sábado, 11 de fevereiro de 2017

Surdos e piadas

Os amigos insistiam em fazer brincadeiras com palavras, principalmente porque eu, não tendo dificuldades com o português, muitas vezes parecia ser a vítima ideal. O Amarildo adorava estas brincadeiras de palavras e vez ou outra estava tentando me pregar peças:
- Aquele nosso amigo tem o apelido de Bibi Xixi... Chama ele pra você ver...
Eu percebia o duplo sentido na palavra “bibi”, mas como ele escreveu com o alfabeto manual fui em frente e chamei:
- Ô, Bibi Xixi...
O Amarildo começa a gargalhar feito louco, me apontando:
- Hahahahaha, você bebeu xixi???
Eu explico:
- Meu amigo, você escreveu (com o alfabeto manual) BIBI e não BEBI. Há uma grande diferença entre estas duas palavras, mesmo que o som seja parecido...
- Ah, nada disso. Você caiu na pegadinha e não aceita.
- Como caí na pegadinha, Amarildo? Se você está tentando uma pegadinha de palavras comigo, você não pode usar o alfabeto manual. Você escreveu o apelido Bibi e não o verbo da palavra beber. No momento que você fez isso, a pegadinha morreu.
Meu amigo não aceitou muito bem essa explicação. Para ele, eu caí na pegadinha.
Na roda de amigos, eles perguntaram então, como os surdos fariam esta brincadeira:
- É muito raro brincadeiras dos surdos com duplo sentido das palavras.
- Por quê?
- Porque ao utilizar Libras cada palavra terá seu sinal próprio. Assim, embora no português você possa dizer “galo” para a ave e para um calombo na testa; em Libras vão ser utilizados dois sinais específicos. Não tem como confundir um com o outro. Você pode dizer “você quer um galo?”, mas vai ter que especificar que “galo” é esse.
Lembro-me de outro amigo me perguntando (era carnaval):
- Você está com a barriga cheia de beber (bebê)?
- Heim?
É outro ponto a ressaltar. Dificilmente eu respondo algumas perguntas sem perguntar “o que?” ou “heim?”. É outro fator que “quebra” muitas brincadeiras de palavras.
- Você está com a barriga cheia de beber?
- Cheia o que?
- De beber! – e ele fez o sinal de beber, movimentando o polegar diante da boca.
- Ah, sim, bebi bastantinho...
- Hahahahaha, você está com a barriga cheia de bebê? – e fez o sinal de embalar um neném.
- Não, né? Você mesmo fez o sinal de beber e não de bebê.
Foi outro que discutiu bastante, não querendo aceitar que a brincadeira não funcionou comigo.
Os surdos utilizam muito mais as brincadeiras visuais. As piadas envolvem surpresas com a própria surdez, com os sinais e as pegadinhas muitas vezes precisam de um colega para combinar. Assim como há pessoas que sabem contar uma piada e outros não, também há surdos que são excelentes para interpretar uma piada e outros não. As piadas dos surdos são engraçadas em Libras. Em texto, perdem muito do seu potencial, que é a dramatização, a mimetização dos personagens, as expressões faciais. Grande parte das piadas envolve a questão da surdez e características da comunidade surda.
São piadas famosas a do soldado surdo e o soldado ouvinte, o pássaro surdo, o lenhador, o barbeiro.
Uma piada comum entre os surdos é a do leão. Inclusive, é uma piada quase universal, pois surdos de outros países também a contam, com algumas variantes. Há vídeos no youtube possibilitando ver esta piada contada por surdos brasileiros, americanos, portugueses e franceses.

“O leão.
Um violinista realiza seu sonho e compra um violino Stradivarius. Procura um local para tocar o violino, mas a sala está cheia de empregadas varrendo e conversando. Vai para uma montanha, mas a montanha estava cheia de alpinistas contando das escaladas. Então, ele vai para o deserto africano e enfim, sozinho, começa a tocar seu violino. Aparece um leãozinho, novo, mas forte e faminto. O violinista mais que depressa toca seu violino, uma canção lenta e tranquila. O leãozinho dorme. Que alívio! Mas quando o violinista vai sair do local aparece a mãe do leãozinho, uma leoa grande e feroz. Com calma, ele volta a tocar seu violino, outra canção lenta e tranquila. A leoa adormece também. Quando ele pensa que poderá ir embora, aparece o leão. O violinista volta a tocar outra música tranquila, mas o leão continua avançando. Ele toca mais rápido, mas o leão continua avançando. Passo a passo o leão se aproxima e devora o violinista. Que azar! Era um leão surdo!”

