quinta-feira, 10 de março de 2016

Minha mãe e o temor da ditadura militar

Considerado um garoto “bonzinho”, longe dos olhares dos adultos eu era bastante “levado”. Minha mãe tinha plena consciência deste fato, mas nunca interveio nas bagunças que eu aprontava, junto com meu primo ou com os amigos da rua. Também era um moleque atento às conversações dos adultos, dissimuladamente. Naqueles anos era muito difícil uma criança se intrometer nas conversas dos adultos. Mas ouviam e repetiam muita coisa que os adultos falavam.

Eu estava sentado, brincando perto de minha mãe e minha tia, ouvindo a conversa como quem não quer nada:
- Dizem que este general é pior que os outros. Um linha dura que vai piorar a situação política do país. – falava minha tia.
- Que general?
- O Garrastazu Médici. Está prendendo e torturando muito mais que os outros. Não permite nenhuma manifestação contrária ao regime. 
Minha mãe fez uma brincadeira com o nome do general:
- Ah, o Garrafa Azul Médici. – riu – E os políticos que dirigem o estado? Será que vão lutar contra?
- Não acredito nisso não. Embora o Israel Pinheiro seja um governador meio que contra a ditadura, não pode falar nada, senão será deposto. São poucos os que ousam levantar a voz contra a ditadura.
- Esse Israel é só mais um bunda mole.
- Pelo menos ele se posiciona contra o governo militar.
Daí que eu, criança ainda, peguei da conversa somente o que eu considerei engraçado e estava a repetir:
- O presidente é o Emílio Garrafa Azul Médici. – e ria alegremente. – E o governador é um bunda mole.
Naqueles tempos o nome do presidente constava nos exercícios escolares. Colocava-se a data, o nome da professora, do aluno e do presidente. Mas, eu não tinha ideia do que fosse ditadura. Sequer sabia que o presidente era um general e considerado um ditador. Que pessoas eram mortas e torturadas. Eu tinha 9 ou 10 anos à época (1969/70). Ditadura era uma palavra proibida nas escolas, era algo que não estudávamos. Os adultos temiam qualquer referência negativa ao governo militar. Para mim era somente uma brincadeira com nomes, com o nome do presidente militar e do governador do estado. Eu não sabia dos horrores da ditadura, não sabia que até mesmo crianças foram torturadas, presas e fichadas pelo regime ditatorial que vigorou no Brasil.
Minha mãe ouviu e me chamou a atenção, calmamente:
- Não pode ficar repetindo isso.
Mas sabendo como eu era levado, minha mãe desconfiava que, longe dela eu estava repetindo estas alcunhas maldosas. E ocorreu que dias depois chego da escola anunciando:
- Mãe, um político vai passar aqui em Formiga depois de amanhã. A gente vai sair da escola e ficar perto do Bazar Guri (Praça Getúlio Vargas), com bandeirinhas do Brasil, acenando. A professora falou hoje. – eu disse, todo orgulhoso por poder levar para casa a bandeirinha do Brasil que eu deveria portar no ato.

O político, que não tenho certeza quem era, mas suponho que fosse o governador, passou por Formiga em carro aberto. E eu acenei minha bandeirinha alegremente, achando tudo muito divertido e ainda chamando a atenção do colega, dizendo que ele não estava “acenando direito”.

Muitos anos depois, em conversa com meu tio, lembrando de fatos da minha infância, ele me contou que esta ocasião foi extremamente preocupante para minha mãe. Porque a vinda do político coincidiu justamente com a minha repetição quase diária do nome alterado do presidente militar e a alcunha pejorativa ao governador. Meu tio, rindo um pouco ao lembrar dos fatos disse:
- Sua mãe sabia que você era muito levado e que não tinha papas na língua. Ela lembrou do dia que você chegou da escola mais cedo, lembra que sua mãe quase morria do coração quando acontecia alguma coisa fora do normal com vocês, ela lembrou disso, que você tinha desafiado a professora que tinha inventado um troço lá na sala de aula de pagar se levantasse da carteira sem pedir licença. Você falou que tinha problemas nas vistas, não tinha dinheiro para óculos e que não ia pagar nada disso. A professora no dia da cobrança ficou brava e mandou você vir buscar o dinheiro. Por isso, quando sua mãe lembrou dessa história, ela foi lá na Escola Normal e conversou com a diretora, perguntando se você não estava aprontando alguma coisa. A diretora respondeu que não e sua mãe insistiu, perguntou se você não estava fazendo gracinhas com nome do presidente... Sua mãe sabia muito bem o horror que era a ditadura militar e não ficou tranquila, não mesmo! 

Soube então que no dia do desfile, minha mãe estava postada alguns metros logo atrás de mim e só voltou para casa quando todo o evento terminou e eu já estava novamente no interior da escola.


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O período de Médici como presidente foi denominado de Anos de Chumbo, devido à extrema perseguição política, tortura, repressão e suspensão de direitos políticos.