segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O verdadeiro trabalho de Hércules - Parte II

Parte I
M
as ele era bastante frágil em relação a todos os garotos no campo. Aparentava ter sete ou oito anos. Era bem menor que o irmão.
Com o intervalo do jogo ele foi para junto dos companheiros de time. Eu observava de longe, percebendo que ele conversava com todos, buscava água para um e outro, incentivava e alegrava os amigos. Não podendo ajudar os amigos dentro de campo, tornou-se mascote, conselheiro e incentivador do time.
O segundo tempo começou com o time das camisas vermelhas procurando o gol a todo custo, uma vez que só a vitória interessava.
O garotinho Hércules senta-se do meu lado e recomeça a tagarelar:
- O time vai partir pra cima, pois precisamos ganhar este jogo, para disputar a final. O Zé Gambá disse que o time deles já está cansando pelo lado esquerdo e é por ali que o Latinha deve atacar e tentar mandar a bola para meu irmão na área.
- Você estuda? Pretende se formar em alguma coisa?
- Eu estudo sim. Eu sou colega de sala do meu irmão, porque ele já tomou uma “bomba” – ele queria dizer que o irmão foi reprovado. – Agora eu ajudo ele e ele vai passar de ano junto comigo e a gente vai tentar alguma coisa, mas aqui no bairro é difícil. Meu irmão gosta mais de futebol do que de estudar, mas o Juiz já falou que se não estudar, não joga. Aí eu ajudo meu irmão e ele melhora nos estudos e joga também.
- Em que você gostaria de se formar?
- Eu quero ser médico. Um dia meu irmão cortou a perna e eu fui com ele no hospital. Minha mãe nem aguentava ver o tanto de sangue que saía da perna do meu irmão. Eu que fiquei com ele e ajudei o médico a dar os pontos no corte. – ele contava o fato com uma alegria espontânea – Eu gostei muito de ver que o médico ajuda as pessoas e até salva vidas. O médico deixou eu ver ele costurando o corte na perna do meu irmão. Eu até entreguei o gás para ele; o gás não, é aquele troço branco, quase igual as bandagens que o pessoal usa de proteção nos jogos.
- Gaze. – eu ri.
- Isso, gaze! Aí eu falei para o médico que quando crescesse eu também seria médico. E o médico me disse que eu tinha que estudar muito, porque medicina exige muito estudo. Eu estou estudando. Mas aqui no bairro o que a gente mais encontra é professor. Não quero ser professor não, não tenho paciência para ensinar nada. Ensino meu irmão porque ele é meu irmão.
- Pelo menos você é sincero! E isto é muito importante quando abraçamos uma profissão. Não adianta seguir uma carreira se você não se sente satisfeito com ela.
A conversa foi interrompida para acompanhar com atenção um contra-ataque do time. Mas o Pastorzinho errou o passe para o Latinha, facilitando a defesa do time das camisas verdes. O garotinho reclamou com o Pastorzinho, mas sem utilizar nenhum palavrão.
- Pastorzinho do céu! – berrou o garotinho – Faça o lançamento direito, capricha! Não use o seu pé torto! Tenha fé!
Parece que o Zé Gambá pespegou um adendo ao apelido do Pastorzinho, um “tenha fé”, quando se dirigiam ao garoto.
- O Pastorzinho gosta de complicar o que é simples. Bastava caprichar no passe que dava! – e voltou abruptamente para o assunto de profissão – Eu tinha pensado em ser advogado, um dia eu vi um filme legal, o advogado levanta lá e fala “objeção!”, “protesto”, essas coisas tudo e o juiz acaba dizendo que o homem é inocente. Mas, não gostei não...
- Porque não?
- É que ele estava defendendo um criminoso mesmo. Aff, não quero defender bandido não. Imagina defender o João Baiano!, se não conseguir livrar ele, ele manda os traficantes tudo fazer uma peneira com a gente...
- Fazer uma peneira?
- Encher a pessoa de bala, tanta bala que o corpo fica parecendo uma peneira de tanto buraco... – eu percebi que ele tinha baixado o tom de voz.
- Você tem medo do João Baiano?
- Todo mundo tem medo dele. Um dia eu até vi o revólver na cintura dele, mas o Juiz já falou que é pra gente ficar longe do João, não fazer nada que ele pedisse. E se ele pedisse era para contar para ele. O Juiz é o único homem aqui no bairro que eu conheço e que não tem medo do João Baiano. O Juiz é fogo, um dia ele entrou no boteco onde o João bebia pinga e apontou o dedo para o nariz do João e falou que era para ele deixar os meninos dele em paz.
