho que somar no papel. – escreveu as notas e somou. – A complicação são as notas com vinte e cinco, meio ou setenta e cinco centésimos. – verificou o total e reclamou – Droga!! Vou precisar de mais 15 pontos. Menos que isso e estarei de recuperação.
- O professor disse que hoje dará uma provinha, valendo 10 pontos, para fecharmos o bimestre. Se eu consigo os 10 pontos, passo direto, porque tirei  8 na prova. Quanto você tirou na prova?
- Nem queira saber... não vai dar mesmo!!
- Quanto Daniel?
- 3! Mesmo eu conseguindo os 10 hoje, é recuperação na certa.
- Porque você não quer vir fazer a prova de recuperação? Vai perder o ano de estudo, o diploma e tudo, só porque não quer fazer esta prova?
- Meu pai precisa de ajuda no interior, com a criação de avestruzes. Eu tenho que viajar agora no princípio de dezembro. Vou para Carangola e de lá para uma fazenda no interior. Não tem como voltar a tempo. Se eu não for agora, perdemos tudo, pois os prazos para o abate não podem ser estendidos. Meu pai não consegue se virar sem minha ajuda.
- Vamos ver... talvez o professor te dê um bônus e pronto...
Mas, sabíamos que o professor de Química era muito rigoroso com as notas, era só verificar os boletins com notas com centésimos.

O professor adentra a sala, inicia a aula informando que a provinha seria em duplas e receberia pontuação diferente.
- E qual seria a diferença? – perguntei.
- Serão 20 pontos distribuídos para a dupla.
- Quem “fechar” a prova será beneficiado com mais pontos se o outro errar?
O professor riu, me apontando:
- Isso aí, Jonathan, você entendeu o espírito da coisa...
O Daniel não perdeu tempo e formou dupla comigo. A provinha tinha cinco questões, difíceis, como sempre eram as questões de Química. Mas, o conteúdo era recente. Duas semanas atrás tivemos aula sobre a matéria em questão. Em dupla, podíamos consultar o colega sobre dúvidas, mas cada um tinha que fazer sua própria prova.
Já estávamos para terminar a prova quando o Daniel pergunta:
- Jonathan, hidrólise é a quebra por hidrogênio, certo?
- Não! – respondi. – Por água.
- Beleza. Afirmativa falsa, então.
Entregamos as provas. O Daniel reclama:
- Não vai adiantar muita coisa, pois se nós dois fechamos a prova, nós dois ficamos com 10 pontos cada e eu atinjo só os 13 pontos. Ficam faltando 2.
- Paciência. – eu disse.

No final do bimestre o professor de Química informa que apenas dois alunos ficaram em recuperação. O Daniel me olha, meneando a cabeça e pergunta para o professor:
- Professor, tem alguma forma do senhor antecipar a prova de recuperação?
- Qual seu interesse nisso, Daniel?
- Acho que não vou poder fazer a prova em dezembro.
- Mas, você não ficou de recuperação!
- Não?!?
- Não. Você passou com a pontuação necessária.
- Mas... mas...
O professor se encaminhou para os alunos que deveriam fazer as provas de recuperação. O Daniel me encarava, espantando.
- Como é que...
Eu ri:
- Não me olhe desse jeito, não sei o que aconteceu. Se o professor falou que você não está em recuperação, você não está. Eu também não estou. O importante é que passamos e você terá seu diploma, podendo se preocupar somente com seu pai e a fazenda.

Anos depois encontro com o Daniel numa loja de roupas, aqui em Belo Horizonte. Trocamos abraços efusivos. Contamos as novidades, os filhos já crescidos, ele com uma nova esposa.
- Ela é nova mesmo. – ele riu – Ela tem dez anos menos que eu.
Ele diz que já é avô, a filha do primeiro casamento já tinha duas filhas. Avô aos cinquenta e poucos anos. A esposa entrou no provador com algumas roupas e ficamos lembrando os bons tempos.
- Jonathan, nunca te agradeci pelo que você fez na época que estudamos juntos.
- Não sei do que você está falando, Daniel...
- Qual é? – ele riu – Eu te disse que não sou bom de matemática. Também não tive raciocínio rápido para entender o que você “sacou” imediatamente quando o professor disse que eram 20 pontos para a dupla. Mas, no último dia de aula eu perguntei ao professor como eu tinha conseguido 12 pontos, se eu e você fechamos a prova e cada um ganhou 10 pontos. Ele me explicou que você ganhou 8 pontos, errou uma questão e que eu ganhei os dois pontos com seu erro. Então eu perguntei se o professor lembrava qual questão você errou. Ele lembrou; disse que era uma fácil, sobre hidrolise e que você deveria ter se confundido.
Foi minha vez de rir muito.
- Eu me confundi mesmo... hidro, hidrogênio... caí na pegadinha da questão...
- Conversa fiada, Jonathan! – ele estava rindo também – Foi justamente esta questão que você me esclareceu a resposta certa.
Ele me abraçou, afetuosamente.
A esposa dele retornou, conversamos mais algumas coisas e nos despedimos.
- Não vou esquecer o que você fez!
- Ora, para que servem os amigos?

Os nomes não são verdadeiros.
Tenho orgulho de ser amigo dos envolvidos nesta história.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Madrugada de verão

A novela global Sol de Verão retratava um surdo (infelizmente, nas sinopses identificado como surdo-mudo) e foi a primeira vez que um surdo fazia parte do núcleo principal, interpretado por ator do primeiro escalão (Tony Ramos). Como eu não acompanhei a novela, não tenho muita informação sobre o personagem, um jovem de 20 a 25 anos. Na época não existia ainda o closed caption, as legendas ocultas que hoje possibilita aos surdos acompanhar diversos programas da tv. Lembro que o personagem fez bastante sucesso, tanto que a criançada e os jovens (principalmente as jovens, público principal de novelas, à época) aprenderam o alfabeto manual. Era muito comum eu chegar a alguma festa, ser apresentado pelos amigos e após a informação de que eu era surdo, as garotas escreverem “eu te amo”. Eu sabia que era influência da novela, aproveitava para incentivar a garota a escrever outras coisas, perguntando nome, escola, bairro. A novela considerava o personagem surdo-mudo, mesmo que sua deficiência derivasse de fato idêntico à minha: teve meningite e a sequela o deixou surdo aos 8 anos (eu, aos 13). Eu não sabia deste fato e só bem mais tarde, com o advento da internet, li a sinopse da novela. Aliás, o personagem aprende a falar, quase no final da novela, com uma fonoaudióloga. Bom, aos 8 anos a linguagem já está formada e, portanto, a sequela da meningite o deixaria surdo, mas não mudo. Erros novelísticos à parte, foi interessante a divulgação da língua de sinais e, principalmente, do alfabeto manual dos surdos.

