sábado, 22 de dezembro de 2012

Ah, as igrejas...

Em 2010 eu não gostei de saber que bispos da CNBB se envolveram na campanha eleitoral para a presidência, distribuindo folhetos e pior, durante o sermão, deixando explícito suas opções eleitorais. Foi o ano em que a igreja Católica mais se envolveu com eleição, tendo na atitude dos bispos uma posição claramente conservadora. Embora saibam que presidente pode solicitar e enviar projetos ao Legislativo, somente os deputados federais e depois os senadores, podem aprovar as leis. Por isso, fiquei realmente contrariado com bispos declarando abertamente que os fiéis não deveriam votar na, agora Presidente, Dilma, porque ela era pró aborto. Que deveriam votar no Serra, católico conservador, que se aproveitou deste mote para angariar simpatias dos religiosos. E que depois, que triste ironia, teve revelado que sua esposa (do Serra) praticou um aborto quando estava no Chile. Ou seja, casa de ferreiro, espeto de pau. José Serra, o santo de pau oco. Com estas revelações Serra diminuiu a ênfase na religiosidade e não tocou mais no assunto aborto. O bispo de Guarulhos, que chegou a distribuir panfletos contra a Dilma já faleceu. Outros bispos e padres, que fizeram campanha para José Serra do púlpito não estão mais em evidência hoje (claro, a mídia só dá voz a eles na época das eleições).

Encontrei o site da CNBB e vi a lista de nomes dos padres e seus respectivos e-mails. Mandei e-mail para o primeiro da lista, Subsecretário Adjunto Geral, reclamando da posição da Igreja Católica nas eleições presidenciais. Foi um e-mail educado, questionando se esta era realmente a posição da igreja, que estava/está cada vez mais perdendo fiéis. E são muitos os fiéis que não concordam com a mistureba de igreja e política. E este e-mail nunca foi respondido, infelizmente. Nem sequer aquelas respostas automáticas do tipo: "Agradecemos seu contato e breve retornaremos". Ou nem mesmo um retorno de algum auxiliar do Subsecretário, lacônico, do tipo "Agradecemos seu contato e seus questionamentos estão em debate junto à pastoral!". Qual o quê? Não responderam, não se importaram com um reles mortal que estava questionando a atitude radical de alguns membros da igreja.

Mas, ah, MAS... o meu e-mail não foi apagado. Meu e-mail não foi para a lixeira e nem foi considerado spam, ofensivo ou ignorado. Alguém leu o e-mail que enviei. Alguém pegou meu e-mail e o colocou em uma lista da CNBB. 

Porque passei a receber propagandas de vendas de objetos católicos, livros. kits, folhinhas... Meu e-mail não foi considerado para as questões que eu desejava esclarecer, mas foi bem vindo para o setor de vendas. Meu e-mail está lá na lista de e-mails do setor de vendas. E todo mês recebo duas ou três ofertas de livros, kits, mensagens... da CNBB.

Imagino o Subsecretário Adjunto Geral lendo meu e-mail e dizendo para o auxiliar:
- Mais um chato reclamando das atividades políticas dos bispos contra a Dilma. Pega o e-mail e passe para o setor de vendas. Ao menos esse chato poderia comprar algumas coisas da CNBB.
Não critico outras religiões por isso mesmo: a minha religião comete as mesmas espertezas apontadas nas outras.

Sei que há muitos padres que ainda abraçam o sacerdócio com a melhor das intenções. E que realmente fazem um trabalho evangelizador e pastoral de maneira digna. Há padres missionários espalhados em regiões críticas do mundo, evangelizando e trabalhando em prol dos necessitados (na África, por exemplo) e também em nosso território nacional, nas favelas, nos "crackódromos" urbanos, nos presídios. Sim, leio exemplos destes padres, que estão alheios a política e fazem o que está a seu alcance por pessoas que vivem em condições adversas. Estes são os melhores exemplos de que nem tudo está perdido. E não somente católicos, mas também evangélicos. Ambos deixam de lado as convicções políticas dos líderes religiosos e fazem o seu trabalho humilde, sem recompensas. Não são tantos como gostaríamos que fossem, mas existem, em praticamente, todas as religiões.

Quanto à CNBB e meu e-mail... no final das contas ainda mandam e-mails somente com ofertas de compre isso ou aquilo. Nem um e-mail simplesmente desejando Feliz Natal e Próspero Ano Novo para um ex-praticante que ainda acreditava ser possível dialogar com os padres...

Feliz Natal e Próspero Ano Novo a todos que me acompanharam através deste blog.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Ajudar sem constranger