- Bastante corajoso, o Juiz, você não acha? – mas fiquei curioso e perguntei – O que o Juiz faz?
- O Juiz é professor da escola municipal aqui do bairro. Mas o João tem medo dele por causa dos boatos de que quando era moleque igual nós, o Juiz matou um traficante aqui do bairro. O Juiz é muito respeitado aqui no bairro e...
- Lá vai seu irmão driblando!!
O garotinho começa a pular feito doido:
- Vai, vai, Romarinho, corre, corre – o irmão do garotinho corre, dribla mais um na corrida e ruma em direção ao gol – Não tenta “dibrar”, chuta, chuta, chuta!!
Mas Romarinho driblou o goleiro com categoria e chutou de esquerda para o gol. Outro golaço! O irmão de Hércules era realmente bom de bola.
O garotinho Hércules pulava feito maluco e eu mesmo tinha vibrado muito com o gol. No seu modo alegre e descontraído de contar casos, o garotinho fez com que eu me afeiçoasse ao time das camisas vermelhas. Mais de meio time correu em direção à arquibancada e enfileirados levantaram os braços três vezes, em direção ao garotinho. Hércules ergueu os braços também. A homenagem foi bonita e me deixou emocionado.
O jogo continuou bastante disputado. O time de camisas verdes partiu para o ataque, em busca do empate. Mas, os garotos de camisas vermelhas estavam confiantes, seguravam as investidas, com categoria.
O jogo estava quase terminando. O garotinho Hércules cantava alegremente:
- Vamos pra final! Vamos pra final! – batia palmas, dançava e rodopiava todo feliz.
Sentei e fiquei observando a alegria do garoto. Devia ser difícil desejar jogar bola com os amigos e não poder. Ter que participar como torcedor, não podendo correr atrás da bola, marcar gols, ser um dos astros da equipe, como o irmão. Se o time fosse campeão, a foto enquadraria todos os jogadores, mas não o garotinho que carregava as traves, a água, a bola e sozinho, representava uma grande torcida. Para a posteridade, o time seria lembrado sem o garotinho, pois a história grava os gols, os lances, o placar, o nome dos jogadores. Os que ajudam externamente dificilmente são lembrados. Eu tinha percebido a empatia entre o time e o garotinho. O quanto a alegria dele contagiava o time. Um exemplo de resiliência. Admirável!
Meu pensamento se fixava na foto do time campeão sem o garotinho e o fato me irritava:
- Hércules, se o seu time for campeão, ou mesmo vice, quando chegar o momento de tirarem a foto do time, você deve se posicionar de forma que saia na foto também.
- Por quê? – ele perguntou, intrigado.
- Porque você faz parte do time. É importante para o time e, se forem campeões, você também ajudou a conquistar o título.
Ele sorriu, pensativamente. Mas, eu lia nos olhos dele, que ele gostou da ideia e que, provavelmente, seguiria minha sugestão. Ele via o fato como uma peraltice a executar.
Eu imaginava Hércules no canto da foto, o menorzinho de todos os garotos, com aquele sorriso cativante. Indagariam quem era aquele pedacinho de gente e assim conheceriam a história de Hércules, que não era o musculoso herói mitológico e sim o raquítico incentivador do time.
O jogo terminou, os garotos de camisas vermelhas seguraram a vitória com categoria. Iriam à final. Comemoravam ainda em campo e o garotinho Hércules se preparava para se juntar a eles.
- Você virá para a final?
- Farei o possível.
- Isso que você me contou do Hércules é verdade?
- Bom, Hércules não existiu de verdade. Era um deus da mitologia grega. – achei que estava complicando a cabecinha da criança – Você pode procurar livros na biblioteca da sua escola que falam de Hércules. O seu professor de História também vai gostar de falar sobre isso em uma aula.
Acrescentei:
- O Zé Gambá provavelmente te apelidou de Hércules por gozação. Mas, sabe, você é verdadeiramente um Hércules. Hércules fez doze trabalhos que eram considerados impossíveis. Em muitos ele usou sua força física descomunal. Você fez um décimo terceiro trabalho, que foi incentivar seu time para chegar à final. – ele ria de orelha a orelha – Por isso está certo, você pode sim, ser chamado de Hércules!
Ele me deu um abraço espontâneo! Eu, sentado, era da altura dele, tão pequenino!