Em um fim de semana, eu estava com os amigos e no sábado fomos a uma festa no Bairro das Indústrias. Lembro que, ao chegar à festa, o aniversariante me abraça efusivamente:
- Que bom tê-lo aqui conosco. Eu estava perguntando ao Tiago se você ia aparecer.
- Aproveitando o feriado e sua festa.
- Tem um vinho geladinho para você. – ele riu – Lembro que você e o Álvaro esvaziaram sozinhos, um garrafão de vinho.
Conversa daqui e dali, o Tiago me apresenta uma morena muito bonita.
- Essa é a Helena.
- Oi, tudo bem? – ela pergunta.
Antes que eu possa responder, pois eu entendi a pergunta, o Tiago esclarece:
- Ele é surdo.
Ela ri e escreve com o alfabeto manual:
- Oi, tudo bem?
- Tudo bem, e você? – respondo, falando normalmente. – Não entendi o seu nome direito.
Mentira; era para forçá-la a escrever o nome com o alfabeto.
- Helena. – ela escreveu corretamente e me fitou desconfiada – Mas, você fala normal. Você é surdo mesmo ou o Tiago está fazendo hora com minha cara? – ela falou, não muito devagar, mas o movimento labial dela era bom, possibilitando minha compreensão.
- Eu sou surdo mesmo, não é brincadeira. Além do Tiago, o Álvaro e o Jonas, o aniversariante, podem confirmar.
Surge um jovem com cara de poucos amigos, puxa a menina e diz:
- Vamos, Helena.
Mas, ela não o segue, responde alguma coisa (ficou de costas para mim, não sei o que disse), mas sua resposta não agrada ao jovem. Ele me encara, mas eu sustento seu olhar. Ele dá meia volta, enquanto a garota se vira para mim e diz:
- Você bebe alguma coisa? – usando o alfabeto.
- O que você for beber.
Ela gritou com outra menina, que nos trouxe cerveja.
- Quem é o rapaz que te chamou? -  perguntei, curioso.
- Meu namorado. – ela riu. – Mas, não tem nada a ver. Converso com quem eu quiser. Onde você mora, Jairo? – ela perguntou, mudando de assunto.
- Em Belo Horizonte.
- Eu pensei que você era aqui do Bairro das Indústrias.
- Trabalho numa gráfica em Contagem, perto da Cidade Industrial, mas moro em Belo Horizonte. – expliquei.
Percebi que o namorado da jovem me fitava de longe. Continuei conversando com a Helena por um longo tempo, bebendo cerveja, com uma ou outra jovem surgindo e se interessando pela utilização do alfabeto manual.
Algumas horas mais tarde surge o Álvaro, apreensivo:
- Vem cá, amigo. – me leva para um canto da casa. – Que maluquice a sua, ficar encantando a namorada do Serjão.
- Sei lá quem é Serjão, Álvaro.
- É o namorado da bonitona que você está de conversa a festa inteira. Vamos sair de fininho, que é melhor.
- Por que?
- O Tiago ouviu rumores de que uma confusão está a caminho. O Serjão mandou um amigo buscar reforços...
Comecei a rir:
- Tá de brincadeira? Reforços?
- É porque o Serjão me conhece e sabe que sou seu amigo e do Thiago e sozinho ele não vai encarar nós três. Mas, com os brutamontes amigos dele, a coisa fica feia. Você conhece o Hulk.
O tal Hulk eu conhecia justamente devido a uma confusão no bar perto da gráfica.
Percebemos a movimentação do Serjão e de alguns desconhecidos que chegavam. Já tinha um grupo de cinco pessoas junto a ele. Provavelmente só estavam esperando o Hulk para começar a baderna.
- Tudo bem, vamos. – eu disse, sabendo que seria catastrófico eu insistir em ficar na festa.
Fomos em direção à cozinha, como quem vai pegar mais cerveja, puxamos o Tiago e explicamos a situação. Um dos amigos do Serjão nos seguiu. Resolvemos sair pela porta dos fundos.
- Nem despedi da menina... – eu reclamei.
- Sem essa. Se voltarmos lá dentro e o Hulk já estiver lá, não teremos outra chance...
Saímos pela porta dos fundos, pegamos a rua e caminhamos rapidamente. O Tiago alertou:
- Um dos amigos do Serjão nos viu saindo. Vamos rápido.
- Calma, calma. Sem correr... – disse o Álvaro, porque ele tinha bebido muito e reclamou novamente comigo – Você tinha que se engraçar justo com a namorada do Serjão?
- Pombas, não fui eu não. Ela que gostou de conversar comigo, pois estava achando interessante usar o alfabeto manual.
O Tiago olha para trás:
- Caramba... A turma do Serjão já está vindo atrás da gente. São uns 7 caras...
- Não olhe mais, não. Estão correndo ou andando?
- Andando a passos rápidos...
- Continuemos andando a passos rápidos também e assim que virarmos a esquina, corremos.
Eu me preocupei:
- A rua após a esquina é muito longa e eles nos verão quando virarem a rua também. Temos que nos separar.
- Um para a direita, outro pra esquerda e outro reto. – disse o Álvaro – O que seguir reto servirá de isca, portanto vai ser o Tiago, que é o mais novo e o mais veloz.
Assim que viramos a esquina disparamos em desabalada carreira. Entrei na ruazinha à direita, correndo o mais que podia, entrei num beco entre as casas e ali fiquei, quieto. Para mim é péssimo esconder sozinho. Não ouvindo nada, se os nossos perseguidores se aproximassem, eu não saberia. Por isso fiquei imóvel, tenso, procurando regularizar a respiração. Não me arriscava, de forma alguma, a verificar se o caminho já estava livre. Fiquei quieto por uma boa meia hora. Pensava em verificar a situação, mas temi que os perseguidores estivessem parados na esquina. Eles também poderiam ter visto nossa manobra e também se separado. Onde eu estava era escuro, mas havia um poste de luz mais à frente. Alguém entra no beco e eu quase morro de susto.
- Vamos! – era o Álvaro.
- Como você me achou?
- Eu vi você virando nesta rua. Vim olhando os cantos escuros e dei com esse beco. Eu me escondi na outra rua e ouvi os caras passarem correndo.
Íamos voltando para a rua principal, mas eu disse:
- Vamos dar a volta.
- Tudo bem, mas eu ouvi o Serjão falando com os amigos dele que “nós” já estávamos perto da Igreja lá em baixo. Ele não sabia que era só o Tiago.
Fomos contornando as ruas em torno da área da Igreja. Nosso ponto de encontro era um boteco que conhecíamos. Encontramos o Tiago no boteco e conversamos e rimos sobre todo o sufoco que passamos.
- Tudo porque você resolve ganhar justamente a namorada do Serjão.
- Já disse que não fui eu, Álvaro! A menina gostou de conversar comigo. Tudo culpa da novela! – eu ri – E agora?
- Amanhã isso já é passado. Sem turma, o Serjão não vai mexer com a gente. A não ser que você queira mesmo roubar a namorada dele.
- Foi só uma coisa de momento! Vocês dois deveriam assistir a novela para ver o sucesso que o surdo está fazendo.
- Que surdo?
- O Tony Ramos!!
Rimos alegremente.
A madrugada já era tranquila.


sábado, 9 de novembro de 2013

Música em silêncio

Não tive a oportunidade de ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven. Mas, mesmo que somente vendo as imagens da propaganda abaixo, é emocionante.


Beethoven teve problemas auditivos com 26 anos de idade. Para um músico, a perda da audição é um duro baque. Não foi diferente para ele, entrou em depressão e pensou em suicidar-se. Ele procurou médico, utilizou cornetas acústicas e mudou de ares. Mas, nada disso resolveu. Escreveu:
"Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava!"