Muitas vezes os ouvintes acreditam que estão ajudando, mas estão constrangendo.
Lembro que estávamos numa mesa de bar, somente eu surdo, com amigos, bebendo cerveja. Todos contavam um ou outro caso. Às vezes ficava sem saber alguns assuntos, mas a maioria o pessoal ia passando, na normalidade que é um deficiente no meio de normais. Nem sempre toda a conversação é repassada. Minha amiga sabia datilologia (escreve todas as frases com o alfabeto-manual dos surdos) e estava me passando uma ou outra conversa. Outro colega também me passava a conversação, pois tinha movimento labial muito bom. Eis que, em um momento, o pessoal estava rindo um pouco mais que o normal de alguma coisa que um dos presentes à mesa contava. Então perguntei à minha amiga:
- O que ele está contando?
E o que ela fez? Interrompeu o colega que falava e disse:
- O Jairo quer saber o que você está falando.
Meu colega ficou vermelho, a conversação foi interrompida, os risos cessaram, mas ele voltou ao início e relatou o assunto novamente, desta vez falando pausadamente para minha compreensão. Mas, foi visível todo o constrangimento da situação e a percepção de que os risos já não eram mais tão verdadeiros. Depois eu chamei a atenção da minha amiga:
- Não se interrompe a pessoa que já está no meio de uma explanação pedindo para ela falar tudo de novo para mim.
- Mas, eu só quis ajudar, ora. Você não queria saber o que ele estava falando?
- Sim, mas eu perguntei foi para você. Se você acha que eu deveria ter perguntado diretamente a ele, então, você deveria ter respondido para mim: “Pergunte para ele!”. Aí, caberia exclusivamente a mim perguntar ou não a ele.
- Vocês surdos são muito complicados. A gente vai ajudar e acaba “levando ferro”.
- Desculpe, agradeço toda sua ajuda, todas as vezes que você traduziu para mim as conversações de muitas outras pessoas. Porém, se você acha que devo agir de um modo diferente, como por exemplo, perguntar à pessoa que está falando, o que ela está falando, então, você tem que dizer isto para mim, mas nunca agir do modo que você acha que eu devo agir. Ao interromper nosso amigo no meio do que ele já estava contando, você agiu por si, mas como se fosse para mim. Tem momentos que sei não ser ideal a interrupção de uma pessoa que está falando. Vai prejudicar o encadeamento de idéias, ela vai ter que mudar o modo de falar, etc e tal.
Ela ficou um pouco chateada, mas compreendeu e perguntou:
- Qual seria a solução então?
- Todos aptos a falar em Libras. Mas, sabemos que isso não é possível, ainda. Quem sabe, no futuro, né? Porque quem sabe Libras consegue falar ao mesmo tempo que gesticula.

Uma vez, participando de uma palestra, também ocorreu algo parecido. Havia deficientes presentes na palestra, eu, surdo e alguns cegos. Meu intérprete pessoal, J.S., quando recebeu o telefonema dos organizadores do evento, informou que eu era surdo e que eu necessitava de intérprete. Os organizadores responderam que surdo seria somente eu e que eles arrumariam uma credencial para meu intérprete participar junto comigo. No meio da palestra foram exibidas algumas imagens e no decorrer de um pequeno filme, a acompanhante dos cegos (três cegos presentes) reclamou com o palestrante:
- Ora, o J. L. é cego e as imagens não têm significado para ele. Deveriam ter um auxiliar, profissional, que detalhasse o conteúdo das imagens.
Foi errado, ainda que a reivindicação dela fosse justa. A acompanhante interrompeu a palestra, reclamou com o palestrante e deixou todos bastante constrangidos. O palestrante então, que sequer tinha culpa sobre os fatos, pois ele era apenas o convidado para a palestra e não o responsável pela organização do evento. Um dos organizadores pediu desculpas, dizendo que era uma falha que não se repetiria em palestras futuras.
O palestrante tentou retomar o que estava dizendo antes, mas era perceptível que ele não estava mais à vontade. Tanto que J.S. traduziu literalmente o que ele dizia:
- Como vocês podem.... – parou, arranhando a garganta – O que é possível deduzir das... – de novo parou, arranhando a garganta – dos dados exibidos é que o crescimento da mão-de-obra terceirizada...
Eu olhei para meu intérprete e comecei a rir. Disse em tom baixo:
- Ele não quer usar mais a palavra VER – “como podem ver...” – nem IMAGEM – “possível deduzir das imagens...” – Que coisa, o pessoal cego deixou ele sem graça mesmo...
- Se eu falar com ele que você é surdo é capaz de ele não falar mais "como ouvimos no filme..." 
Rimos, mas nós dois sabíamos que o palestrante (que não tinha culpa se os organizadores falharam) estava totalmente incomodado com os deficientes presentes, mas devido à interrupção abrupta. Antes, ele estava bastante à vontade.
É importante reclamar com as pessoas certas. Não prejudicar o andamento de um evento porque os organizadores falharam. Eu já me retirei de eventos em que não tinha intérprete, mas discretamente. E, claro, depois reclamei com os organizadores, através de e-mail ou telefonando (o intérprete pessoal fala o que eu quero seja dito). No caso, muitas vezes eu reclamei: “como vocês me convidam para um evento em que ocorrem diversas palestras e, sabendo que sou surdo, não contratam um intérprete?”
Exigir os nossos direitos, como deficientes, sim, mas jamais abusar desta condição.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O lado bom pouco divulgado

A revista Carta Capital traz uma reportagem sobre jovem que superou diversas dificuldades e hoje, com o auxílio do Bolsa Família, está cursando uma universidade. São muitos os exemplos de pessoas que melhoraram de vida com a ajuda do Bolsa Família, porém, estes exemplos não são muito alardeados porque a imprensa brasileira, em sua maioria, é contra os benefícios sociais.
O relato da revista pode ser lido clicando aqui.
O blog do Nassif também publicou a reportagem e um comentário deixou muitos leitores emocionados. Segue o texto, autorizado pelo autor do mesmo: Alberto Porem Jr.