Devido aos direitos autorais dos colegas surdos que gravam os vídeos com essas piadas, não estou colocando nenhum aqui. Sugestão: procurar no google “piadas em Libras”, que retornará inúmeros vídeos.


domingo, 29 de janeiro de 2017

Meus tempos de jornaleiro - O Lavador de Carros

Meu trabalho na banca de revistas era complicado; eu tinha que ler nos lábios das pessoas o nome da revista solicitada. Dificilmente eu não entendia, por um motivo muito simples: sabendo o nome de todas as revistas e jornais que eu tinha à venda, era fácil comprrender o que estavam pedindo. Já relatei que o marinheiro Cláudio se tornou um bom amigo e me auxiliava de vez em quando. Outro que aprendeu a conversar comigo foi o lavador de carros, que lavava os carros dos associados do clube próximo à banca. O nome dele era Ricardo. Eu vendia cigarro "picado" (expressão para venda de cada um dos 20 cigarros de um maço) e o Ricardo pedia um, dois, cinco, dez cigarros por dia. Eu ficava no prejuízo e então eu combinei com ele:
- Ricardo, não posso lhe dar cigarros sem cobrar. Vou lhe dar dois por dia, mas o resto você paga, certo?
Ele riu e concordou. Pedia um cigarro de manhã e um de tarde. Eu lhe dava muitas gorjetas, pois ele me ajudava bastante. Buscava almoço, quando eu não levava marmita. Telefonava para mim, quando o jornal não era entregue (apesar do pouco estudo, ele era esperto, conversava ao telefone com segurança, entendendo o que eu solicitava). Algumas vezes eu lhe dava cigarros, outras, dinheiro mesmo. Eu preferia lhe dar cigarros, pois sabia que muitas vezes o dinheiro que ele pedia era para beber. Ele bebia muito e o mais triste era quando ele chegava de manhã, bebâdo, cambaleando. Muitas vezes eu dizia para ele:
- Ricardo, ninguém vai lhe entregar chave de carro hoje. Você bebeu muito!! Melhor você voltar mais tarde. - eu lhe dava um cigarro, ele ia embora e voltava mais tarde, um pouco melhor.
Ele sumiu uns tempos e eu comentei com o Cláudio:
- Tem quase um mês que não vejo o Ricardo.
- O Sérgio (filho de um morador local) disse que ele foi atropelado.
A família do Sérgio ajudava bastante o Ricardo. Davam alimento, roupas e permitiam que ele pegasse água no quintal da casa deles para lavar os carros, para evitar ficar pegando água no clube direto.
Dias depois o Ricardo apareceu, dizendo que ia ganhar um bom dinheiro por causa do atropelamento. Conversando ali na banca, eu, ele e o Cláudio, eu pedi para ver o Boletim de Ocorrência. Depois que ele se foi eu disse para o Cláudio:
- Infelizmente ele não vai ganhar nada!
- Porque não?
- No BO estava escrito "a vítima apresentava sintomas de embriaguez". Neste caso fica muito difícil conseguir indenização.
Realmente, ele nada ganhou. Continuou ali, lavando carros. Continuava aparecendo bêbado em alguns dias, quando era um bocado difícil manter a paciência com ele. Nestes dias, os associados não deixavam ele lavar carros e ele ficava sentado próximo à banca. Às vezes conversávamos amenidades. Ele morava na favela ali por perto. Morava sozinho. Sumia alguns dias e depois aparecia alegre, contando que trabalhou de ajudante de pedreiro e ganhou uma boa grana. Eu e o Cláudio até sugerimos que ele deveria trabalhar como ajudante de pedreiro com carteira assinada, na construção civil. Mas, embora ele tenha tentado, a bebida era um problema sério. Ele acabava ficando apenas 30 ou 45 dias trabalhando fixo.
Uma vez alguns pivetes pararam diante da banca e ameaçaram pegar os jornais. Eu fiquei de pé e os encarei (a banca está acima do nível do chão e quando eu ficava de pé, parecia ser mais alto do que sou). Mesmo assim eles não desistiram e começaram a socar a banca pela parte de trás. Eu "senti" o barulho, saí da banca e disse:
- Podem esperar! Vou chamar o Ricardo; ele mora lá no morro também e é meu amigo.
Era um blefe, pois o Ricardo era pacífico. Porém, eles não arriscaram e não mexeram mais comigo.
O Ricardo sumiu novamente e o Cláudio apareceu com o semblante sério:
- Você sabe do Ricardo?
- Não, ele sumiu, já tem muitos dias! Que aconteceu?
- Ele morreu! O Sérgio me contou agora mesmo!
- Que coisa! O que aconteceu?
- Parece que foi problema com a bebida mesmo. Ele morreu no barraco dele, não tinha marcas de violência. O pessoal do Sérgio que foi lá, trataram do enterro dele.
Fiquei muito triste; ele era novo, tinha trinta e poucos anos. Mas, a morte não escolhe idade. Morreu lá no barraco dele, sozinho, bebendo. Mais uma das pessoas que a sociedade não consegue absorver, tornar cidadão.

