sexta-feira, 15 de março de 2013

O recenseador

- Ah, que bom recebê-lo em minha humilde casa, meu filho.
- Todas as casas serão visitadas, senhora.
- É mesmo? Vou avisar minhas amigas para não serem pegas de surpresa como eu...
- Não tem surpresa nenhuma. A senhora só tem que responder às perguntas, que são padrão.
- Ah, mas você vai esperar um pouco, enquanto me arrumo, jovem.
- Não há necessidade, senhora. São somente as perguntas padrão do censo.
- Acalme-se, filho. Sente-se aí, que vou lhe servir um lanche, coisa de um minutinho...
- Senhora, não há necessid...
Mas, a velhinha já estava na cozinha e logo depois voltou com um sanduíche, pão com mussarela e presunto, acompanhado de um copo de refrigerante. Ele suspirou, impaciente. Comeu, enquanto a velhinha realmente se arrumava para a entrevista. Não deveria se demorar nas residências, mas a última o deixou deveras estressado. Uma senhora rica, quatro carros na garagem, ameaçou chamar a polícia quando ele apertou a campainha pela sexta vez. Ele se identificou novamente, disse que aguardaria a polícia ali mesmo. A ricaça então mandou o caseiro abrir a porta, não sem antes avisá-lo de que havia cães pitbulls e que seu marido estava chegando. Sentia-se melhor com esta velhinha meio maluca, que o chamava de filho e acreditava precisar se arrumar para responder às questões.
- Quantos anos a senhora tem?
- Tenho setenta e oito anos, filho.
- O marido da senhora?
- Ele faleceu há mais de cinco anos. Ele sofria de câncer do pulmão, fumante inveterado que era. Cuidei dele durante todo esse tempo, mesmo quando ele só fazia reclamar, pois mal conseguia respirar. – o jovem ia interrompê-la, mas ela continuou – Mas, ele era um bom homem e ainda que estivesse doente, não me sentia sozinha.
- Quantos filhos?
- Quatro. – e antes que o recenseador perguntasse ela foi enumerando – O primeiro é o João, que é professor, o segundo Pedro, também professor, a terceira, Ana Maria, advogada e o caçula é José que está servindo à marinha, no Rio de Janeiro.
Ela forneceu todos os dados necessários, nomes completos, datas de nascimento e mostrou as fotos de todos eles, que estavam espalhadas pela enorme estante. Se demorou mostrando a foto da filha, dizendo que se parecia muito com ela quando ainda era jovem. Disse que o tempo é muito rigoroso com nossa compleição física e facial e acrescentou: “neste caso, meu filho, estou me referindo mesmo às mulheres”.
- Eles residem aqui com a senhora?
- Não, meu filho. Os três primeiros estão casados e o caçula que serve à Marinha Brasileira mora no Rio de Janeiro há mais de quatro anos.
E a velhinha ainda mostrou as fotos dos netos, contando uma ou outra história daquelas crianças. O recenseador pensava em interrompê-la, mas dizia consigo mesmo: “deixa ela falar!”.
Após todas as perguntas necessárias, finalizando a pesquisa, a velhinha pergunta:
- E a foto, meu jovem??
- Foto? – então ele percebeu que foi para isso que a velhinha se arrumou, inclusive passou um batom de leve, penteou os cabelos, trocou de roupa.
Ele já ia dizer que não tinha foto nenhuma, que o aparelhinho era somente para as perguntas do questionário, mas sentiu a sombra da solidão, a companhia de muitos rostos sorridentes, mas todos apenas em fotografias estáticas na estante. E então percebeu que a velhinha, muito mais do que responder às perguntas do questionário, estava feliz com a atenção que ele lhe dava, ela se sentia de novo importante, ainda que na companhia de um estranho.
Dissimuladamente trocou o aparelhinho pelo seu ipod e perguntou:
- Posso sair com a senhora na foto?
- Claro que sim, meu filho.
Passou o braço pelo ombro da velhinha, tirou a foto, mostrou para aqueles olhinhos cansados, mas sorridentes e felizes. Aceitou o resto do lanche, dizendo que iria comê-lo pelo caminho. 