O valor do dinheiro.
Estamos em tempos estranhos. Para as classes mais abastadas o dinheiro do Bolsa-Família é esmola pra pobre. Porque esmola? Porque é assim que eles vêem quanto vale R$68,00, R$100,00, R$ 135,00.
Tive uma experiência única há algum tempo atrás que me fez refletir sobre o real valor que damos ao dinheiro.
No sábado á noite meu filho me pediu dinheiro para ir a uma balada. Como uma praxe a gente sempre está sem dinheiro na carteira nestas horas (a tal Lei de Murphy...) e ai fui até o banco (eram mais ou menos seis e meia da tarde) para sacar uns 150,00 pra tal balada. Até ai parecia a rotina de sempre (entrada + show + bebidas...), foi quando a lição se apresentou. Com a vinda de uma grande unidade agroindustrial da BRF para Lucas do Rio Verde, foram trazidos pela mesma do Nordeste muitos trabalhadores, principalmente do Maranhão, na mesma hora em que estava sacando o dinheiro para o filho "curtir" a balada um rapaz aproximou-se de mim e pediu uma ajuda para enviar um dinheiro para a família que estava na cidade de Timom no Maranhão. "-Tudo bem, disse eu, tem a agência e a conta para colocar no envelope? - tá aqui, apresentou o rapaz.” quanto você vai mandar?, perguntei e ele respondeu: 'R$10,00, eles estão precisando mais do que eu lá". 
Parece que levei um tiro, eu dando R$150,00 pro meu filho ir pra balada e o rapaz mandando R$10,00 para ajudar a família no Nordeste, que pancada...
Falei pra ele: “Toma mais R$50,00 e mande R$60,00 pra eles, eles precisam mais, - o rapaz chorou e fiquei com cara de besta e colocamos juntos o envelope no Caixa Eletrônico. Ele me agradeceu mais e mais mas eu não ouvi, estava tonto ainda pela situação. Nem sei como cheguei em casa. 
De pronto levei uma "comida de rabo" do filho (é assim mesmo que fazem quando estão contrariados...) e ai meu sangue ferveu, como é que um frangote metido a playboy podia me ofender daquela maneira dizendo: "e ai o que é que eu vou beber? água?.
Imaginem que ele ia gastar R$50,00 ou mais até, em bebidas em uma noite! isto para mim soou como uma afronta. Sai fora do meu eixo. Mandei calar a boca e peguei um taco que tenho guardado e ele sentiu que o caldo ia engrossar pro lado dele e correu pra mãe (filho é tudo igual nesta hora), claro que não ia dar com o bastão nele! Mas era meu modo de expressar minha raiva toda e ele ver que o buraco era realmente mais embaixo. Minha esposa perguntou o que era aquilo e eu deixando o taco, disse a ela, contei o que ocorreu e que achei uma afronta um filho dizer o que ele havia dito. Falei: "Se quiser sair vai sair com R$10,00!" e ele disse: "o que vou fazer com R$10,00 papai (filho assustado fica dócil....) não dá para nada!" Dá sim disse eu, se vira, se não quiser sair vá dormir e pense no dinheiro que você gasta, que de agora em diante vai ser muito menos, chega de beber dinheiro!”e sai, fui pro meu quarto. A mulher veio falou que não era assim... e eu não voltei atrás e ele foi dormir. Mas ele entendeu o recado.
Realmente vivemos numa sociedade de tempos estranhos e óticas diferentes sobre dinheiro. Quando ganhamos muito (e graças a Deus sou um deles) o valor do dinheiro muda. O episódio fez eu voltar a valorizar até os centavos (hoje guardo todos em uma lata e de vez em sempre troco no posto, que precisa destas moedas, por papel). Para as classes A e B, que não são poucos como se diz, este parco dinheiro do Bolsa-Familia é esmola mesmo (R$68,00 são uns 38 litros de álcool, uns 270 km de rodagem, para quem roda em São Paulo é muito? não.). Vejam alguns preços de camisas e camisetas nos shoppings são muito mais que este valor, um almoço ou jantar também não vai sair por menos que isto, UM ALMOÇO! Claro lembre-se sempre que estamos falando em estilos A e B.
Meus amigos, qual o valor de R$10,00 para vocês hoje? Parem e pensem.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Nas estradas deste mundo afora I

Recebi um slide com muitas fotos e vou compartilhar aqui, em partes.
As mais malucas são dos indianos e asiáticos.
(basta um clique que as fotos serão exibidas automaticamente)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Contrapeso

Hoje, no meu ônibus, sentei ao lado de uma loira, jovem, mas gorda. As coxas dela invadiam grande parte do meu lado do assento. Ela tentava se espremer no assento, mas eu estava no lado do corredor e fiz também o possível para transparecer que estava tudo bem. Ainda por cima ela estava lendo um livro, o que atrapalhava mais ainda. Lembrei das gordinhas que eu conhecia, da convivência com elas. Então, a loira do meu lado deixa cair a bolsa. Pelo barulho que eu senti, estava bem pesada. E os gordos não conseguem se curvar à frente para pegar algo que cai aos pés. Ela balançou um pouco o corpo para a frente, inutilmente, claro e como à direita estava a janela do ônibus, o jeito foi se curvar para o meu lado. E de repente todos estão fitando a loira toda debruçada no meu colo, a mão esquerda, que ainda segurava o livro, apoiada na minha coxa.
Eu tive que fazer um enorme esforço para não rir da situação. A loira percebeu os olhares maliciosos dos demais passageiros e disse, toda sem graça, vermelha:
- Desculpe!
- Não, não! Tudo bem!