Publicado originalmente em 10/04/2011.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Meus tempos de jornaleiro - O Marinheiro

Cláudio apareceu na banca apoiado em muletas, para comprar o jornal de domingo. Ele tinha uma amputação na perna direita, logo abaixo do joelho. Posteriormente, aparecia para comprar cigarro picado. Ficou espantando quando soube que eu era surdo. E tempos depois disse que ficou satisfeito por eu ter perguntado logo:
- O que houve com sua perna?
- Eu tive um ferimento e como sou fumante inveterado, ele não cicatrizou. Gangrenou e teve que amputar. Por causa do cigarro mesmo!
- E você continua fumando.
- Agora também não importa mais.
Ele era marinheiro. Morava em Campos, RJ, e vivia em navios e no mar. Essa era a vida dele. Contava casos da marinha, dos navios petroleiros, com entusiasmo. Como o navio demorava para fazer uma curva. Ele contava, rindo, que era tranqüilo, uma tempestade em alto mar, devido a segurança do navio.
Mas, ele demonstrava uma amargura muito grande pelo revés causado com a amputação. Talvez por isso se tornou um bom amigo. Ele percebeu que em épocas diferentes, enfrentamos quase o mesmo dilema. Eu lhe contei que houve uma mudança muito brusca no meu viver, a partir do momento em que acordei surdo no hospital. Mas, que graças a Deus, eu consegui superar todas as dificuldades e... foi com esta frase que iniciamos longos debates sobre religião. Porque ele disse que não acreditava mais em Deus, não tinha como. Que ele era muito religioso, mas considerava a religião uma enganação mesmo!
- Você pediu a Deus que não amputassem sua perna, certo?
Ele me olhou surpreso e riu:
- Eu não disse isso...
- Mas, chego a esta conclusão devido ao fato de que, quando estamos em situação de extrema dificuldade, costumamos buscar a Deus, ao contrário dos momentos em que estamos bem, que sequer lembramos de agradecer. Aí vem o problema, que é o fato de Deus não atender o que pedimos. Para muitos é assim mesmo, se somos atendidos, estamos com Deus, mas se Ele não nos atende, então Ele é o culpado.
- Sim, eu pedi muito a Deus que não me amputassem a perna. Minha vida era a marinha. Mas, Deus não existe, é apenas uma ilusão vendida pelas igrejas, todas as igrejas.
Foram muitos e muitos debates sobre religião, Deus, Cristo. Ele estava na casa da irmã dele, próximo à banca. E quase todos os dias aparecia na banca, comprava cigarro picado e conversava muito comigo. Aprendeu o alfabeto manual; e eu, como bom “ouvinte”, era uma espécie de terapia para ele. Me contava quase tudo que o envolvia: o benefício do INSS pela invalidez, a possibilidade de usar uma prótese, o filho que tinha em Campos (era separado); familiares de Goiás, que ele visitava de vez em quando, entre tantos outros fatos relevantes.
Um dia apareceu com a prótese; ainda de muletas. Explicou que estava se adaptando, que ainda tinha muito medo de cair. Mas, que iria largar as muletas em breve. Já não era mais o marinheiro carrancudo, que mal sorria. Ria de nossos debates e lembro da vez que estávamos, novamente, discutindo religião:
- Bom, você diz que Deus não existe. Vamos retrocedendo, para termos idéia de onde viemos, de como tudo surgiu.
- Voltamos para a pré história, para o homídio, para os dinossauros, para a terra sem nada, vazia, para o mundo sem os planetas, antes do Big Bang, que é a teoria que acho mais plausível.
- E como ocorreu o Big Bang, Cláudio?
- Não havia nada... e a explosão de uma poeira cósmica deu início a tudo isso.
- Para causas e efeitos é necessário uma reação, certo?
- Sim, e daí?
- Daí que eu pergunto: quem jogou esta poeira cósmica que começou tudo? – e fiz o gesto de quem joga algo para o alto.
Ele riu, ficou sem resposta. Reconheceu que eu era um bom debatedor. Eu disse que tinha a vantagem de estar ali na banca, cercado de revistas que forneciam muitos ensinamentos, temas, teorias e opiniões.
Uns três meses antes de eu vender a banca, ele não aparecia mais frequentemente. Estava voltando a viver, outros interesses, mulheres. Planejava alguma coisa, para Goiás ou mesmo voltar para Campos, embora ele reconhecesse que voltar para Campos seria um martírio, ficar perto do mar, dos navios, daquilo que ele mais amou na vida.
Foram mais ou menos três anos que ele passou a conviver comigo ali na banca. E depois destes três anos ele estava seguindo outros caminhos. Somos todos passageiros... e um dia, o meu amigo marinheiro, também passou.