terça-feira, 5 de março de 2013

Mistérios que assustam

Resolvi que iria brincar o carnaval no clube próximo à gráfica onde eu trabalhava. Com meu amigo Niltinho, fomos no bar tomar umas cervejas, ainda era cedo e eu resolvi que não iria em casa, longe, para trocar de roupa e suar todo novamente.
- Vamos chamar o Jackson.
- Que Jackson?
- O Japonês, cara. Você já bebeu muito, heim?
- É que a gente chama ele mais de Japonês que de Jackson. Onde ele mora?
- Ali na favela mesmo. Só que mais para dentro.
O Niltinho comprou uma garrafa de pinga e adentramos a favela. Viramos por diversos becos, eu comecei a rir:
- Não sei mais como voltar...
Na casa do Japonês a irmã dele informa que ele estava num terreiro. Eu só peguei a palavra terreiro e o Niltinho complementa:
- Num terreiro de pai de santo ali na frente.
- Nós vamos lá?
- Por quê? – riu o Niltinho – Tá com medo? Vou levar esta pinga para ele.
- Não. – respondi tranquilamente.
E dobramos mais alguns becos até chegar em um casebre com entrada lateral. Por ali entramos e quando nos aproximamos do quintal, ainda que surdo, senti o barulho dos tambores. Já no quintal, havia uma roda de dança, algumas mulheres de branco e o pai de santo, com o Japonês do lado. Também era possível ler o “ôôôôô” nos lábios de todos os cantadores.
Ainda que meio afastados, eu e o Niltinho chamamos a atenção do pai de santo, que se voltou para nós. Ele se aproximou, o Niltinho entregou a garrafa de pinga, mas o pai de santo se virou para mim:
“Olá, Jairo. Ainda pensando em partir desta para a melhor?”
Fiquei petrificado. Ele “falou” comigo usando a língua de sinais. Não usou o alfabeto-manual, que era o que meus amigos Niltinho e Japonês sabiam. Inclusive, ele sabia o sinal que identificava meu nome.
Ainda que com o coração disparado, em vias de entrar em pânico, respondi só com sinais, sem voz: “Não, estas idéias ficaram para trás.” Os olhos do pai de santo me fitavam profundamente, olhos vermelhos de bebida. Os meus também estavam vermelhos por causa da cerveja. Foram alguns segundos assim, nos fitando, olhos nos olhos.
Momentaneamente pensei que meus amigos falaram com o pai de santo que eu era surdo e ele sabia a língua de sinais (naqueles anos não era chamada de Libras). Também pensei que eles contaram uma ou outra história de minha vida para ele. “Então, você percebeu que a vida vale a pena ser vivida, independente de como estejamos fisicamente?” Balancei a cabeça afirmativamente. Ele se voltou repentinamente para o Niltinho, agradeceu pela garrafa de pinga e voltou para o meio da roda de dança.
O Japonês veio até nós e saímos os três dali.
- Que foi aquilo, Jairo?
- Aquilo o que, Japonês?
- O que você estava gesticulando com o pai de santo!
- Essa é boa! Vocês dois falam de mim para o pai de santo e ficam perguntando o que foi... Claro que ele sabia conversar com surdos e sabia que eu era surdo.
- Eu que digo “essa é boa”, Jairo. Nunca falei de você para o pai de santo. – disse o Niltinho.
- E eu... – riu o Japonês – posso dizer que já disse que tenho amigos deficientes, você surdo e o Arnaldo paralítico. Mas, nunca disse seu nome, sequer disse como você era, baixo, gordo ou se usava óculos.
- Vocês dois estão querendo me assustar. Eu bebi muito e estou meio alto, não acredito em nada disso.
O pai de santo até poderia saber a língua de sinais, poderia ter percebido antes o Niltinho usando o alfabeto dos surdos comigo e deduzido que eu deveria ser o "Jairo". Mas, eu jamais esqueceria que o pai de santo usou o sinal que me identifica junto à comunidade surda. E este sinal, nenhum dos meus amigos sabia.

Em relação às religiões eu sempre respeitei todas. Sou católico, não praticante, e sei que os católicos taxariam de milagre fosse um padre no lugar do pai de santo. Da mesma forma, os evangélicos considerariam algo dos planos de Deus, se fosse um pastor no lugar do pai de santo. As pessoas aceitam facilmente como de Deus o que envolve sua religião e do diabo o que envolve as outras religiões, principalmente se as outras religiões forem afro-brasileiras. O respeito às crenças diferentes da nossa é de extrema importância para a paz neste mundo. 

sexta-feira, 1 de março de 2013

Coisas banais da vida..