Lembrando desta loira gordinha, lembrei de uma outra (os nomes de todas as pessoas envolvidas são fictícios, por motivos óbvios):
Trato a todos os colegas com a mesma consideração, não importando cor, beleza, opção sexual. Num dos meus antigos trabalhos como digitador, Fátima gostava muito de conversar comigo. Ela me disse, um dia, que uma coisa que a marcou foi uma conversa nossa, quando ela chegou e disse:
- Ai, meu Deus, estou 4 kg mais gorda!
E eu disse:
- Deve ser para compensar o seu sorriso cativante.
Ela, realmente, tinha um sorriso encantador. Era muito bonita, o corpo cheinho era uma preocupação muito mais em relação à cultura da magreza do que um problema real.
Ela disse que isso a marcou porque eu encontrava encantos onde ela menos esperava.
Fátima me contava muita coisa que elas, as mulheres do setor, conversavam. Elas eram maioria, nove mulheres e somente três homens. Riam muito quando eu dizia que, na verdade, eram somente dois homens, pois o Jeremias, gay, não contava.
- Você sabe que a Marcela é apaixonada por você?
Eu comecei a rir sem parar. Marcela era gorda mesmo, muito acima do peso, simpática, mas muito retraída. Eu, que não escuto, participava muito mais das conversações com o pessoal do setor do que ela. Ela era muito calada, dava respostas monossilábicas e dificilmente emitia alguma opinião. E não eram opiniões pessoais, eram sobre o serviço que fazíamos. Eu brincava um pouco com ela, dizia que ela estava bonitona, quando ela vinha trabalhar com uma roupa pouco usual. Algumas gordinhas, aliás, são mestres em fazer umas combinações legais com as roupas, de forma que não realcem a gordura.
- Deixa de bobagem, Fátima! De onde você tirou essa idéia?
- Ela mesma que falou!
Eu ri mais ainda, incrédulo.
- Ela fala “sim”, “não”, “oi”, “bom dia”, “tchau” e vai ver que falou “Jairo” alguma coisa do serviço e você deduziu que ela é apaixonada por mim.
Fátima estava gargalhando alegremente também.
- Só você mesmo. E sabe que é quase isso mesmo? Deixa eu te contar como foi: um dia, as meninas estavam falando sobre os homens do prédio e a Rita brincou: - Esses homens do trabalho, tudo casados, ah, não. Se uma bomba explodir e matar as esposas deles eu fico com o Horácio. Nós rimos e cada uma foi falando com quem ficaria. Quando chegou na Marcela ela falou: “Jairo” e todo mundo a encarou. Ela ficou vermelhinha, baixou a cabeça. Ninguém esperava que ela fosse falar alguma coisa e ela falou.
Agora era Fátima que ria a não poder mais.
- E ela ficou muito decepcionada quando a Selena, disse que conhecia sua esposa e que sua esposa é magra. A Marcela disse, tristinha (e Fátima imitou a cara triste dela): “ou seja, sem chance, né?”
Nós dois rimos tanto que o Horácio., chefe do setor, pediu para pararmos com a conversa e trabalharmos. Ele era muito legal, tinha o respeito de todos os funcionários, só cobrava mesmo quando o período de levantamento de dados exigia prazos determinados. O setor era bastante amplo e eu e Fátima conversávamos no fundo, em voz baixa, exceto quanto gargalhávamos.
Na festa de fim de ano, que também era minha despedida pois eu ia para outro local, o pessoal fez fila para me abraçar. Marcela chegou com o seu jeito arredio, mas eu a puxei, abracei e beijei sua face, do mesmo modo como fiz com as outras meninas. E disse:
- Vou sentir sua falta, Marcela Foi muito bom trabalhar com você.
Depois, a Fátima se aproxima e ri:
- É capaz dela não lavar o rosto nunca mais!!

Hoje em dia já temos até mesmo o Concurso Miss Brasil Plus Size, que escolhe a gordinha mais bonita do Brasil. Até pouco tempo atrás era impensável um evento deste tipo.

Para saber mais do concurso clique AQUI e AQUI

sábado, 22 de setembro de 2012

Flashes da vida


Meu cunhado comentou que não esquecia que eu estava presente em um momento muito difícil da vida dele.
- Que momento? – perguntei, rindo, porque não sabia ao que ele se referia.
- Quando eu me separei. Quando fomos buscar as coisas, ao final da mudança, eu estava triste, fitando a parede. Você chegou, passou o braço pelo meu ombro, falou “vamos, cara. A vida continua...”. Nunca me esqueci disso.
Era estranho, porque eu não lembrava este fato. Mas, compreensível, visto que o momento era importante para ele, não para mim.
Assim também são alguns momentos que tive com outras pessoas do meu viver. São momentos insignificantes para as outras pessoas, mas extremamente importante para nós.

Eu tinha cinco anos e estava à mesa da casa do meu avô. E ficou gravado em minha memória, a voz de entonação forte, mas calma, de meu avô falando:
- Come o angu, menino!
Não lembro do prato, da mesa, das outras pessoas. Só do meu avô falando isso. Poucos meses depois ele faleceu. Eu estava no colo de minha mãe, que chorava. Eu lembro mais nitidamente de minha mãe chorando do que do meu avô no caixão.

Já surdo, morando aqui em Belo Horizonte, quando minha irmã mais velha casou eu ficava com ela, até meu cunhado chegar. Eu tinha 15 anos e ainda cambaleava muito se andasse em um local pouco iluminado e com chão irregular (ainda cambaleio, mas, após tantos anos surdo, o senso de equilíbrio se adapta razoavelmente). Meu cunhado chegava e me levava até a casa das minhas outras irmãs. Lembro que um dia a rua estava com as lâmpadas apagadas e eu comecei a cambalear muito, igual a um bêbado. Meu cunhado simplesmente passou o braço pelo meu ombro e assim fomos até chegar em casa. Ele não falou nada, não perguntou nada. O gesto ficou marcado, pela simplicidade.

Meu outro cunhado, atleticano, que a gente diz “doente”. Mas, não fanático. Nunca discutimos nada de Atlético e Cruzeiro. Comentamos numa boa, conversamos numa boa, mas evitamos polemizar. Foi justamente ele que me levou ao Mineirão para ver um jogo do Cruzeiro, pela primeira vez, eu com 16 anos. Ele e minha irmã, que também é atleticana, ficaram comigo na torcida do Cruzeiro.