Publicado originalmente em 05/12/2010

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Inclusão de recursos audiovisuais nas salas de cinema

É uma grande conquista dos cegos e dos surdos brasileiros. Prazo de 6 meses para a legenda descritiva e de 12 meses para a Libras. Importante ressaltar o seguinte:  "Os recursos serão providos na modalidade que permita o acesso individual ao conteúdo especial, sem interferir na fruição dos demais espectadores." Ou seja, somente os espectadores surdos terão acesso à Libras e somente os espectadores cegos terão a legendagem descritiva.
Clique para ler
As empresas que comercializam sistemas de acessibilidade estarão participando dos trabalhos de implementação dos recursos.
Minha curiosidade está relacionada ao filme com acessibilidade em Libras, em que somente os espectadores surdos verão a tradução em Libras. Para os cegos, fones de ouvido com som exclusivo, fornecerão a legendagem descritiva. Mas, e para os surdos? Como a Libras será visível somente para estes espectadores?
Se alguém sabe como isto será feito, pode esclarecer nos comentários.

Recentemente tivemos muitos surdos reclamando da falta de legendas nos filmes. A reclamação era devido aos cinemas não disponibilizarem cópias legendadas de alguns filmes. Todas as sessões de fim de semana de alguns filmes eram dubladas. A cópia legendada era exibida somente no meio da semana, partindo daí a reclamação de espectadores surdos. Os filmes brasileiros também não disponibilizam legendas. A opção de legendas é a minha preferência para assistir filmes, sejam estrangeiros ou nacionais. Mas, sei que alguns surdos prefeririam a Libras. 

Também houve uma campanha para que a Netflix legendasse os filmes nacionais. Aparentemente, a empresa disponibilizou o closed caption para os filmes nacionais, tornando estes filmes acessíveis para os surdos. Os filmes nacionais mais antigos, porém, continuam sem a opção de closed caption.

Publiquei post recentemente sobre filmes em Libras. Para ler, clique AQUI.

sábado, 20 de agosto de 2016

Na roça.