Beethoven não perdeu a audição completamente. Ouvia o suficiente para continuar compondo. Mas, quando compôs a Nona Sinfonia, a surdez estava bastante avançada e ele teve muita dificuldade para terminá-la. A sinfonia incorpora parte do poema Ode à Alegria:
"Alegria bebem todos os seres
No seio da Natureza:
Todos os bons, todos os maus,
Seguem seu rastro de rosas.
Ela nos deu beijos e vinho e
Um amigo leal até à morte;
Deu força para a vida aos mais humildes
E ao querubim que se ergue diante de Deus!"

Beethoven tentou reger uma ópera, mas a surdez fazia com que perdesse o acompanhamento correto. Quando da estréia da apresentação da Nona Sinfonia, ele tentou regê-la, mas o estado avançado de sua surdez era um problema. Ele regeu a orquestra, porém, os músicos prestaram atenção somente no outro maestro que dividiu o palco com Beethoven, para que tudo corresse da melhor forma possível.
Ao final, o público aplaudiu de pé e sabendo que o compositor não mais ouvia, agitaram lenços e chapéus (o sinal de aplauso para os surdos são os braços agitados ao alto).

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sábado, 2 de novembro de 2013

Flagrantes de BH

O Natal está chegando...





A loja Estrada Real (R. Caetés) sempre monta umas vitrines bacanas.

domingo, 27 de outubro de 2013

É nóis na roça... I

Naqueles tempos, e já se vão 31 anos, ir para a roça era ir para a roça mesmo. Enfrentar casarões antigos, sem energia elétrica. Mesmo quando havia energia elétrica, era restrita a iluminação ou rádio. Uma televisão na roça naquela época era raríssimo.
Quando cheguei em Formiga para passar o feriado de 1º de Maio (que caiu numa sexta-feira), encontrei o Ivan meio incomodado:
- Pô, você devia ter avisado que vinha. O pessoal está todo indo para a roça.
- Resolvi de última hora... Prá roça de quem vocês estão indo?
- Do vô do Edson. Só que o vô dele não mora lá não. A roça fica mais é fechada mesmo.
O Tonho se aproxima, dá o toque:
- Vamos falar com o Edson e você vai com eles. Eu vou namorar e já tenho as noites todas preenchidas com a Janete (com quem ele viria a se casar). Senão você vai acabar ficando aqui sem nenhum companheiro.
Claro que o Edson aprovou minha companhia. Disse que eu deveria comprar uma garrafa de vinho; ajudar a comprar o arroz, não esquecer de levar cobertor e blusa que lá estaria frio. Despedi do Tonho dizendo que nos veríamos novamente no domingo à tarde.
Fui em casa com o Ivan, peguei as coisas. Passamos no armazém (ah, sim, ainda existem armazéns em Formiga) e compramos vinho e arroz. Fomos para a casa do Edson, onde ele estava arrumando as coisas necessárias na bicicleta. Pegou uma galinha (viva) também. Foi lembrando de um monte de coisas, eu e o Ivan mais atrapalhando que ajudando, fazendo piada com tudo. Faca, colher, garfos e umas panelas. Ele tinha uma espingarda de chumbinho, que estava levando para caçar passarinho, codornas ou rolinhas, para a gente assar. Eu disse que iria aproveitar para atirar com uma arma pela primeira vez na vida (que pena que lá eu esqueci completamente disso!). Arrumamos muita coisa na bicicleta, tomamos café e ficamos fumando do lado de fora da casa do Edson, aguardando os demais companheiros.
- Quem mais?
- O Amarildo e o Walter.
Não conhecia o Walter. O Edson que era mais amigo dele, disse que era boa gente.
Eles chegaram juntos e o Amarildo foi logo falando:
- Você conhece a Enizinha (único nome fictício em todo este relato)? – riu e sem esperar resposta complementou – É mais uma da minha lista.
Todos rimos. O Amarildo tinha e fazia a fama de pegador. Ele tinha 19 anos à época. O Edson também. O Ivan era “de menor”, 17 anos, eu tinha 21 e o Walter era o mais velho, 22 anos. O Walter foi apresentado, o pessoal riu do espanto dele ao saber que eu era surdo. Meus três amigos sabiam o alfabeto manual dos surdos. Conversavam comigo normalmente. Companheiros bons, com quem passava horas e horas conversando amenidades. O Amarildo, a despeito de muitas conversas sobre mulher, também debatia assuntos diversos com conhecimento.
Pegamos o caminho para a Cerâmica, cruzando a ponte de madeira sobre o Rio Mata Cavalo. O Edson morava ali perto. Revezando para empurrar a bicicleta, que com toda tranqueira que o Edson inventou de levar ficou pesada. Passamos a Cerâmica, pegamos asfalto. Fui conversando com o Walter, informações de ambos, sobre trabalho, família, exército, etc. Ele tinha um excelente movimento labial e também viu como os meus amigos conversavam comigo (mesmo usando o alfabeto, eles falavam em voz alta, com vagar). Os três, Amarildo, Ivan e Edson entraram numa mata densa para ver se conseguiam matar algum passarinho que serviria de refeição. Chegaram com uma rolinha tão pequena que eu até fiquei com dó:
- Poxa, pessoal, se depenar esta rolinha não vai ficar nada...
Rimos. Jogaram fora, com dó. Para nós era importante matar os passarinhos somente para comer. Eu era totalmente contrário a matar passarinhos apenas por matar. Acho que só o Amarildo era meio contra  o que eu dizia, pois foi o único a não se manifestar a favor. Mas, conhecedor da minha defesa acirrada de algumas convicções, não polemizou. Eu fui carregando a espingarda, ela já estava descarregada, e brincando, lembrando que eu e o Walter conversamos sobre o exército. Eu expliquei que fui dispensado devido à deficiência. Pus a espingarda no ombro e alterei a voz:
- Ordinário, marche! Esquerdo, direito, esquerdo, direito...
Conversamos sobre exército, que eles serviram, menos o Ivan, claro. Disseram que, apesar de puxado, é bom, há companheirismo e aprendizado, principalmente sobre armamento. Eu falei que se não tivesse ficado surdo, provavelmente seguiria carreira nas Forças Armadas, porque eu gostava muito do Exército e da Marinha, mas não da Aeronáutica. Desde essa época eu já sabia de cor, os hinos brasileiros, o Hino Nacional e de cada uma das Forças Armadas. Gostava em especial da Canção do Exército, “Nós somos da Pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados...”, que eu ouvia sempre nos desfiles de 7 de Setembro. O bom de cidades do interior é justamente a possibilidade de participar de todas as festas cívicas. Os desfiles ocorriam no centro da cidade, era só uma caminhada de dez minutinhos e estava lá. Eu comecei a cantar a Canção do Exército e o pessoal se espanta:
- Como você sabe essa música?
-  Ouvi quando era mais novo. Minha memória auditiva é espantosa. Lembro de muitas e muitas músicas que já ouvi.