Quando eu ia para Formiga nas férias escolares ou feriados, chegava e conversava muito com meu tio. Ele perguntava como estavam todas minhas irmãs, o que eu estava fazendo e eu perguntava sobre todos de Formiga. Mas, a conversação era feita de um modo peculiar. Eu falava e, como eu não conseguia entender o que meu tio dizia, ele escrevia quase que todas as frases por inteiro. Foi assim durante os primeiros anos de minha surdez, até que a minha leitura labial se aprimorou e ele não precisava mais escrever as frases por inteiro.

Minha irmã mais velha me ajudava com os deveres (ela fazia Magistério). Era meu primeiro ano escolar, o  “para casa” pedia uma redação sobre fazenda. Minha irmã pediu que eu escrevesse num rascunho. Sem ter idéia do que escrever, peguei um livro de historinhas e copiei “O amanhecer na fazenda”. É incrível, eu lembro até o título da história que eu copiei. Incrível também a minha ingenuidade; mal sabia escrever o próprio nome e ali estava minha redação sobre o amanhecer na fazenda. Minha irmã vem ver o que escrevi e me dá um safanão, manda eu fazer uma redação simples, como se tivesse ido a uma fazenda. Isto é da época em que uma redação do tipo seria: “Fui para a fazenda. Vi uma vaca bonita. Um boi marrom.”, etc e tal. Simples, pois o vocabulário era limitado. Mas, eu era teimoso:
- Eu não copiei não. - disse, com a cara mais séria do mundo.
Eu só lembro da minha irmã soltando uma gargalhada.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Implante Auditivo de Tronco Cerebral

Uma reportagem conta a história de uma criança de 2 anos que nasceu com surdez profunda e recebe o ABI (Implante Auditivo Tronco Cerebral). Ela sofre de espectro óculo-aurículo vertebral, uma condição muito rara e sem cura que afeta os olhos, ouvidos e a espinha. Como ela não tem nervos auditivos, a solução era o ABI. Pouco tempo depois de receber o implante a criança já pronunciava "mamãe".
Leia a reportagem clicando AQUI.

A diferença deste implante para o IC (Implante Coclear) comum deve-se ao fator cóclea e nervo auditivo. O IC é implantado em pessoas que têm cóclea e nervo auditivo intactos. O ABI em pessoas que não possuem cóclea ou nervo auditivo. O ABI estimula diretamente o nervo auditivo que fica no tronco cerebral, sem necessidade da cóclea e do nervo auditivo. Para pacientes adultos, o resultado final do ABI é inferior ao IC. Por isso, quando o paciente é uma criança, quanto mais rápido for a implantação, mais rápido será o retorno com resultado final satisfatório. Tanto para a implantação do ABI ou do IC, em crianças a aprendizagem da língua oral ocorre de maneira incidental e em geral é quase idêntico ao de uma criança normal.

Parte interna do IC
 Quando da divulgação destes implantes (um personagem surdo de novela global, com IC e reportagem no Fantástico sobre ABI), grande parte da comunidade surda se posicionou contra os implantes. Debatendo este fato com meu amigo, quando ele disse que não aceitaria IC de forma alguma, eu disse:
- Eu também não, colega. Porém, devemos lembrar que já somos adultos, capazes de decidir por nós mesmos e todos os problemas que enfrentamos com a surdez superamos com muita determinação. Mas, devemos também respeitar os surdos que querem ser implantados. E como pais, sabemos que faremos o melhor para nossos filhos (eu e meu colega temos filhos ouvintes). Assim, quando pais decidem que farão IC ou ABI no filho bebê que nasceu surdo, não posso discordar. Não seria justo os pais aguardarem o filho crescer e ter noção da sua surdez e decidir se ele quer fazer um implante. Muitos surdos dizem que não fariam o IC nos filhos, porque somos felizes com nossa surdez.

Parte externa do IC


Informações sobre IC:

Da mesma fonte, informações sobre ABI:





quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Intérpretes de Libras

Nos meus primeiros anos ambientado no universo dos surdos, fiquei muito alegre ao conhecer a língua de sinais que, naqueles tempos, ainda não era chamada de Libras. Eu perdi a audição em Formiga, estive em tratamento em Belo Horizonte, mas voltei para Formiga meses depois. Meu contato com os surdos só ocorreu no ano seguinte, quando fui continuar os estudos no Instituto Santa Inês. Minhas conversações se davam através de leitura labial e, minha mãe e meu tio tinham muita paciência para conversar comigo dessa forma; escrevendo. Quando comecei a estudar no ISI e a conhecer diversos surdos, percebi que eu não era assim tão diferente dos demais. Embora minha fala fosse perfeita, minha surdez era até mais profunda que muitos dos meus colegas, pois sou 100% surdo. Era engraçado alguns colegas com dificuldade para falar, mas ouvindo parcialmente e eu, com facilidade para falar e não ouvindo nada. Mas, o que me deixou muito alegre foi a descoberta da língua de sinais e a possibilidade de “conversar” sem esforço de leitura labial ou escrevendo. Apesar de muitos especialistas em educação discordarem da língua de sinais, esta é uma forma de comunicação muito importante na vida dos surdos.
Só vim a tomar conhecimento dos intérpretes de sinais muito tempo depois, quando já estava trabalhando e participei de algumas palestras. Considerei muito importante o trabalho do profissional que traduzia em sinais o que o palestrante falava.
Em dezembro de 2005, o Presidente Lula assinou o Decreto 5.626, que regulamentou as leis que dispõem sobre a Língua Brasileira de Sinais- Libras, tornando oficial a Libras como língua dos surdos.
Mais recentemente, trabalhando junto com os surdos e com o CMPPD (Conselho Municipal da Pessoa Portadora de Deficiência), tive contato com diversos intérpretes. Alguns deles trabalharam especificamente comigo (tradutor pessoal).
Em convenções ou eventos longos, que têm a presença de muitos surdos, diversos intérpretes se revezam na tarefa de tradução.