A jardineira
Num fim de semana fomos, eu e meu primo, para a roça dos pais do Jamir. Fomos, nós três e a irmã mais velha do Jamir, na jardineira, um ônibus antigo, com frente de caminhão Mercedes Benz. Nós achávamos o máximo andar de carro ou ônibus. Hoje, acredito que veículos motorizados são uma coisa muito banal para as crianças. Não tem a empolgação que a gente tinha. A jardineira levava diversos moradores da roça, com suas compras, alguns com seus animais de pequeno porte (galinhas, pintinhos, patos). Na roça, nós três ficamos a brincar na área em volta da casa principal da fazenda.
Hoje também é difícil a criançada simplesmente brincar sem mais nem menos. Muitas vezes os adultos ditam para as crianças; brinca disso ou daquilo, sem contar os absurdos de chegar em alguma roça com a criançada e a primeira pergunta deles é: cadê o videogame? A casa dos pais do Jamir não tinha energia elétrica naqueles tempos. À tarde, nós três estávamos brincando no laranjal e o Jamir propôs de experimentar laranjas diferentes. Ele sabia qual era qual; São João, bahia, seleta, laranja-lima, laranja-pêra, etc, etc. Nesse meio tempo as irmãs do Jamir passaram por nós e disseram:
- Nós vamos ali e já voltamos. - a irmã mais velha do Jamir era colega das minhas irmãs mais velhas, estudavam o antigo magistério, seriam futuras professoras.
- Tá bão, - respondeu o Jamir - a gente fica brincando aqui.
Nós mineiros e este "ali" é complicado... O "ali" pode ser a esquina da rua ou quilômetros de distância. Lembro que os pais do Jamir também foram, na charrete. As irmãs do Jamir foram a cavalo.
Ficamos ali no laranjal, brincando e rindo, conversando fiado, subindo em algumas árvores. O tempo foi passando, a tarde avançando e começando a escurecer. Voltamos para a casa da fazenda, mas dentro estava escuro demais, então ficamos na escadaria. A escuridão da casa era mais assustadora do que a penumbra fora. Sentimos falta dos adultos:
- Seu pessoal está demorando, Jamir. - eu disse.
- Pior que num entendi onde eles falô que ia.
- Parece que sua irmã queria ver um rapaz, acho que Francisco.
- Vixi, então eles foi na fazenda do Seu Norato.
Ficamos os três a fitar a estrada ao longe, a claridade cada vez menor. Os três sentados na escadaria, a casa da fazenda já estava totalmente às escuras. Meu primo inventa:
- Vou beber água...
Sobe os lances da escada, passa pela porta da entrada e retorna.
- Não ia beber água? - perguntei.
- Não enxergo nada lá dentro!
A única coisa que evitava o nosso pânico era a companhia um do outro. Já não era possível avistar o caminho ao longe. Apenas uns cinco metros à frente. Os três, sentados juntos nos degraus, temendo a escuridão que começava a tomar conta de tudo, o silêncio assustador, entrecortado por alguns sons de pássaros e animais noturnos.
De repente, ouvimos ao longe o tropel de cavalos. Não era possível avistar quem se aproximava. Só o som dos cascos dos cavalos no chão de terra. Ficamos de pé, quase ao mesmo tempo, forçando a vista para ver quem chegava. Dava para escutar as batidas dos três corações; como bumbos em ritmo acelerado. O tropel de cavalos se aproximava, nós três de pé na escadaria, começamos a subir os degraus de costas, devagar, olhos arregalados. O medo de não saber o que se aproximava dava coragem suficiente para entrar na casa às escuras, se necessário fosse. Nós três, subindo a escadaria de costas, no mesmo ritmo, era a imagem pura e simples do medo.
Então ouvimos uma voz:
- Eu devia ter botado uma sela neste cavalo.
Aliviados, reconhecemos a voz de uma das irmãs do Jamir. Eles chegaram, os pais do Jamir de charrete e a mãe dele perguntou:
- Porque vocês não entraram, meninos? E você, Jamir, nem para acender uma lamparina?
Rimos. Nenhum de nós falou nada. Mas, qual!, a casa às escuras dava mais medo que o quintal com a claridade normal de uma noite limpa.