(Relato em 4 capítulos! Continua AQUI)


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A estrada, o leão ... e o muro

Naqueles anos, e lá se vão muitos anos, não havia videogame, nem internet, nem tv a cabo, nem celulares... e portanto, muita coisa era difundida por escrito ou verbalmente. Muitas das minhas férias, que eu passava em Formiga, aproveitava realmente para ficar em companhia dos amigos. Sentávamos nos bancos da Praça da Igreja Matriz e entre uma conversa e outra jogávamos palitinho, contávamos casos, amigos surgiam e conversavam também. A Jane era uma amiga alegre, brincalhona. Um dia que eu e o Ivan estávamos jogando palitinho ela chegou e interrompeu o jogo falando:
- Vou fazer um teste com vocês. Com o Ivan primeiro. - e falou direto comigo, rindo - Você não escuta, basta a gente ficar de costas.
A amizade que tínhamos facilitava estas coisas.
A Jane fez o teste, o Ivan riu de algumas coisas e reclamou de outras. Então, a Jane se virou para mim e disse:
- Agora é sua vez. O teste é simples, basta você responder com a maior sinceridade possível.
- Manda ver.
- Imagine uma estrada.
- Ok.
- Como ela é?
- É uma estrada de terra, ladeada de árvores, subindo e descendo, cheia de curvas.
- Você vai caminhando por esta estrada e vê um leão dormindo ao longe. O que você faz? - eu fiquei calado e ela acrescentou - Passa direto ou mexe com ele?
Pensei muito, imaginando o leão ao longe. O bicho dormindo me pareceu muito sem graça e eu respondi:
- Mexo com ele.
- Você continua caminhando e vê uma chave no chão. O que você faz?
- Pego a chave.
- Ainda mais à frente há um grupo de anões no maior carnaval, cantando, dançando e se divertindo. O que você faz? 
- ??
- Entra na dança também?
- Se eles me chamarem eu entro, se não, fico só observando.
- Mais à frente há uma linda cachoeira, com lago. O que você faz?
- Entro n'água.
- Como você entra na água?
- Com calma, aproveitando o frescor da água.
- Você continua pela estrada e de repente ela termina em um muro. O que você espera encontrar do outro lado?
-  A continuação da estrada.
(Obs.: se você não conhece este teste, responda às mesmas perguntas acima antes de continuar a leitura).

O Ivan riu de algumas de minhas respostas, a Jane se espantou com outras e começou a explicar o significado do teste:
- A estrada é sua vida; de terra, ou seja, difícil, mas ladeada de árvores e muito verde, demonstrando ter bastante alegrias. O leão significa os grandes problemas da vida, os que parecem insolúveis, mas você os enfrenta - a Jane riu, dizendo que são poucos os que respondem que mexem com o leão. - A chave significa o amor, e você o pega na sua jornada. Os anõezinhos são os amigos do seu viver, você não é de fazer amizade com todo mundo, é seletivo, se eles se abrem (te chamam) você aceita, se não, você prefere ficar distante. A cachoeira significa o sexo e o modo como você entra n'água é o seu jeito de tratar a pessoa amada. O muro significa o fim da vida e você espera encontrar a continuação da estrada, ou seja, a continuação da vida.
- Muito interessante.
O Ivan:
- Eu falei que minha estrada é de asfalto, não mexo com o leão, pego a chave, faço o maior carnaval com os anõezinhos, entro na cachoeira e também respondi que após o muro espero encontrar a continuação da estrada.
- Ele falou que entra na cachoeira gritando e pulando feito louco. - dedurou a Jane.
- Coitada da moça - eu disse, e rimos muito.
- Eu fiquei triste quando fizeram o teste comigo. - disse a Jane.
- Porque?
- Quando me perguntaram o que eu esperava encontrar do outro lado do muro, eu respondi "nada".
- Vai saber!! Tudo que temos são teorias. Vai que não tem nada mesmo.
- Ah, não, Jairo, todos com quem fiz o teste responderam uma coisa ou outra, menos "nada".
- De onde tiraram este teste?
- Não sei. Só sei que o pessoal do Grupo Jovem fez este teste com quase todos os conhecidos. Sua mãe falou que "pegaria a chave, pois mais à frente poderia haver uma porta"!
- Onde você fez o teste com minha mãe? - eu me espantei.
- Sua mãe estava na casa da sua tia, eu tinha feito o teste com seu primo e ficamos conversando com elas.
Ri. Formiga era ainda uma cidade pequena. Meu primo era do Grupo Jovem, cantava na missa dos jovens. Minha mãe sempre visitava minha tia e quando os amigos do Grupo apareciam por lá se espantavam que ele fosse meu primo e mais ainda quando falavam de mim para minha mãe e ela ria, informando "o Jairo é meu filho!"
- Sua tia respondeu que do outro lado do muro esperava encontrar um campo de futebol.
Nós rimos muito. E eu falei com eles que minha tia gostava de futebol, influenciada pelo meu tio, que jogou nos times de Formiga.
- O meu pai falou que esperava encontrar do outro lado do muro, o quintal do vizinho.
Não lembro se foi minha irmã mais nova ou se a própria Jane que me contou que o Padre D., muito ligado aos jovens, respondeu às questões do teste e, claro, todos ficaram ansiosos pelo que ele responderia em relação à cachoeira:
- Sabe o que ele respondeu? Que sentaria na margem, tiraria os sapatos e molharia os pés. A galera insistiu: entraria na água? E ele respondeu: não.
Praticamente todos os amigos do nosso convívio responderam às questões do teste. Como eu disse no princípio do texto, não havia ainda a internet, nem tv a cabo e o que "bombava" naqueles tempos eram coisas assim, simples, mas interessantes.
Rimos muito dos amigos e suas respostas malucas. Um disse que chutava a chave para longe. Outro que mandaria os anõezinhos para o circo (caramba, hoje ele seria condenado pelos politicamente corretos). E um que insistia que não iria pro outro lado do muro, daria meia volta e retornaria pela estrada. A assustadora resposta de um outro que, ao ser perguntado sobre o que ele esperava encontrar do outro lado do muro, respondeu: um precipício.
Dias depois encontramos a Jane:
- Já fiz o teste com todos meus familiares e só eu mesma que respondi esse "nada" após o muro.
- Você vai ficar impressionada com isso? É só um teste, menina!!
- Todos respondem uma ou outra coisa legal.
- Então, se você está botando fé no teste, e se todos respondem que há uma ou outra coisa depois do muro, você errou ao responder "nada". Você encontrará alguma coisa, de acordo com as respostas dos outros.
O Ivan ri até:
- Você está tentando salvar a pele dela...
- Reconheço seu esforço, Jairo, mas minha resposta tinha que ser espontânea e não dependente dos demais.
- Se você entra na dança com os anõezinhos, seus amigos, o que eles esperam encontrar do outro lado do muro é o que você também encontrará.
 A Jane me abraçou, rindo muito. Abraçada comigo à direita e o Ivan à esquerda, fomos os três em direção à Praça da Matriz.

E você, leitor(a): o que espera encontrar do outro lado do muro?