Os problemas que notei junto aos intérpretes são relacionados à justiça. Contratados para trabalhar como intérpretes em audiência, alguns mostraram grande despreparo para a função. O problema não era tanto deles, mas sim dos próprios juízes, que os contratavam, ou simplesmente pediam a “ajuda” deles. Eles eram supervisores de trabalho dos surdos no tribunal, mas isto não quer dizer que eram intérpretes qualificados para trabalhar em uma audiência. Infelizmente, são muitos os que acreditam que se uma pessoa sabe Libras, ela pode ser intérprete. Não pode. O trabalho de intérprete envolve muito mais do que simplesmente traduzir uma conversa informal. Numa audiência, muitas vezes ocorre de alguns questionamentos serem rápidos demais e o intérprete deve estar bastante atento para não deixar escapar o que é realmente relevante. Lembro de um intérprete tão tranquilo, refastelado numa cadeira ao lado do Juiz, excessivamente tranquilo, que não traduzia para a escrivã o que o surdo estava depondo. Lembro que levei uma reprimenda do Juiz, quando falei em alto e bom som, que o surdo tinha “falado” uma coisa e o intérprete tinha traduzido outra. Aliás, esta é uma das grandes dificuldades que enfrentam os intérpretes novatos: traduzir a fala de uma pessoa para Libras é bem mais fácil que traduzir Libras para o português, principalmente se a língua do surdo for somente Libras. É necessário muita atenção com sinais idênticos para diversas palavras, tipo “sábado” e “laranja”. “Eu paguei sábado”, um desatento traduz como “Eu paguei as laranjas”. Eram tantos os intérpretes ruins que surgiam nas audiências que tenho quase certeza que eles não eram intérpretes profissionais e sim os supervisores de trabalho dos surdos nos setores. A pior tradução ocorreu com um surdo fazendo sinal de “carteira de trabalho” e a intérprete traduzindo como “multa” (mas, falando “carteira de trabalho”). O próprio surdo estranhou que a intérprete fizesse tanto o sinal de “multa” e ele mesmo questionou o porque disso. Ela ficou muito constrangida quando o próprio surdo a corrigiu, com sinais, “Multa errado, errado! Sinal certo “carteira de trabalho”". Ora, como é possível isto em uma audiência que está decidindo coisas importantes para diversas pessoas? O despreparo é jurídico, mas os próprios intérpretes jamais deveriam aceitar trabalhar em audiências sabendo que isto representa uma enorme responsabilidade, se ainda não estiverem plenamente capacitados. O problema é que alguns juízes e alguns intérpretes consideram os surdos “coitadinhos” que não têm conhecimento do que sejam as leis e acreditam que eles, juízes e intérpretes, vão ajudar os surdos da melhor forma. É um erro crasso. Tanto réus quanto requerentes só querem uma boa interpretação do que dizem e que a justiça seja imparcial. Pior ainda foi a intérprete que era amiga do requerente, ambos prestavam serviço para a mesma empresa (ela, como supervisora de trabalho dos surdos e o requerente como prestador de serviço). O advogado do réu interpelou o juiz sobre isso, mas ele considerou normal. No decorrer dos testemunhos lembro de como a intérprete ficou envergonhada e parou de interpretar, quando a testemunha disse, com riqueza de detalhes, como o requerente ameaçou uma pessoa. Era perceptível a decepção da intérprete com este fato. Ela gaguejou “a-ameaçou?” e parou de traduzir. Como a testemunha falava e gesticulava ao mesmo tempo (surdez parcial), a escrivã não perdeu os fatos e os transcreve integralmente.
Relato estes acontecimentos, que eu presenciei pessoalmente, para demonstrar o quanto é necessário estar capacitado para o trabalho de intérprete. Saber Libras é o requisito essencial, mas não é o suficiente. É necessário conhecer os diversos tipos de surdos, conviver com eles e ter discernimento para não se envolver com o que está em julgado. Muitas vezes os intérpretes, por conviverem com os surdos, acabam tomando partido na contenda. E isto não deve ocorrer. A imparcialidade é essencial.
A sociedade também não sabe, até hoje, como lidar com os surdos. A diversidade dos surdos causa uma grande confusão. Uma das piores confusões ocorrem quando as pessoas que lidam com um ou dois surdos, se fiam neste padrão. Estas pessoas acabam acreditando que todos os surdos serão como os que com ela convive. Já houve momentos em que tive que explicar a algum chefe de setor por onde trabalhei, que o outro surdo não iria entender o texto com as instruções sobre algum serviço. E o espanto do chefe de setor:
- Como assim, não vai entender? Está muito bem explicado.
E eu, pacientemente, esclarecendo que nem todos os surdos entendem o português como eu entendo. Que para alguns a explicação tem que ser pessoal, ao lado dele, mostrando como se faz. O intérprete também deve saber disso, conhecer o surdo suficientemente para utilizar Libras sem apoio da língua portuguesa ou, como no meu caso, podendo usar datilologia para uma ou outra palavra sem correspondente em Libras.
Ainda na questão jurídica, um juiz questionou o fato de na audiência constar a presença de três intérpretes. O intérprete do réu, o do requerente e o do tribunal. Mas não permitiu explicações. Seria ótimo se tivesse a oportunidade de esclarecer ao Sr. Juiz que os surdos necessitam que seja desta forma. O intérprete do tribunal está à disposição do juiz, não dos surdos presentes. O intérprete do tribunal vai traduzir a Libras para o português. E as perguntas do juiz ao reu ou requerente. Mas, não vai traduzir se o juiz e o advogado começarem algum embate técnico. Por isso requerente e réu levam seus próprios intérpretes. Eles vão traduzir tudo, até mesmo conversações dos advogados.
Estes meus relatos são sobre pendências simples, audiências preliminares, consideradas de conciliação, envolvendo causas trabalhistas ou cíveis. Não sei como funciona em causas criminais, muito mais complexas. Mas, acredito que sim, mesmo em causas criminais, acusador e réu devem ter seu próprio intérprete. Lembro do advogado perguntando porque eu insistia em ter minha intérprete do lado. Eu respondi, sinceramente:
- Porque eu me sinto mais seguro. Minha intérprete não deixará passar nada importante sem traduzir para mim. A confiança que tenho na minha intérprete pessoal é praticamente a mesma que tenho na sua defesa da minha causa.
Os intérpretes que têm alguns problemas com os surdos são alguns intérpretes religiosos. Devido a questão religiosa, eles modificam os sinais referentes a Jesus, Maria, entre outros. Os surdos que sempre lutaram por sua língua oficial não concordam que intérpretes religiosos modifiquem sinais tradicionais. Como é possível que uma religião faça o sinal de Jesus de uma forma, outra diferente, só porque não seguem os mesmos credos? Uma das coisas que os surdos identificam logo como sinal oriundo de religião é o sinal utilizar a primeira letra da palavra como base. O surdo cria o sinal de forma espontânea, observando o que mais se aproxima do mesmo. A origem do sinal “sapato” tem a ver com sapato, embora um ouvinte dificilmente associaria o sinal a sapato. Diria que não tem nada a ver. Mas, o sinal tem sua origem nas antigas calçadeiras de sapatos, que eram bastante comuns antigamente. Na época em que eu estava mais partícipe da comunidade surda, o fato de alguns intérpretes religiosos estarem usurpando a criatividade dos surdos para criação de sinais, era uma questão discutida constantemente.