*Os nomes citados não são os verdadeiros.
Publicado originalmente em 2010.

domingo, 24 de julho de 2016

A lista negra

A convivência com os surdos possibilitou a percepção de que alguns ficavam marcados por toda a vida devido a algum ato errado. Mesmo após anos, o fato marcante envolvendo o surdo era a referência dele. Ainda que ele tivesse mudado, dificilmente conseguia modificar sua referência. Quando trabalhei como um dos responsáveis pelos encaminhamentos ao trabalho de diversos surdos, descobri que meu colega era adepto de uma “lista negra”. Nesta lista estavam todos os surdos que haviam causado problemas no serviço em anos anteriores. Mesmo eu falando que eram novos tempos, que teríamos as portas abertas para todos, ele se apegava a esta lista. Às vezes sequer aceitava receber os surdos desta lista. Ele era o “linha dura” e, estando no trabalho de encaminhamento há mais tempo que eu, eu preferia não polemizar.
Não sei como ocorreu, mas, de alguma forma, os surdos descobriram que eu era bem mais aberto e conciliador. Assim, quando chegavam à empresa para solicitar trabalho, a secretária Renée perguntava:
- Você quer conversar com o Guarnieri?
Espertamente, eles respondiam:
- Quero conversar com o Jairo, primeiro.
Assim, tinham a oportunidade de expor os fatos, explicar que já tinham solicitado trabalho ao Guarnieri, mas que ele não os encaminhava.
Um dos primeiros foi o Wendell. Ele disse que já tinha vindo ali quatro vezes, sabendo que havia uma vaga de trabalho.
- O Guarnieri anotou meu telefone, mas não me chamou. Ele colocou meu nome no fim da fila, por quê? Agora eu soube que a vaga ainda está aberta!! – ele explicou, em Libras.
Como eu não imaginei que ele estivesse na “lista negra”, chamei o Guarnieri.
- Vamos encaminhar o Wendell para esta vaga...
- É muito arriscado. O Wendell já trabalhou aqui antes. Ele falta muito.
Mas, o Wendell disse algo concreto:
- Isto tem mais de cinco anos!!
- Mas, você ainda vende adesivos. – disse o Guarnieri. Ele realmente conhecia muito bem os surdos. – Viaja muito. Por isso, vai faltar muito no serviço. Não vai dar certo.
- Se eu começar a trabalhar, só vou viajar nos fins de semana.
Muitos surdos viviam da venda de adesivos, viajando para diversas cidades do interior mineiro. Corriam atrás do sucesso de um dos primeiros surdos a mexer com isso: a venda de adesivos, com uma rede de vendedores particular (também surdos). Sendo ele um dos primeiros, quando a competitividade não existia, ele conseguiu lucrar bastante. Só que muitos e muitos outros surdos começaram a trabalhar com o mesmo objetivo, acarretando o excesso de demanda e a consequente queda de rendimento neste tipo de trabalho.
Como o Guarnieri disse que a vaga não foi preenchida, falei que ele poderia encaminhar o Wendell.
Mas, disse para o Wendell:
- Estamos te dando uma nova chance. Porém, se você começar a faltar para vender adesivos, as portas estarão fechadas de novo.