Os nomes citados não são os nomes verdadeiros.
Há outras interpretações do teste hoje em dia, mas foi essa a que percorreu meus tempos de jovem junto aos amigos em Formiga.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Dia das Crianças

Fusca da Polícia
Bate e volta - Estrela
Nos meus tempos de criança nunca comemorei Dia das Crianças algum. No interior, o catolicismo era muito forte e o dia 12 de outubro era tão somente o Dia de Nossa Senhora Aparecida. O que mais recordo desta data era o foguetório ao meio-dia (toda minha infância foi de ouvinte). A única data em que eu ganhava brinquedo era Natal. Nem meu aniversário era comemorado com presentes. Meus brinquedos eram simples e só conhecia carrinhos de pilha de outros. Meu primo tinha um fusca preto, bate e volta, que ligava as luzes e fazia o som da sirene de carro da polícia. Mas, para nós era um brinquedo “de olhar” e, embora eu ficasse admirando a beleza do fusquinha, eu e meu primo pouco brincávamos com este carrinho. O ideal mesmo eram os carrinhos “de Toddy”, miniaturas que acompanhavam as embalagens de Toddy. Com uma centena destes carrinhos, brincávamos no quintal de terra da casa do meu primo, horas a fio, o dia todo, até que começava a escurecer e minha tia avisava que eu tinha que ir para minha casa. O quintal da casa do meu primo hoje é todo de cimento.
Carrinhos Toddy
Também brincávamos muito com os soldadinhos e “indinhos” Toddy. Pelas imagens é perceptível que a qualidade das miniaturas era sofrível, mas não nos importávamos com isso. O importante era brincar.
Também fazíamos nossos próprios brinquedos, como futebol de botão, papagaio, carrinhos de rolimã, arquinho e carrinhos de madeira. Os de madeira eram restos de madeira da Luzitana (a madeireira que ficava na Rua 13 de Maio), pregados um em cima do outro e com rodinhas de carrinhos quebrados. Futebol de botão era feito com lentes de relógios (passávamos na Relojoaria Dilce e perguntávamos se tinha lente velha para dar).
Brinquedo artesanal
Arquinho
Arquinho era um aro de metal que conseguíamos nas oficinas mecânicas e com um arame retorcido na ponta, formando um U, rolávamos o aro e o empurrávamos com o arco. A brincadeira consistia em manobras para subir e descer o passeio sem deixar o aro cair. Em algumas ruas de terra próximas de casa, fazíamos rampas, buracos e obstáculos para brincarmos. Às vezes minha mãe pedia para ir comprar alguma coisa e eu ia e voltava empurrando o aro. Hoje, se uma criança sai com martelo e alicate do pai, tentando retorcer um arame, é um Deus nos acuda. Eu mexia com martelo, pregos, serrinha, faca, entre outros objetos terminantemente afastados das crianças de hoje. E dedos martelados, cortados e com as bolhas de sangue, que depois viravam bolhas pretas, são coisas que as crianças de hoje não conhecem.

Seriado Rin-tin-tin
O garoto Cabo Rusty e seu
cão Rin-tin-tin
As crianças de antigamente eram mais livres, soltas mesmo. Brincávamos longe de casa, vez ou outra ficávamos fora a tarde toda, só aparecendo quando a luz natural do dia ia sumindo. Entrava em casa, tomava um banho, jantava e logo depois já estava dormindo (não tinha televisão na minha casa). Na casa do meu primo tinha televisão e assistíamos Daniel Boone, Durango Kid ou Rin-tin-tin, mas tão logo acabava o seriado já voltávamos para nossos brinquedos. E muitas vezes, a brincadeira com carrinhos, soldadinhos ou o futebol na rua estavam animadas o suficiente para que sequer lembrássemos que era hora do seriado. Era difícil parar uma brincadeira por causa da tv. Na maioria das vezes, assistíamos tv porque estava chovendo, impedindo as brincadeiras de quintal e rua.
A rua, os lotes vagos, o areal do rio, os quintais vizinhos que tinham frutas, tudo era explorado. Comer goiaba, chupar jabuticaba direto da árvore frutífera. Eu já caí de árvores, cortei o pé em caco de vidro (andava descalço), dependurava em traseira de caminhão quando ele passava pela rua. Pique, amarelinha e cantigas de roda também fizeram parte da minha infância.
Soldados e índios Toddy
Hoje, a tecnologia suplantou tudo isso. As crianças estão mais ligadas em tecnologia do que em brincadeiras. Aos 9 ou 10 anos os meninos já recusam os carrinhos e as meninas, as bonecas. Alguns nunca subiram em uma árvore. Jogam mais futebol no videogame do que em um campinho com amigos. Acham muito mais divertido um iPhone do que empurrar um aro com arame retorcido. Mas, quem somos nós para julgar? Cada tempo em seu tempo. As crianças de hoje devem achar a coisa mais sem graça brincar com arquinho e o maior barato um telefone de última geração. Mas, no futuro, as crianças, filhos e filhas das crianças de hoje, considerarão o iPhone artefato de museu. Mas, não será possível ver crianças saindo de casa sem dizer aos pais exatamente aonde vão, retornando na hora do almoço, quando batia a fome, voltando para a rua novamente e só chegando em casa junto com a noite.


segunda-feira, 7 de outubro de 2013

terça-feira, 1 de outubro de 2013

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - V

Saí do hospital e reiniciei meu viver, agora surdo. Com o apoio familiar fui superando todas as adversidades que se apresentavam. Em 1974 entrei definitivamente no seio da comunidade surda ao continuar os estudos no Instituto Santa Inês, especializado no ensino para surdos.
Com o conhecimento dos fatos envolvendo a epidemia de meningite, jamais aceitaria o retorno da ditadura militar no país. Não nego a importância dos militares na defesa da Pátria. Mas, politicamente, os militares tinham apenas uma visão: o país primeiro, a população depois. Se para o crescimento do país fosse necessário a morte de milhares de inocentes, os militares assim o fariam. Assim o fizeram ao não tomar as providências necessárias quando ocorreu a epidemia de meningite. Ainda hoje leio absurdos do tipo “no tempo dos militares é que era bom”. É difícil contestar, porque estas pessoas têm um conhecimento da história do Brasil vista através dos olhos dos militares. Aos poucos, e põe pouco nisso, historiadores estão contando as verdades sobre a desumanidade da ditadura militar. E a epidemia de meningite é um fato pouco conhecido da população brasileira, um crime militar contra seus próprios cidadãos. Durante longos 4 anos o governo militar permitiu a disseminação criminosa da epidemia de meningite sem alertar a população. Eu poderia fazer uma enorme lista de pessoas surdas que conheço e que perderam a audição devido à meningite, naquele período. É fácil constatar, porque não há casos de surdez na família. E as datas em que perderam a audição só confirmam que a ditadura militar foi realmente criminosa. Tenho amigos que perderam a audição com 9, 10 ou 11 anos. E amigos que nasceram nos anos 70 e perderam a audição ainda crianças, com 3 ou 4 anos. Todos contam a mesma história. Em um momento da vida passaram pelo que passei, contraíram meningite, demoraram a ser atendidos e como sequela, a surdez. Lembro de meu colega A., contando para minha mãe o que ocorreu com ele, a interrupção de seus sonhos aos 15 anos. Ele queria ser médico e da mesma forma que eu, entrou no hospital ouvindo e saiu surdo. Ele ainda sofreu mais que eu, pois demorou a ter contato com os surdos, continuou o estudo numa escola regular e só veio a conhecer outros surdos quando já estava com mais de 20 anos. Hoje, lembro com tristeza dos momentos em que conhecia um novo colega surdo e consequentemente a conversa fluía para o “como você ficou surdo?” e a resposta “por causa de meningite” e o mais incrível, a resposta ao “quando?”. A resposta era, invariavelmente, 1972, 1973, 1974 ou 1975. Anos que a ditadura militar optou em não esclarecer à população sobre a epidemia de meningite.