O trabalho dos intérpretes é de extrema importância para a socialização/participação dos surdos.

Intérprete não é somente interpretar em Libras. Devem também saber interpretação oralista (repete o que a pessoa/palestrante/professor está falando com vagar, para os surdos oralizados). Os surdos oralizados que não conhecem Libras necessitam de ajuda à deficiência da mesma forma que os demais surdos. Porém, o surdo oralizado não bilingue precisa de um intérprete oralista. E nos casos de vídeos, a legenda. Os surdos oralizados não têm interesse em aprender ou divulgar a Libras, pois para eles a língua principal é o português. Os intérpretes devem estar capacitados a fazer a interpretação oralista e a respeitar o desejo do surdo oralizado de ter um intérprete exclusivamente para isto.

Para mim, o intérprete que utiliza Libras e oralismo não incomoda, uma vez que sou bilingue. Normalmente este intérprete também não incomoda os surdos que só utilizam Libras, pois ele se fixa apenas aos sinais. Eu aproveito as duas linguagens que o intérprete utiliza (Libras e oralismo) para compreensão da mensagem. Mas, o surdo somente oralizado não se sente confortável diante do intérprete que utiliza oralismo e Libras.

É imprescindível que todos os tipos de deficiência auditiva sejam respeitados (surdos com Libras, oralizados e surdos com IC (Implante Coclear)). Muitos dos surdos com IC preferem o intérprete oralista, pois aproveitam as duas possibilidades (ouvindo com o IC e fazendo leitura labial) para compreensão da mensagem.

Meu agradecimento a estes profissionais que executaram o seu trabalho com grande profissionalismo.

Foram meus intérpretes pessoais em diversas situações: R.A.R. e J.S.O.

Trabalharam comigo, em palestras, reuniões, assembléias, audiências, campanhas, eventos, escola: S.M.O., D.G.M., R.L., F.G., T.P.P., M.

Vídeo sobre Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Com legendas e intérprete de Libras.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A arte de fazer arte - III

