sexta-feira, 30 de julho de 2010

Fica vivo...

O portal do jornal O Tempo, traz uma reportagem sobre o valor dos jazigos em Belo Horizonte.
Os preços dos jazigos estão pela hora da morte....
Leia a reportagem
Sempre fiz piadas com a morte. Tinha uma coletânea de poesias que falavam de morrer. A morte é consequência da vida, e o mistério do que há depois da morte é uma das maiores curiosidades do ser humano (explicações religiosas a parte, claro!).

"Descansem o meu leito solitário,
na floresta dos homens esquecida,
a sombra de uma cruz e escrevam nela,
foi poeta - sonhou - e amou na vida.

Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe canto!"
Lembranças de morrer - Álvares de Azevedo

"Ai, quem me dera, que eu morresse lá na serra
abraçado a minha terra
e dormindo de uma vez
Ser enterrado numa cova pequenina, onde a tarde a sururina
vem chorar sua viuvez.

Se Deus me ouvisse com amor e caridade,
Me faria esta vontade o ideal do coração.
Era que a morte a descantar me surpreendesse
E eu morresse numa noite de luar no meu sertão!"
Luar do Sertão - Catulo da Paixão Cearense

"...Quando nada mais interessar,
Nem o torpor do sono que se espalha
Quando, pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
Deixando-te sozinho na batalha
A arquitetar na sombra a despedida
Do mundo que te foi contraditório..."
A solidão e sua porta - Carlos Pena Filho

"Meus amigos, lembrem de mim
Se não de mim, deste morto
Deste pobre, terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos
Que se vai, como se vão
Os penetras escorraçados
As prostitutas recusadas
Os amantes despedidos"
O defunto - Pedro Nava

As poesias completas Lembrança de Morrer e O Defunto Você pode ler no meu Google Docs, Poesia no Dia dos Mortos


Eu lembro que eu gostava de cantar estas poesias. A surdez me causou muita solidão em grande parte da minha adolescência. E as músicas me remetiam a estes tempos tristes, sombrios. Mas, de tanto eu cantar a morte, passei a amar fervorosamente a vida!

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Armados e perigosos...

Chicão era dono de uma pequena oficina mecânica. Tinha um bom porte físico, andava quase sempre com a barba por fazer, usava a vestimenta comum aos mecânicos, macacão sujo de graxa. Com a greve dos professores, as férias do caçula de 7 anos foram empurradas para o fim do mês, causando um problema para a família, pois a filha mais velha, de 16 anos, já estava no interior junto com a avó e a empregada também estava de férias. A esposa de Chicão não viu outra saída e decretou que ele levasse o garoto para a oficina, pois ela não poderia levá-lo para a repartição da Receita Federal. O garoto adorou passar os dias com o pai na oficina. Não dava trabalho. Levava os brinquedos e brincava sossegadamente, aproveitando os momentos de folga do pai para brincar perto dele. Chicão, que apesar de carrancudo, era uma pessoa calma e tranqüila, ficava admirando o guri. O garoto puxou o pai no quesito organização. Levava os brinquedos por tipo, para cada dia da semana. Na segunda levou os bonecos de super-heróis, na terça, os carrinhos e assim por diante. Na sexta, levou armas que, mesmo sendo pacifista, Chicão acreditava que o garoto devia ter contato. Afinal, quando criança Chicão brincou de polícia e bandido e sabia muito bem diferenciar uma coisa da outra. Cedo, ainda não tinha nenhum cliente na oficina, ele estava só com o filho, pois o colega que trabalhava com ele estava testando um carro junto com um cliente. O filho o convidou para brincar e lhe entregou uma pistola. Era uma réplica perfeita de uma arma verdadeira. Chicão ficou admirando a arma. Percebeu que o filho estava mexendo na torneira nos fundos e entendeu que ele estava enchendo a metralhadora de água. Nesse momento uma madame para o carro em frente à oficina e Chicão fez cara feia, pois o passeio era rebaixado, não permitindo que estacionassem ali. Aguardou que a madame saísse do carro, pois poderia ser uma cliente, mas ao vê-la se dirigindo para a loja ao lado, gritou:
- Ei, dona!
A reação da madame foi um grito histérico. Chicão não percebeu que havia chamado a madame apontando a pistola para ela. O grito atraiu outras pessoas. A maioria sequer se aproximou ao perceber que Chicão estava “armado”.
- Socorro! – berrou a madame. – Ele está armado.
Pedro, colega da loja ao lado olhou para o amigo Chicão, percebeu a arma e falou, usando tom de voz de padre celebrando missa:
- Chicão, o que você está fazendo com essa arma, amigo?
Quase no mesmo instante o guri sai em desabalada carreira da oficina, aproxima-se do pai e “atira”:
- Páápápápápá – esguichando água da metralhadora e assustando todos os que observavam a cena. – Ih, pai, cê não sabe brincar! Você já tá morto!
Chicão respondeu apenas:
- É melhor a gente parar com essa brincadeira, antes que eu acabe morto de verdade!