Afastou-se e correu em direção ao irmão e amigos que comemoravam a vitória no meio de campo. Parou a meio caminho e olhou para trás. Eu continuava sentado, embriagado pelo abraço tão afetuoso. Ele ergueu o braço numa saudação silenciosa.
Ergui meu braço também e disse:
- Adeus, pequenino!



quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O verdadeiro trabalho de Hércules - Parte I

Ali não era favela, apesar de antes assim ser chamado. Era um local pobre, mas urbanizado e limpo. Resolvi o problema com o colega que por ali morava, que se acidentara e eu levei alguns documentos para ele assinar. Descia o morro tranquilamente quando avistei o campinho de futebol. A molecada estava se preparando para um jogo. Colocavam as traves nos buracos próprios, conversavam animados, estavam uniformizados, havia juiz e bandeirinhas, adultos e mais alguns em volta de uma mesa com anotações. Admirei a organização. Sabia que algumas comunidades de bairro levavam a sério seu trabalho e, em áreas de risco como aquela faziam de tudo para que as crianças não desencaminhassem para a criminalidade. O esporte era o melhor caminho para evitar este problema.
O jogo estava para começar, time de camisas vermelhas, com faixa branca, contra o time de camisas verdes. Os calções variavam de cores, bem como, alguns com chuteiras, outros com tênis. Resolvi sentar na pequena arquibancada coberta, que proporcionava sombra agradável naquela tarde de sol. Não havia mais ninguém assistindo o jogo. Minutos antes de o jogo começar um garoto pequeno e magrinho atravessa o campo correndo e senta-se do meu lado.
- O meu time precisa ganhar hoje por vitória simples para se classificar pra final do campeonato aqui do bairro. Meu irmão é o camisa nove. Ele é bom de bola, vai marcar dois gols hoje. – o garotinho dispara a falar sem rodeios – Se a gente não ganhar vamos disputar o terceiro lugar de novo. Ano passado disputamos o terceiro lugar e perdemos. Ah, não!
O jogo tem início, a garotada correndo atrás da bola. O garotinho, magrinho como ele só, observa que estou bem vestido e conclui acertadamente:
- Você não é do bairro... O que você está fazendo por estes lados?
- Tenho um amigo que mora ali perto da caixa-d’água. – ele se descontraiu e eu continuei – Mas, qual é o seu time?
- O de camisa vermelha. Olha lá meu irmão, “dibrou” dois caras... vai, vai... ah, não, perdeu a bola. – levantou-se feito maluco e berrou tão alto que até um dos adultos em volta da mesa do outro lado do campo levantou a cabeça – Segura ele, Chumbinho!!
Chumbinho devia ser o jogador da defesa, camisa três, que parou o contra-ataque com um carrinho. Embora tenha tocado a bola, o jogador adversário caiu e o juiz deu falta.
- Foi na bola! Foi na bola! – a despeito da magreza, o garotinho tinha um vozeirão – Juiz ladrão! Foi na bola!!
- Você não tem medo de xingar o juiz? Ele é daqui do bairro?
- Sim, ele é Presidente da Associação de Moradores. Ele apita quase todos os jogos aqui do bairro e a gente chama ele só de Juiz. Ele é pai do Gabiroba, que joga em outro time. Nenhum jogador xinga ele, porque senão ele dá cartão vermelho e a suspensão é feia, teve uma suspensão de cinco jogos para o Baiacu. Aqui na torcida a gente aproveita e xinga mesmo, porque ele não pode expulsar a torcida. – e o garotinho gargalhou, com um olhar malandro.
No jogo, o defensor Chumbinho cometia outra falta. Desta vez, perigosa, próxima à meia-lua. O adversário preparava-se para bater a falta e o garotinho do meu lado esfregava as mãos nervosamente. O adversário acertou um chute potente e o goleiro não conseguiu defender. Infelizmente, 1x0 para o time das camisas verdes.
- Mas que droga! – o garotinho sentou-se, acabrunhado – O Pantera hoje não está num bom dia.
- Quem é Pantera?
- O nosso goleiro. Logo ele que é bom de defender pênalti, levar um gol de falta bobo desses. Parece até que comeu feijoada no almoço. Nem foi direito na bola.
- Caramba! Todos têm apelidos! Como é o apelido do seu irmão?
- Romarinho. Mas ele é bom mesmo, igual o Romário de verdade, “dibra” muito e faz gols de cabeça, mesmo sendo baixinho. Lá na defesa tem o Meio-quilo, aquele gordo lá. Camisa quatro.
