sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A cruz preta.

Eu e meu amigo Tonho ajudamos a mudança de um dos nossos vizinhos. Ao fim da trabalheira voltamos na casa vazia e nos objetos descartados pela família que mudava, meu amigo pegou uma cruz pintada de preto, com base para ficar de pé, feita em madeira (um dos filhos da vizinha trabalhava na madereira que havia na Rua 13 de Maio).
Muitas vezes eu ia na casa do meu amigo cedo, chamá-lo para jogar bola. Como eu era "de casa", ia entrando e muitas vezes eu que o acordava. Numa destas vezes após acordá-lo, observei:
- Por que você colocou a cruz no chão e não no seu criado-mudo?
O Tonho, que escrevia as frases com o alfabeto manual dos surdos numa velocidade incrível, respondeu:
- Ué, ela estava em cima do criado. Devo ter derrubado de noite, sem ver.
Sem nos preocuparmos mais com isso, fomos jogar bola. Dias depois, coincidência ou não, quando fui acordá-lo, a cruz estava no chão novamente. Também os cigarros (a gente fumava naquela época), o isqueiro e a carteira. Ele achou estranho desta vez e comentou:
- Mais estranho é que não dormi muito bem. Tive uns sonhos ruins...
Alguns dias depois, à noite, estávamos conversando no quarto dele e eu perguntei:
- Cadê a cruz?
- Resolvi tirar daí. Depois que você notou a cruz no chão, eu passei a perceber que todo dia eu acordava e a cruz, meus cigarros, o isqueiro e o que mais eu colocasse no criado ia parar no chão.
- Você tá brincando!!
- Não! Minha irmã - que tinha um quarto próximo - já me falou que de noite escuta eu jogando as coisas no chão. Um dia ela pensou que eu estava meio "de fogo" (bêbado) e levantou para me xingar. Mas, acendeu a luz e viu que eu estava dormindo.
- Você acha que é culpa da cruz?
- Antes de eu trazer esta cruz para cá, nunca aconteceu nada disso. Mais estranho é que tenho pesadelos quase toda noite.
Nós éramos bastante religiosos à epoca. Íamos à missa aos domingos, participávamos de Grupo de Jovens, visitávamos o asilo, o orfanato e hospitais. Difícil crer que uma cruz preta estaria fazendo algum mal. Em matéria de religião não gostávamos de brincadeiras e eu sabia que o Tonho não estava mentindo. 
- Onde você colocou a cruz?
- Aí é que está, Jairo. Não sei o que fazer com ela. Estou com medo de queimar. Pensei em jogar no lixo, mas não quero que ninguém encontre esta cruz mais.
Ele buscou a cruz, que estava na sala. Ficamos olhando espantandos para aquele objeto de madeira, pintado de preto, inofensivo, um símbolo religioso que lembrava Cristo. Não estávamos temerosos, apenas um tanto incrédulos. Seria a cruz mesmo que estava causando tantos dissabores noturnos ao meu amigo? Calados, fitando a cruz, a irmã do meu amigo chama:
- Tonho?!?
Ele dá um pulo, assustado; o susto dele me assusta mais ainda e eu, que segurava a cruz, joguei-a longe.
A irmã do Tonho se espanta:
- Que isso? Que vocês estavam fazendo?
Eu e o Tonho desatamos a rir. Pegamos a cruz e o Tonho contou a história.
- Que faço com essa cruz agora?
- Já levaram os entulhos da casa da D. Edite?
- Não, porque?
- Põe a cruz de volta onde você pegou.
Foi o que o Tonho fez. No outro dia eu cheguei cedo, ele já estava acordado e percebeu minha curiosidade sobre como tinha transcorrido a noite:
- Estranho mesmo! Não tive pesadelos. Meus cigarros e meu isqueiro ficaram em cima do criado. Tudo normal.
Nunca tivemos uma explicação lógica para esta história. Pelo sim, pelo não, nunca desrespeitei qualquer símbolo religioso, de qualquer religião.

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