De noite, a esposa não conseguia parar de rir.
- Ai, meu Deus, eu queria estar lá para ter visto a cena!
- Você precisava ver o Pedro, perguntando com voz toda melosa, o que eu estava fazendo com a arma. E o gerente da padaria do outro lado da rua ainda chegou a chamar a polícia. Mas ao ver que era tudo brinquedo, ligou de novo informando que era engano e pedindo desculpas.
Ainda rindo muito, a esposa lembrou-se:
- E a madame?
- Ah, essa eu tenho certeza que nunca mais estaciona diante de passeio rebaixado de uma oficina.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Aproveitando da surdez dos clientes...

A surdez é uma deficiência oculta. Enquanto uma pessoa não conversar comigo ou enquanto eu não conversar com outro surdo utilizando a Libras, não é possível saber que eu sou surdo. Mesmo quando o surdo utiliza prótese (aparelho auditivo), a deficiência não é perceptível, pois os cabelos ocultam o aparelho. E alguns surdos, com o aparelho, conversam praticamente normal (os que falam normalmente, claro). Não vendo uma bengala, uma muleta, uma cadeira de rodas, os "normais" não sentem nenhum constrangimento em zombar dos surdos. Muitas vezes, conversando com os colegas surdos em bares, percebemos pessoas de outras mesas às gargalhadas, fazendo mímica espalhafatosa e utilizando os característicos gestos obscenos. Ou fazendo piadinhas em voz alta, sobre os surdos. É incrível! As pessoas, não vizualizando nada que cause pesar, desandam a satirizar a surdez na frente dos surdos. Você jamais verá um "normal" fazendo troça com um cego, diante do cego. Nem fazendo piadinhas com um cadeirante.
Há pessoas que além de satirizar os surdos, abusam. Uma vez, com amigos num barzinho com música ao vivo, o garçom estava preparando a notinha junto à nossa mesa. O gerente aproximou-se dele e disse:
- Cobra o couvert em dobro destes surdinhos.
Deu-se muito mal, pois havia junto a nós uma amiga ouvinte, que trabalha como intérprete. Como ela conversava em Libras também, garçons e gerentes pensaram que todos eram surdos. A nossa amiga levantou-se e apontou o dedo para o gerente:
- O senhor respeite os clientes. Eles são surdos, mas eu não. Cobrar em dobro por que? Pois não vão pagar nada. Eu ia deixar este negócio de couvert para lá, porque eu escuto e estou junto com eles. Mas, depois do que o sernho disse, é melhor zerar o couvert ou o senhor vai ter problemas.
Por esta o gerente não esperava mesmo! Tanto que eu e outros surdos ficamos espantados e perguntamos logo o que estava acontecendo.
- Se eu disser para eles o que o senhor mandou o garçom fazer, o senhor vai ver como é que agem surdos irritados...
Mas, o gerente pediu desculpas, zerou o couvert e ainda deu um desconto de 10%. E se afastou rapidinho, junto com o garçom. Claro, que eu e mais dois colegas, que não somos de deixar as coisas sem entendimento, insistimos para a nossa amiga revelar o que aconteceu. Ela procurou evitar mais confusão e disse:
- Eu conto, se vocês prometerem que não vão fazer nada. Você, principalmente, viu, Jairo?
Eu já estava de braços cruzados, de pé, com cara de poucos amigos. Mas, o jeito que ela falou e pelo que visualizamos da pendenga, concordamos que não faríamos mais nada. Eu até ri. Então ela contou o que houve.
- Certo, neste momento levamos a melhor... Nós aceitamos numa boa a cobrança do couvert mesmo sem ouvir a música. Mas, pagaríamos em dobro, se você não estivesse junto com a gente. O gerente ia se aproveitar da nossa deficiêcia. É isto que me deixa triste mesmo.


quinta-feira, 15 de julho de 2010

Candidato surdo não pode...