Eu tenho admiração e um amor incondicional aos meus familiares, que lutaram pela minha transferência de Formiga para Belo Horizonte, luta essa que possibilitou estar aqui descrevendo todo o drama.
Lembro com carinho dos médicos e enfermeiros; em especial de uma enfermeira que realmente demonstrou felicidade ao chegar e me avistar de olhos abertos; a alegria de saber que eu sobreviveria. Algumas realmente se apegavam aos pacientes, sabiam do que a meningite era capaz e as maiores vítimas eram crianças. Esta enfermeira me arrumava a faca para descascar a laranja, me arrumava revistas em quadrinhos, quando percebeu que eu sempre estava lendo uma e vez ou outra fazia um carinho na minha cabeleira enorme. Nunca soube o nome de nenhum dos que me atenderam lá, pois a surdez me tornou ainda mais tímido e eu não perguntava nomes. E mesmo nomes que a gente sabe porque ouve os outros chamando as pessoas pelo nome; isso para mim já não era mais possível.

Hoje sou feliz junto à comunidade surda e adaptado satisfatoriamente à comunidade ouvinte. Alguns amigos não compreendem quando digo que, se os militares tentarem novamente um golpe, serei um dos primeiros a pegar em armas para lutar contra eles. Acreditar que os militares lutaram em defesa da democracia é muita ingenuidade. É preciso conhecer muito mais da história brasileira e entender que, para os militares, o que importa é o país, não a população. 

Três crianças estavam naquele quarto do Hospital Cícero Ferreira, isoladas devido a uma doença contagiosa. Eu, com 12 anos e meio, outro menino, com 8 ou 9 anos e uma menininha de mais ou menos 8 meses.
A menininha não voltou para casa.

(Fim do post)

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - IV

Informações atuais sobre as
meningites. Para ler, clique AQUI
Ao ver o outro menino andar para lá e para cá no quarto, resolvi levantar também. Mas, quando levantei, quase caí. Fiquei completamente zonzo. Fraco como estava, muitos dias deitado, minhas pernas mal conseguiam sustentar o peso do corpo. E no decorrer de minha nova vida de surdo, descobriria que a audição é extremamente importante para o equilíbrio e na falta dela, em terreno irregular, eu sempre cambalearia. Escorei-me na cama e com muita dificuldade, escorando na parede, caminhei até  a porta que dava para o corredor. O corredor era enorme e eu me assustei muito. Pensava estar em Formiga, no Hospital Santa Marta, mas minha mente já estava trabalhando perfeitamente e eu tinha noção de espaço. Aquele corredor não era do Hospital Santa Marta. Então fui até à janela e vi o grande movimento de carros. E soube que não estava em Formiga. Entrei em pânico; não sabia onde estava; disse para mim mesmo que estava ou em Belo Horizonte ou em São Paulo. Mas, não ter um rosto conhecido, perceber que estava num local desconhecido era realmente assustador. Ironicamente, foi por isso que chorei. Mas, uma vez acordado e sabendo estar num hospital, acreditei que algum conhecido surgiria. Na tarde daquele mesmo dia a enfermeira me tirou da cama e me conduziu à sacada do segundo andar do hospital, de onde avistei familiares, mãe, madrinha, irmã mais velha e caçula no colo. Era um alívio a visão daqueles rostos conhecidos. Hoje sei que ali naquele quarto todos estávamos isolados, vítimas da meningite, que é contagiosa, e em recuperação. O tempo transcorreu inexoravelmente, a recuperação era satisfatória. Eram dois comprimidos de manhã, de tarde e de noite. E a aplicação de injeção de manhã e de tarde. Todos os dias. Tanto que a enfermeira ia mudando, do braço direito para o esquerdo, depois a nádega direita, depois a esquerda e por fim, a coxa direita e depois a esquerda. Para passar o tempo eu contava a quantidade de comprimidos e de injeções. Todos os dias eu era conduzido à varanda; todos os dias minha mãe lá estava, no pátio, acompanhada de um ou outro familiar. 
No passar do tempo descobri que o bebê na verdade era A bebê. O cabelo longo, os traços femininos eram perceptíveis, pois ela já tinha uns 8 meses. Eu chegava próximo ao berço, fitava a menininha, sorria para ela. Ela me fitava, vez ou outra retribuía o sorriso, mas era tão quietinha... Uma manhã os enfermeiros e médicos (eu não conseguia saber quem era o médico entre todo aquele pessoal vestido de branco) entraram correndo no quarto. Retiraram todas as agulhas de soro da menininha, os tubos de oxigênio e a levaram. Ela não voltou. Hoje, sabendo que éramos pacientes de meningite meningocócica e compreendendo a gravidade da situação, entendo que ela não voltou porque não sobreviveu. E neste momento em que escrevo, 40 anos depois destes fatos, ainda me emociono pela menininha que não sobreviveu. Eu e o garoto sairíamos do hospital em poucos dias. Voltaríamos para o seio da família e ainda que eu voltasse surdo, pelo menos eu voltava. E ambos teríamos histórias para contar. Assim como estou contando agora.
Mas, para a menininha não haveria histórias. A epidemia de meningite tinha ceifado mais uma vida ali.

Parte V - final - Clique aqui



quarta-feira, 29 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - III

Em princípio não foi diagnosticada a meningite, um erro que causou severas complicações no meu viver. A meningite meningocócica é extremamente grave, com alta taxa de mortalidade e deve ser tratada imediatamente. Mas, como já foi dito antes, a ditadura militar impedia uma maior interação entre os médicos. Durante três longos dias fiquei internado sem o tratamento adequado. Foi quando um outro médico tomou conhecimento do meu caso e informou que eu deveria ser transferido imediatamente para Belo Horizonte. Porém, o médico que me atendeu inicialmente não estava na cidade e para esta transferência era necessário a assinatura dele. Minha segunda irmã mais velha foi quem fez uma verdadeira via sacra atrás de documentação e autorização para minha transferência. Em vista da gravidade do meu caso, o Diretor do hospital assinou o documento que permitia a minha saída do hospital. Não havia ambulância e o hospital não se responsabilizou após minha saída. Foram meus familiares que conseguiram dinheiro suficiente para pagar um taxi. Não receberam instruções, não foram informados do perigo de contágio. Aqui em Belo Horizonte fui internado no atualmente Hospital Infantil João Paulo II (antigo Hospital Cícero Ferreira, para tratamento e isolamento de doenças transmissíveis). Com o tratamento adequado, em três ou quatro dias eu recuperei a consciência, mas já surdo, sequela da meningite, devido principalmente à demora no diagnóstico e tratamento correto da doença.
Eu abri os olhos uma primeira vez, ainda muito fraco e com os pensamentos muito confusos. Estava amarrado à cama, com agulhas de soro no braço e uma mangueirinha na boca, que instintivamente sugava leite de um garrafão na mesa ao lado. Somente à noite acordei mais consciente, ainda sugando leite, com os sentidos retornando aos poucos. A visão, o paladar, o tato. E as reações naturais do corpo, como a fome, por exemplo. Foi devido à fome que acabei descobrindo que havia algo errado com minha audição. Eu estava muito fraco e não conseguia sugar o resto de leite do fundo do garrafão, tamanho médio, 5 litros, mais ou menos. Mas, como no momento eu estava desamarrado e com fome, resolvi tombar o garrafão para beber o resto do leite. Estava fraquíssimo e consegui tombar o garrafão, mas não foi possível mantê-lo tombado e ele caiu. Eu não ouvi o barulho do garrafão se quebrando e ninguém surgiu no quarto devido ao barulho (era madrugada). Num primeiro momento pensei que o garrafão fosse de plástico. Mas, eu tinha sentido o contato do vidro. Na beira da cama, fiz um esforço e olhei para o chão. Cacos de vidro para todo lado em meio ao resto do leite. Neste momento tive consciência de que os sons morreram para mim. Descobri então, que o meu mundo estava em silêncio.
No dia seguinte estava tudo limpo e arrumado, a enfermeira chegou e ficou surpresa ao me ver desperto e disse algo entre sorrisos e uma expressão de real felicidade. Anos depois, compreendendo todos os fatos, entendi melhor a expressão de felicidade no rosto da enfermeira: a surpresa por me encontrar acordado indicava que eu entrara no hospital com poucas possibilidades de sobrevivência. Éramos três pacientes no quarto, um outro menino, mais novo que eu, 8 ou 9 anos e um bebê, num berço improvisado no canto. Todos três tomando soro. O bebê também com tubos de oxigênio. Os enfermeiros fizeram a punção lombar no garoto; eu tive o privilégio de assistir deitado na cama ao lado (as agulhas de uns 10 cm sendo inseridas na coluna do garoto eram assustadoras). Foi também o meu primeiro contato com a comunicação através dos sinais. Um enfermeiro falou alguma coisa comigo e eu respondi que não estava escutando. Ele fez o gesto de “você”, apontando para mim e “sua coluna”, apontando para as costas dele mesmo. Eu entendi e toquei minha coluna, onde estava o curativo, pois é claro que ali, com o tratamento correto, eu também tinha feito uma punção lombar. Eu fiz uma expressão de espanto ao constatar o esparadrapo e os enfermeiros (um homem e duas mulheres) riram.
Naquele momento, provavelmente, eles se deram conta de que a meningite havia deixado uma grave sequela, a surdez bilateral profunda e, no meu caso, irreversível.