Antonella também utilizou o mesmo subterfúgio do Wendell para falar comigo primeiro. Nesta época, porém, eu já tinha sido alertado pelo intérprete que alguns surdos estavam confiantes que poderiam voltar a trabalhar na empresa, mesmo após os sérios problemas que causaram. E todos os que processaram a empresa, brigaram fisicamente, desrespeitaram os chefes, entre outros fatos desagradáveis, também não eram recebidos por mim. Ou seja, parte da “lista negra” era realmente de surdos que não poderiam ser aceitos.
Antonella estava na lista dos inaceitáveis. Era surda profunda, pronunciava algumas palavras, mas a conversação só era possível através da Libras.
- Jairo, o Guarnieri não me chama nunca. Mas, eu sei porque...
- O que você aprontou?
- Foi muitos anos atrás, eu tinha dezoito anos. Na escola, junto com umas colegas, fui acusada de roubar outra.
- E você roubou?
Ela ficou triste. Respondeu, com os olhos lacrimejando:
- Mas, foi uma bagunça com as colegas. Nós pegamos dez reais para comprar cigarro... Hoje tenho mais de trinta anos, tenho uma filha, preciso trabalhar...
Pedi à secretária que trouxesse a ficha de Antonella. Ela não estaria na lista por causa de fatos escolares. Na ficha, encontrei algo relacionado ao trabalho. Acusação de furto.
- Aqui diz, Antonella, que você furtou sua colega de trabalho.
- Não, não. O que aconteceu... na sala de trabalho esta colega deixou a bolsa na mesa. A mesa dela era perto da minha. Mas eu não mexi na bolsa dela não. No outro dia que ela disse que eu roubei o dinheiro dela. Só que eu não roubei...
- As outras colegas também disseram que foi você.
- Porque todas lembravam o que aconteceu na escola. E duas colegas estudaram lá comigo. Por isso todos apontaram o dedo para mim. Mas, eu não roubei.
- Onde você trabalhou depois que saiu daqui?
- Trabalhei em empresa particular. Fui mandada embora tem cinco meses...
- Por que foi mandada embora?
- Não sei...
Pedi à secretária que ligasse para a empresa. Solicitasse informações sobre a Antonella e o motivo da dispensa.
- Nenhuma reclamação contra a Antonella. Foi dispensada devido à dificuldade com o português, não conseguindo redigir cartas para as filiais. Os outros serviços da empresa não poderiam ser feitos por ela, carregador era para homens, e faxina, o salário seria menor, o que é proibido.
Antonella fitava assustada a secretária discorrendo sobre sua dispensa. A secretária conversava comigo utilizando Libras também.
- Então, está tudo certo. Você sabe, Antonella, que se você for encaminhada e fizer alguma coisa errada, eu serei responsabilizado? E não vai ter como eu falar nada a seu favor?
Ela respondeu que compreendia.
Guarnieri, já na sala, preparando um encaminhamento, observou:
- As colegas não vão aceitar trabalhar com ela neste setor. Elas estudaram juntas.
- Então, arrume uma vaga em que ela trabalhe sozinha.
- Você sabe o que ela fez? – perguntou o Guarnieri.
- Sim. Mas também conversei com o David – o intérprete que fazia os relatórios dos problemas nos locais de trabalho – e ele explicou que a colega acusou o furto no outro dia, sem muita certeza. De todo jeito, a Antonella vai trabalhar sabendo que, qualquer coisa ela será responsabilizada e sem chance de voltar a trabalhar com a gente.
Antonella ficou muito feliz com a oportunidade e me agradeceu efusivamente.

O Enzo não estava na lista. É um caso diferente. Recebemos ligação do setor onde o Enzo trabalhava. O chefe do setor informa:
- O Enzo não vem trabalhar a dois dias! Podem mandar outra pessoa para o lugar dele.
O Guarnieri já estava providenciando a substituição e o novato seria enviado na tarde daquele dia. Mandamos a secretária pedir notícias do Enzo. Ela ligou para a casa dele, a esposa do Enzo atendeu, disse que estava tudo bem. Não sabia por que ele não foi trabalhar. Pedimos que ele viesse conversar conosco. O Enzo era um surdo atleta, participava de maratonas em Belo Horizonte. Sempre o via com a camisa do Cruzeiro.
Ele chega assustado. Eu, Guarnieri e o terceiro diretor na sala, junto com a secretária.
- Você faltou dois dias e não avisou ninguém, Enzo!! Como você faz uma coisa dessas?? – o Guarnieri foi direto ao assunto, sem rodeios.
Antes que ele falasse alguma coisa, eu acrescentei:
- Agora a gente vai mandar um substituto lá para o seu serviço. Você vai ter que esperar aparecer outra vaga.
- Não! Não pode! Como eu vou fazer? Preciso do trabalho. Telefona para meu chefe, diz que eu vou trabalhar hoje!!
- Por que você faltou sem avisar??
- Minha esposa caiu na escada. Não podia nem andar. Machucou muito a perna. Por isso que eu faltei. Eu estava ajudando ela lá em casa...
- Caiu na escada??
- É, caiu!! – e levantou-se e dramatizou a queda – Ela foi andando assim e a escada pequena, três degraus, ela pisou em falso, caiu de mau jeito em cima da perna... Ficou muito ruim. Não conseguia andar...
Nós três diretores nos entreolhamos, com vontade de rir. A secretária baixou a cabeça. O Enzo suplica:
- Por favor, Jairo. Liga lá para o Santiago – o chefe dele – diz que eu vou hoje, trabalhar. Não vou faltar mais não.
- O Guarnieri já mandou outra pessoa... Se o seu chefe gostar desse novato, não podemos fazer nada...
- Que dia o novato vai começar? – perguntou o Enzo, desesperado.
- Hoje, às 13 horas. Daqui a quarenta minutos.
- Liga para o Santiago... vou hoje, agora!!
A secretária liga. Diz que os diretores estão pedindo para ele reconsiderar a substituição do Enzo e aceita-lo de volta. O Santiago reluta, mas acaba aceitando.
Falei com o Enzo:
- Vá para seu serviço rápido. Você tem que chegar lá antes do novato começar a trabalhar. Fale para o novato vir aqui conversar com o Guarnieri.
- Você tem que chegar lá no seu serviço em meia hora – brincou o Guarnieri. - 
É melhor correr.