Naqueles tempos (princípio dos anos 80), as empresas não se preocupavam nem um pouco com os deficientes. Em Formiga eu tinha trabalhado num escritório contábil. Vim para BH e comecei trabalhando numa fabriqueta de puxador de tampa de panela, feitos a base de baquelite, um pó preto que enegrecia minha garganta também. Cuspia um pó preto. Claro, não usava máscara protetora. Só luvas. O trabalho horrível, junto a uma prensa, dez horas diárias. Logo larguei e fui buscar outro emprego. Lembro quando fui até um escritório, num dos andares do Edifício Acaiaca, respondendo a um anúncio de jornal, para auxiliar de escritório. Quando cheguei, havia mais de 10 candidatos à vaga. Fui no balcão, onde uma morena bonita atendia a todos com um sorriso nos lábios:
- Vim a respeito do anúncio para vaga de auxiliar de escritório.
- Basta preencher este questionário. - me entregou um questionário padronizado, de duas folhas. - Ao terminar, me devolva.
Ela não perguntou sobre deficiência e como eu estava lendo perfeitamente nos lábios dela, não informei que era surdo. Também acreditei que não era o momento, uma vez que ainda iria preencher o questionário.
Preenchi, respondi as questões pessoais, sobre os trabalhos anteriores e ôba, algo que eu sou bom, escrevi uma pequena redação sobre o trabalho de auxiliar de escritório e a convivência com os colegas.
Terminei e entreguei para a morena bonita e ela disse:
- Aguarde um instante por favor.
Fiquei lá, sentado, olhando para a moça, com receio de que ela me chamasse e eu não percebesse. Eu sei que ela estava chamando pelos nomes porque ela pegava o questionário, lia em voz alta o nome e a pessoa ia até o balcão. A primeira que ela chamou foi uma moça, depois um rapaz e eu fui o terceiro!
- Jairo Fernando.
Fui para o balcão e então ela falou alguma coisa comigo, só que desta vez com a cabeça um pouco baixa, olhando para o formulário, o que impossibilitou que eu fizesse a leitura labial. Como eu não respondi, ela levantou os olhos e me encarou:
- E então?
- Desculpe, moça, eu sou surdo. Poderia repetir a pergunta?
Mas, ela não repetiu a pergunta. Ela pegou o próximo formulário e chamou o quarto nome. E, sem ao menos me dar qualquer satisfação, pegou outro formulário e chamou o quinto nome. E eu aguardando. Mas, ela reuniu o meu formulário junto aos demais que sobraram e informou, enquanto se levantava:
- As vagas já foram preenchidas.
- Mas, moça, você chegou a chamar o meu nome antes! - eu ainda reclamei.
- Pois é, mas você é surdo, não vai dar.
E não esperou que eu retrucasse ou reclamasse de novo, levantou-se de vez, dirigiu-se para uma porta aos fundos e desapareceu.
Eram tempos difíceis, quando os surdos não tinham nenhum direito e sua capacidade era totalmente colocada à prova. Bastava falar "eu sou surdo" e pronto! Era a senha para ser dispensado.

sábado, 10 de julho de 2010

O sol é para todos

Vim estudar em escola especializada para surdos (Instituto Santa Inês), aqui em Belo Horizonte, um ano após ter perdido a audição. As manhãs eram preenchidas pelo tempo escolar que, diga-se de passagem, eram muito bons. As tardes, porém, eu ficava sozinho em casa, pois minhas irmãs iam trabalhar e só retornavam à noite. Estas tardes solitárias fizeram com que eu lesse tudo, praticamente tudo, que caísse em minhas mãos. Lia as revistas de fotonovelas das minhas irmãs, os livros que elas liam, jornais velhos, revistas velhas, além das revistinhas em quadrinhos que eu comprava e que minhas irmãs também compravam aos montes para mim. Desenhava e escrevia muito também. Eu devorava até livros entediantes, que tempos depois, ri de mim mesmo ao lembrar que li alguns livros sobre educação infantil, ensino de educação física e esportes, regras de basquete, volei, handbol, pois uma de minhas irmãs formou-se em Educação Física. Li o livro A Carne, de Júlio Ribeiro, com partes censuradas (pontilhados nas passagens mais eróticas). Na visão atual o livro não tem nada de mais, retrata a sexualidade humana e suas passagens outrora censuradas passam a soldo nas novelas das oito.
Mas, esta leitura tão diversificada auxiliou em toda minha formação cultural, no meu conhecimento das coisas, da vida.
Adolescente, eu gostava muito de ler e de me emocionar com as histórias que envolviam adolescentes como eu. E eu lia um mesmo livro mais de duas ou três vezes. A mesma coisa em relação a filmes. É outro hábito que tenho até hoje. Releio e revejo livros e filmes que gostei.
Uma de minhas irmãs trabalhou como secretária de uma paróquia e o pároco responsável permitia que ela trouxesse muitos livros para eu ler. Ela trazia os compêndios de livros, publicados pela revista Seleções do Readers Digest. Eu devorava os três ou quatro livros que faziam parte do compêndio. Anos depois, com meu próprio dinheiro, pude comprar alguns daqueles livros. Comprei  O Sol é Para Todos, que conta a história do julgamento de um negro, acusado de estuprar uma branca, nos anos 30, quando o racismo ainda era muito forte nos EUA. A história é contada a partir da visão da menina, Scout (Jean Louise). As crianças da história, Scout, seu irmão Jem, o amigo Dill, retratam uma atmosfera que eu também vivi, de brincadeiras, superstições, casas assombradas (a casa de Boo Radley), ruas escuras.
Recentemente adquiri também o DVD, com o filme. Quando mais novo eu soube que havia um filme inspirado no livro. Porém, nunca tive a possibilidade de assistir este filme. Aliás, eu assisti, mas em uma tv horrível, com uma imagem pior ainda e sem legendas. Como o filme é preto e branco, com muitas cenas escuras, e eu ainda tinha o problema de não ouvir os diálogos, o filme para mim era uma porcaria. Agora, com o DVD, imagens excelentes, o filme é realmente muito bom, pois se mantém fiel à essência do livro.