A meningite (Wikipédia)


terça-feira, 28 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - II

Você pode ler a matéria da capa no
Acervo Digital da revista.
Clique AQUI (clique em 1972, em
seguida clique em Outubro e
por fim na Edição 213.
Todos sabem o momento em que alguma coisa não está certa. Sentimos que o corpo está diferente, que uma dor ou vômito está vindo. Sentimos que algo muito errado está acontecendo e pedimos ajuda... Eu tinha doze anos e meio, passei a manhã do domingo com meu primo e um vizinho pescando no pontilhão da lagoa. Eu tinha ganhado uma bicicleta Philips, tamanho médio, poucos meses antes. Depois do almoço, embora meu primo estivesse animado com a pescaria (eu havia pescado mais de cinco peixes) e falasse em voltar para o pontilhão, senti que havia alguma coisa errada comigo. E disse ao meu primo e à minha tia que ia embora para casa. Era um fato raro eu voltar para casa antes de entardecer. Mas, não havia tempo para explicações. Eu já estava sentindo um grande mal estar. Os sintomas, dor de cabeça, febre alta, rigidez da nuca, desânimo, moleza, vômitos em jatos, surgem repentinamente. A meningite virótica é mais leve, recupera-se em até dez dias e a mortalidade é praticamente zero. Já a meningite bacteriana, por pneumococo tem alta letalidade e a por meningococo mata vinte em cada cem doentes. Foi uma epidemia por meningite meningocócica que devastou o Brasil.
A imagem que ficou daquele dia terrível não é de meu primo, meu vizinho, minhas irmãs menores, todos próximos de mim, todos com grandes possibilidades de contágio. A imagem que ficou era de minha mãe, desesperada, enquanto eu, deitado, gritava de dor de cabeça e vomitava em jatos. Como não sabiam o que eu tinha, diversas tentativas foram feitas para amenizar minha dor de cabeça e parar o vômito. Todas sem sucesso. Tudo que eu engolia voltava em jatos. Vizinhos chegaram, opinaram, meu tio disse que era melhor ir logo para o hospital. Fui no carro de um vizinho, já completamente debilitado, carregado pelo meu tio. Fui para o Hospital Santa Marta.
Embora eu tenha sido internado no mesmo dia, nenhuma medida de precaução foi tomada em relação às pessoas que tiveram contato comigo. Como eu disse, aos militares não interessava alardear a população sobre a epidemia. As pessoas não sabiam as medidas de segurança a tomar quando ocorria um caso de meningite com pessoas próximas. Somente quando a doença começou a atingir também a classe alta foi que os militares resolveram combater a epidemia.
No hospital a dor de cabeça cedeu, mas não o vômito e claro, nem a febre, altíssima, que chega até os 40⁰. E ali, conversando com minha madrinha, perguntei por minha mãe. Ela respondeu que minha mãe estava muito nervosa e não estava conseguindo ficar ali. E foram as últimas palavras que ouvi na vida, pois o ápice dos sintomas me atingiu, meus lábios já estavam feridos devido à febre altíssima, meu corpo prostrado, sem forças.
Entrei em coma.


Parte III - Clique aqui

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Flagrantes de BH

Ao sair do serviço, outro dia destes, fui surpreendido pelo momento mágico em que o dia dá lugar à noite.



terça-feira, 7 de maio de 2013

O amor é lindo...

Ao despedir-me do meu namorado, meu pai abriu a porta da sala que dava para a varanda, ocasionando um susto repentino entre nós. Nos afastamos, temerosos e meu pai disse:
- Boa noite, jovem.
Meu namorado respondeu, apesar de um tanto assustado, com voz firme:
- Boa noite, senhor.
E aproveitando estar afastado, dirigiu-se a mim:
- Tchau, até amanhã!
- Tchau. – respondi, meio triste, pelo modo como ele estava indo e ao mesmo tempo temerosa do meu pai.
Meu pai, sério, mas tão compreensivo quanto, me fitava com um sorriso nos lábios.
- O seu namorado não precisava ir embora tão rápido.
- Ele não é meu namorado, pai. – tentei amenizar uma possível discussão.
- Minha filha, a quem você quer enganar? Acha que não percebi a troca de olhares de vocês dois, o jeito carinhoso de se despedir, mesmo que só com palavras! Claro que é seu namorado...
Fiz uma careta, contrariada. Meu pai tinha dessas coisas. Era muito observador. Nada passava despercebido perto dele.
- Ele é mais novo ou mais velho que você?
- Porque pergunta?
- Ele estuda na mesma escola que você, mas não é da sua sala.
- Paaiiii!! – agora eu estava brava, porque estávamos sem uniforme e eu fiquei desconfiada de como ele sabia disso. – Você andou lendo meus cadernos ou o quê?
- Você é muito ingênua, minha filha. – ele estava rindo – Eu já vi o jovem no portão de sua escola quando fui te buscar tempos atrás. O mesmo olhar carinhoso, te acompanhando enquanto você vinha para o carro.
- E como sabe que ele não é da minha sala?
- Uma vez que já o “conhecia” de vista, das vezes em que fui te buscar, quando você me mostrou a foto da sua turma, procurei o garoto, claro, e ele não estava.
- Ah, pai, não acredito! Por isso você perguntou se tinha algum colega ausente na foto. E a boba aqui, sem suspeitar de nada...
Meu pai estava rindo. Então, ele sabia, e neste tempo todo, não falou nada. Ainda que temerosa de uma reprimenda, se ele sabia e não disse nada é porque talvez aprovasse que eu já estivesse namorando.
- O que mais você investigou dele?
- Nada. Não sei o nome dele e você não me respondeu se ele é mais novo ou mais velho que você. Aparentemente, é um bom rapaz. Vocês devem estar namorando há uns seis meses.
Há oito meses, para ser mais exata, mas eu preferi não me vangloriar. Há oito meses atrás eu ainda tinha quatorze anos. Agora, com quinze, sentia-me muito mais dona do mundo, muito mais forte, mais contestadora e iria batalhar para continuar com meu namorado.
- Ele é um ano mais velho que eu. Está uma série à frente.
- Como eu disse, ele aparenta ser um bom rapaz. Espero que dê tudo certo entre vocês...
- Pai, eu posso ir no...
- Não!
- ... shopping com ele?
O “não” foi dito calmamente, mas com entonação forte. E ficamos, eu e meu pai, nos fitando. Quando eu abri a boca para contestar, ele se antecipou:
- Vamos esperar mais alguns meses, certo? Não esqueça que tenho que conversar com sua mãe, que não sabe de nada, nada, ainda. Vocês vão demonstrar que o namoro é sério, respeitando essa minha decisão. E em pouco tempo, poderá passear com ele no shopping. Confio na sua responsabilidade.
Ah, que droga. Meu pai era um verdadeiro advogado. Negociava muito bem com o “cliente”. Ou concordava, ou perdia tudo. A maré era boa. Melhor contemporizar. Acenei afirmativamente com a cabeça, concordando. E lembrei de minha mãezinha, que era muito mais protetora que meu pai e que dificilmente aceitaria meu namoro sem a intermediação dele. Para ela, os estudos primeiro, namoro, só depois de formada.
- Acredite, minha filha. No momento, é o melhor para todos.
Meu pai passou os braços pelos meus ombros e entramos. Enquanto cruzávamos a porta ele disse:
- E preste atenção numa coisa, minha filha: cegonhas, muitas vezes se tornam aves negras de filmes de terror...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Eu e o bullying