Às 13:05 h a secretária nos reúne e informa:
- O Santiago acabou de ligar. Informou que o Enzo chegou todo suado. Parece que foi correndo, daqui até lá. O Enzo agradeceu ao Santiago. Está trabalhando normalmente...
Nós rimos muito. Soubemos depois que ele, realmente, foi correndo da nossa sede até o local de serviço em trinta e dois minutos. Provavelmente a esposa nunca caiu da escada. Logicamente, ela teria comunicado isso, quando a secretária ligou pedindo informações sobre a ausência do Enzo no trabalho.

Dos surdos da “lista negra” do Guarnieri, que eu insisti em dar uma nova chance, apenas dois deram problemas novamente.

Wendell, Antonella e Enzo nunca deram mais problemas.


Exceto o meu, todos os demais nomes estão trocados, por motivos óbvios.


sábado, 9 de julho de 2016

Filmes em Libras

A minha preferência pessoal é por legendas nos filmes. Mas, sei que parte da comunidade surda gostaria que houvesse filmes com Libras. Para beneficiar todas as camadas diferentes da comunidade surda, existe um site que colocou acessibilidade audiovisual em alguns filmes, As diferentes identidades surdas complicam a acessibilidade para todos. Lembro que chegando na casa do meu colega, intérprete, percebo o pai dele, surdo profundo, assistindo o canal de tv de uma rede evangélica.
- Mas, ele é católico!! - eu disse. - Mostre para ele o canal de uma rede católica.
- Ele conhece o outro canal, Jairo, mas não gosta, porque só tem a legenda. Ele prefere esse, porque tem a intérprete de Libras.

Muito importante a iniciativa do site Filmes que Voam, em legendar e ao mesmo tempo incluir também a Libras. Parte da comunidade surda que não desfruta de filmes, nem mesmo os legendados, será beneficiada com a iniciativa.

Para assistir os filmes, basta ir ao site (www.filmesquevoam.com.br) e clicar nos canais de acessibilidade: Canal FQV - Acessibilidade ou Canal FQV Kids - Acessibilidade.

As diferenças de acessibilidade para os surdos é um grande complicador, pois há desinformação na forma de tratar os surdos.
- Surdos que preferem Libras em todos os momentos - sua língua mãe é a Libras. 
- Surdos que preferem a escrita (português) e a Libras - normalmente sua língua mãe é o português, mas utilizam também a Libras. Portanto, para escrita, legendas, informações em quadros ou painéis, preferem o português, mas em uma palestra, conversação ou apresentação, preferem a Libras ou o intérprete de Libras.
- Surdos que preferem somente a escrita (português) e a leitura labial - são os surdos oralizados que não conhecem e não se interessam pela Libras. Toda comunicação para eles deve ser em português.

Por isto, muitas vezes nos deparamos com conteúdo que beneficia somente uma parte da comunidade surda, pois só contém legendas ou somente Libras. Esclarecemos sempre para os que produzem vídeos de acessibilidade que é necessário legendas e Libras, para não excluírem parte da comunidade surda.