Eu que estava rindo.
- Quem colocou este apelido de Meio-quilo nele?
- Foi o Zé Gambá. – o garotinho estava gargalhando de novo – O Zé um dia estava correndo atrás do Branca de Neve, ali na rua do Bar do Grande, porque o Branca tinha roubado uma bola dele. Só que o Branca pulou o esgoto perto do bar e o Zé, quando foi pular – o garotinho estava gargalhando e falando ao mesmo tempo – caiu dentro do esgoto. Saiu todo sujo de bosta e o pessoal não perdoou mesmo! Começaram a chamar ele de Zé Gambá e o apelido pegou. Ele apelava quando a gente chamava ele de Zé Gambá... – o garotinho ria a não poder mais – Aí a gente chamava mais ainda... Depois ele deixou prá lá.
Eu estava rindo e admirando a loquacidade do garotinho. Como falava!
Ele prestou atenção no jogo, ataque do time de camisas vermelhas, mas o jogador com a bola chutou longe do gol.
- O Latinha devia ter passado a bola para meu irmão. Ele estava livre ali no meio!
Era apelido que não acabava mais... Fiquei curioso e perguntei:
- E como eles te chamam?
- Hércules! – ele respondeu, sorridente.
- Foi o Zé Gambá que te pôs esse apelido?
- Sim, por quê?
- Ele é bastante irônico...
- Iro.. o quê?
- Ele é gozador. Chamou o gordo de Meio-quilo e você, que é magro, de Hércules. Porque ele te apelidou de Hércules?
- Bom, como você sabe eu tenho problemas de falta de ar e não posso nem jogar bola com eles. Mas, eu ajudo carregar as traves e as chuteiras e as camisas. Aí eu andava cabeludo e carregava as traves. Um dia eu cortei o cabelo e quando fui carregar as traves eu passei mal e o Zé Gambá começou a gozação comigo, falando que cortou meu cabelo, cortou minha força, então eu era o Hércules.
Eu ri um bocado. Principalmente do modo do garotinho contar o fato.
- O Zé Gambá pode ser gozador, mas está fazendo confusão com as histórias. Quem era forte porque era cabeludo era o Sansão. Hércules era forte, mas não tinha nada a ver com cabelo.
- Como você sabe disso? – ele perguntou, muito curioso.
- A história de Sansão está na Bíblia, no Livro dos Juízes. Já Hércules é um deus mitológico. Sansão era forte porque não cortava os cabelos, até que um dia Dalila descobriu este segredo e cortou os cabelos dele. Já Hércules é lembrado devido a Os 12 Trabalhos de Hércules.
- Que mulher sacana!! – ele estava rindo muito – O Pastorzinho é que gosta de contar histórias da Bíblia. Ele fica ouvindo o pastor da igreja dele e depois quer que todo mundo acredite nas histórias que ele conta. O Zé Gambá uma vez sacaneou com ele, quando ele disse que Jesus caminhou sobre as águas... – ele começou a rir antes mesmo de terminar o relato – Ele jogou o Pastorzinho no rio e ficou gritando “caminha sobre as águas, Pastorzinho! Tenha fé!!”
Eu não consegui deixar de rir. Esse Zé Gambá era o maior piadista!!
- Olha o ataque do seu time!! – alertei.
E foi um ataque fulminante, com Latinha driblando dois marcadores e desta vez, passando a bola na medida para Romarinho, que chutou forte, de primeira e marcou um golaço. O mais incrível foi a comemoração dos garotos, que correram em direção à arquibancada onde eu estava. Eu até me assustei momentaneamente ao ver a molecada correndo em minha direção. Mas, o garotinho, Hércules, desceu o pequeno desnível da arquibancada e correu até a lateral do campo, onde abraçou os jogadores do time. Após a comemoração, o irmão, Romarinho, trouxe o pequeno Hércules de volta para a arquibancada, abraçados.
- Você viu que golaço o meu irmão marcou? – perguntou o garotinho, todo feliz.
- Sim, eu vi. E vi que o pessoal do time gosta muito de você.
- É que no princípio, quando eu tinha nove anos ainda, eu jogava com eles e também marcava muitos gols, igual meu irmão. Depois eu fui ficando muito doente, muita falta de ar e também fiquei no hospital e fiquei muito magro e o médico falou que eu não podia mais jogar bola com eles.
- Quantos anos você tem agora? E o seu irmão?

- Eu tenho onze e meu irmão tem doze anos.

(continua...) Parte II