by jafeol

Antigamente dizia-se “encher o saco”, “zoar”, “azucrinar”, “zombar”, “avacalhar”... Hoje, bullying é o termo utilizado para designar estas ações. Mas, convenhamos, que tratar todas as zoações das crianças e jovens como bullying é complicado. Eu nunca liguei para os que me chamavam de quatro olhos. E na escola, não perdoávamos, havia o Gaguinho, o Vinte-e-quatro, o Rato, o Branca de Neve, entre outros. Isto no meus tempos ainda ouvindo. Talvez a diferença seja que não havia uma constante nas provocações. Provocava-se hoje, no outro dia ninguém estava lembrando mais do que foi feito. E não havia redes sociais, nem e-mails, nem youtube para azucrinar a pessoa constantemente.
Já surdo, sabia que as pessoas se aproveitavam da minha surdez para xingar ou fazer gracinhas pelas minhas costas. Não era muito no início, porque não sabiam quanto realmente eu era surdo. Mas, quando eu estava com 14∕15 anos, a maioria das pessoas que comigo conviviam, sabiam que eu era 100% surdo. Foi quando começaram a se aproveitar deste fato para me xingar, principalmente quando eu estava de costas, claro. Só que se eu soubesse que me xingaram (e alguns fiéis amigos sempre me alertavam disso) , não deixava barato. Fosse quem fosse, pequeno, grande, jovem ou adulto, eu ia tirar satisfações, na maioria das vezes, partindo para as vias de fato. Meus amigos alertavam os engraçadinhos que, eu não escutava, mas se eu percebesse que eles estavam me xingando, eu partia para a briga sem dó nem piedade. Apesar deste alerta, alguns não acreditavam: a velha história de “se é surdo, é bobo”. Um dia, após uma partida de futebol com o pessoal da rua, o jogo acabou com vitória do meu time, mas sempre tem os maus perdedores. Como eu tinha feito gol e comemorado com muita avacalhação (hoje isto é comum, no futebol, não é mesmo? As dancinhas cheias de provocações), os perdedores apelaram e quando estavam indo embora, o A.L. me xingou. Meu amigo fez uma careta ao ouvir o xingamento e eu percebi que tinha algo errado:
- O que foi?
- Nada! Vamos voltar para o campo...
- Pela sua expressão eles disseram alguma coisa que você não gostou...
- Ele te xingou de “surdo filho de uma égua”.
Os dois já iam longe, o Z.P. e o A.L. Como meu amigo não especificou quem tinha xingado, eu acertei primeiro o Z.P., jogando-o no chão. Ele caiu, mas não ficou calado:
- Não foi eu não, foi o A.L.
O A.L. já estava correndo, olhando para trás. E quando eu comecei a correr atrás dele, ele gritou. Gritou bem alto, porque os vizinhos surgiram nas janelas e eu tive que deixar prá lá. Na confusão, quem apanhou foi justamente quem não me xingou, mas eu pedi desculpas, dizendo que pensei que os dois tinham me xingado. Mas, disse também que o A.L. escapou naquele momento, mas quando eu o encontrasse de novo, ele que se preparasse.
No meu bairro em Formiga, este fato se espalhou e quem me conhecia, ainda que só de vista, nunca mais mexeu comigo. Meus amigos mais próximos me contaram que os garotos contavam como eu saí em desabalada carreira atrás dos dois que me xingaram, como um voou dois metros e como o outro correu feito um louco gritando “manhêê!”.
Anos depois o meu amigo relembra o fato e ri:
- Se você escutasse, você entenderia porque o pessoal surgiu nas janelas. O A.L. gritou tão alto, mas tão alto, que até eu pensei que você estava matando o menino. Você derrubou o Z.P. e quando começou a correr atrás do A.L. ele gritou “mãããããããããeee” tão prolongado e tão alto, que era capaz da mãe dele escutar mesmo – o A.L. morava alguns quarteirões à frente.
Não aconteceu o entrevero com o A.L. Não o vi durante muitos dias. E um dia ele tomou uma atitude muito digna. Ele me procurou e pediu desculpas. Esclareceu que foi uma coisa do momento, raiva do jogo perdido. Ele se tornou um bom amigo, sempre que eu o encontrava, conversávamos. Ele era cruzeirense também, o que facilitava sobre o que falar.
Os surdos não consideram os defeitos físicos ou estéticos como motivo de chacota. Na verdade, nós surdos, utilizamos o defeito ou algo diferente na aparência da pessoa, para criar o seu sinal particular. O meu sinal tem origem nos óculos. Muitos outros recebem o seu sinal devido a pintas na face ou em outras áreas do corpo. O tipo de cabelo, franja, tiara ou qualquer artefato mais chamativo que a pessoa usa, pode-se tornar o seu sinal pessoal. Por isso o bullying não é comum entre os surdos: eles consideram os defeitos apenas uma característica pessoal. Mas, um grupo de surdos consegue azucrinar um desafeto, o ignorando ou não permitindo sua participação nas brincadeiras do grupo.
Todo surdo, com surdez profunda ou não, lê facilmente nos lábios os xingamentos mais comuns, seja “viado”, “filho da p*” ou “vai tomar no c*”.  São xingamentos que o acompanham durante toda a vida, seriamente ou em forma de brincadeira (os ouvintes acham a maior graça quando xingam um surdo de “viado” e o surdo entende).