Eu e meu primo estávamos cantando músicas de carnaval. Eu cantei:
“Tava jogando sinuca, uma nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo, dizendo pro povo
Que o filho era meu.
Toma que o filho é seu, olhalá
Leva o que Deus lhe deu!”
Meu primo gostou e como sempre, quando ele gostava de uma música ele se empolgava e ficava cantando a música até falar chega. Tinha uma voz poderosa e minha tia o ouviu lá do quintal. E gritou de lá mesmo:
- P.H.!!! Não pode cantar essa música!!
Era o tempo em que os filhos (e sobrinhos) obedeciam às ordens dos adultos sem contestar nada. Nem eu, nem meu primo sequer perguntamos “porquê?”. Paramos de cantar imediatamente. Em voz mais baixa, meu primo desconta em mim:
- Ih, Jairinho, tá vendo o que você aprontou?
Eu só fiquei no “mas, mas, mas...”, mas não tinha argumento algum para contestar a reprimenda da minha tia. Eu devia ter uns dez anos à época e meu primo, nove. Só muitos e muitos anos depois eu fiquei pensando porque minha tia disse que não podia cantar aquela música. Era uma música de carnaval, cantada nos salões onde íamos brincar o carnaval.
Ficava matutando comigo mesmo que minha tia Madalena reclamou da música porque falava de sinuca. Eu e meu primo não pegamos em taco de sinuca antes de 16 anos. Era proibido para nós, moleques ainda, entrarmos em bar para jogar sinuca. Não, depois eu dizia, não deveria ser isso. Então, eu acreditava que era o fato da “nega maluca” ter um filho que dizia ser “meu”. Os princípios religiosos de minha tia eram bastante rigorosos, o suficiente para considerar um absurdo que o filho cantasse uma música que alegava ser ele pai solteiro, ainda por cima com uma “nega maluca”. Hoje, isto é realmente engraçado, principalmente que na época eu não entendia tanto assim a mensagem da música. Eu e meu primo, na verdade, só achamos a música engraçada. Tanto que meu primo gostou do “olhalá”, que repetia nas duas frases finais e não somente em uma.
Minha tia Madalena faleceu há cinco meses.

Há uns quatro anos atrás, estava com minha irmã mais velha em Areias, no sítio de minha outra irmã. Nós descemos pela estrada asfaltada, rumo a um sítio dos familiares do meu cunhado, marido da minha irmã mais velha.
Lá conversamos com todos, eu conhecia os familiares do meu cunhado, todos sempre me trataram muito bem.
No portão, minha irmã estava conversando com o pai do meu cunhado, o Sr. L. Minha irmã me contava a conversa:
- O Sr. L. está falando que na mata lá na frente, tem um pântano.
- Ele ia muito lá quando era jovem.
Minha irmã gargalha alegremente e me conta:
- O Sr. L. está falando que ele e os amigos iam lá caçar jacaré. – e riu novamente.
Eu li direto nos lábios do Sr. L.
- Você não acredita? – indagou ele, indignado.
Minha irmã, ainda com o riso estampado na face, explica:
- Não, Sr. L., eu acredito sim. É que eu achei engraçado; imaginei agora o senhor caçando jacaré.
O Sr. L. faleceu recentemente.

O irmão de minha amiga desce comigo do ônibus, na rodoviária de Formiga e me chama, educadamente:
- Jairo, você não está com malas?
- Não, T. Por quê? – eu viajava para Formiga em fins de semana e levava mochila com pouca coisa.
- Você poderia me dar uma ajuda?
- Claro.
Eu ia para a R. 13 de Maio e ele morava próximo. Pensei que era uma mala pesada e que ele estivesse pedindo ajuda devido ao porte físico dele, pequenino. Mas, não era questão de peso e sim de quantidade. Ele estava com duas malas e mais umas dez sacolas. De repente pensei que nós dois não daríamos conta de tanta sacola. Demos um jeito e fomos levando.
- Você deveria arrumar um jeito mais fácil de fazer a mudança de BH para Formiga...
- Não tô mudando não... – e riu, ao compreender que eu estava brincando.
Isto ocorreu há mais de trinta anos e só tive notícias dele há poucos dias, então com problemas no coração e na fila para transplantes.
Ele também faleceu recentemente.

Quando as pessoas se vão, desencadeiam lembranças de coisas simplórias do nosso viver. Percebemos o quão pequenos somos diante da vida. Tão frágeis somos, diante da morte. Uma música de nega maluca, um jacaré, sacolas em excesso, são coisas tão simples que fizeram parte da vida de diversas pessoas, inclusive da minha. E percebemos que as pessoas podem marcar nossa vida com coisas banais, simples, mas que justamente por isso, marcam para sempre.