- Professor O. a Irmã A. está chamando o senhor.
- Nessa eu não caio, Jairo! – respondeu o professor rindo.
Era 1º de Abril e eu estava pregando peças em todos. Disse à Doralice que a Professora Dona R. estava chamando na sala da 6ª série. Enquanto ela se dirigia para a sala da 6ª série, eu falei, todo sério, com nosso professor de Geografia:
- Professor L., a Irmã A. está chamando o senhor.
- Onde ela está?
- Na hora que ela me falou ela estava entrando na Diretoria.
Ele se dirigiu para lá e eu entrei na minha sala. Sentamos e o Professor O. começou a aula de Ciências, fazendo a chamada.
- A Doralice não veio? – ele perguntou.
- Veio. – respondi rindo. – É que ela está com a Professora Dona R.
A Doralice entra na sala, gesticulando nervosa “mentiroso, mentiroso!”.
- A Dona R. não estava me chamando. Mentiroso!!
Todos riram e ela perguntou:
- Porque ele está falando mentira?
- Hoje é 1º de Abril, dia da mentira. Pode falar mentira  à vontade.
Quando o recreio estava terminando, duas alunas da 6ª série voltavam do pátio e eu disse, com sinais:
- “Hoje confissão Padre Vicente. Esperar na capela. Vocês atrasadas já”.
Elas deram meia volta e foram para a capela. Eu voltei para minha sala. O Professor O. estava ministrando a aula de Matemática (ele lecionava as duas matérias, Ciências e Matemática).  A Irmã A. entra na sala e começa a conversar com o professor. Sempre prestávamos atenção quando a Irmã A. entrava, porque era alguma informação ou modificação nos horários de aula. E li direto nos lábios dela:
- Professor O. não teve aula de Geografia para ninguém hoje. Não sei o que aconteceu, mas o Professor L. foi embora, após perguntar onde eu estava.
- Isso é o Jairo e as brincadeiras de 1º de Abril. – dedurou o professor, rindo, sabendo que eu tinha falando com todos os professores que a Irmã A. estava chamando.
- Ê, menino! O Professor L. estava pedindo alguns dias de licença e quando você disse que eu estava chamando, ele pensou que era para dispensá-lo e foi embora.
- Não sabia disso não, Irmã. Eu falei de brincadeira.
Neste momento entra a Irmã G., Professora de História, preocupada:
- Duas alunas da 6ª série não voltaram do recreio, procuramos e não encontramos em lugar nenhum.
As Irmãs A. e G. saíram da sala e o Professor O. ia continuar a aula, mas o Adão escutou o que a Irmã G. disse e me informou, já sabendo o que eu tinha aprontado:
- Professor, manda as Irmãs buscarem as duas na capela.
- Capela? Como você sabe que elas... Jairo, o que você aprontou agora?
- Eu disse que hoje tinha confissão do Padre Vicente e falei para as duas irem para a capela.
O Professor O. foi até as Irmãs e informou onde estavam. As duas estavam na capela, sentadas no primeiro banco, caladinhas, esperando o Padre Vicente. O Padre Vicente era uma grande figura. Referência para todos os surdos, devido à sua luta para se tornar padre. Ele foi o primeiro padre surdo do Brasil. Era muito amigo de todos os surdos, principalmente por usar a língua de sinais. Era também bastante enérgico conosco.
O Padre Vicente não estava lá, claro.
O Professor O. voltou e contou o que tinha ocorrido.
- Professor, a Irmã A. vai me dar uma advertência depois dessa? – perguntei, meio temeroso.
- Não, Jairo. – e se aproximou de nós, segredando – Não contem para ninguém, mas quando eu disse para a Irmã A. o que você aprontou, ela soltou uma gargalhada.
E o Professor O. acrescentou, ele mesmo rindo muito:
- Nunca tinha visto a Irmã A. gargalhar antes.

terça-feira, 31 de julho de 2012

A arte de fazer arte - II

Nas aulas de datilografia a Irmâ C. nos levava para o prédio do Colégio Monte Calvário, pois o Instituto Santa Inês ficava em um prédio mais ao fundo. A entrada para o ISI, aliás, era separada do Monte Calvário. No recreio, no entanto, usufruíamos do mesmo pátio. A Irmã C. era muito alegre, gostava muito de todos nós e era também cruzeirense. Eu e o Adão, que tanto falávamos de Cruzeiro descobrimos isso e eu fiquei curioso:
- Mas, como a senhora acompanha os jogos?
- No rádio, quando o horário livre permite.
Ela explicou que era uma coisa da família, do pai, principalmente, que a levava ao estádio quando era pequena.
Quando passamos pelos corredores do Colégio, eu e o Adão percebemos que o dormitório das noviças ficava do lado direito do prédio. A Irmã C. nos buscava toda quinta-feira e quando chegava no final do grande corredor, ela parava à direita e aguardava enquanto virávamos à esquerda. Éramos somente dez alunos na sala.
Entre diversas conversações eu e o Adão resolvemos que um dia iríamos virar à direita. Queríamos porque queríamos ver os quartos das noviças. Pensávamos em camas de cimento, grades nas janelas e, não sei de onde tiramos isto, obrigadas a dormir nuas. Este era o maior incentivo à aventura. Ver as noviças nuas ou trocando de roupa (que bobagem!, é claro que elas trocariam de roupa com a porta do quarto fechada). Elas eram jovens, risonhas e sempre estavam a cuidar da horta, na parte alta do Colégio, acima das quadras. Tinham entre três a quatro anos mais que nós (eu e o Adão tínhamos 14 anos à época). Algumas eram muito bonitas e a roupa de noviça dava um toque especial, o vestido longo azul e o véu branco. Sabíamos que era expressamente proibido para os alunos transitarem nos corredores do andar superior do prédio do Colégio. Nós, alunos do ISI só passávamos por ali com o aval da Irmã C. Eu e o Adão ficamos maquinando como fazer para virar à direita e não à esquerda sem chamar a atenção da Irmã C. Ele disse:
- Ficamos um pouco para trás e viramos.
- Não dá, Adão. Somos poucos e a Irmã C. perceberá no ato.
Idéias e mais idéias depois eu disse:
- Na quinta-feira, no horário anterior você vai para o banheiro. Eu vou indo com a turma e a Irmã C., mas “esqueço” o material de datilografia. Volto para buscar, você sai do banheiro e vamos. Não pode os dois “esquecer” o material, senão ela desconfia.
O horário de datilografia era o segundo (8:00 h mais ou menos). Na quinta-feira, sem receio, pouco antes de 8:00 h o Adão pediu licença para ir ao banheiro e não voltou mais. A professora do primeiro horário nos deixou e logo depois a Irmã C. veio nos buscar. Já estávamos fora do prédio do ISI, atravessando o grande pátio quando eu disse que tinha esquecido o material. Voltei meio que correndo. O Adão já estava saindo do banheiro. Pegamos o material e fomos. Como imaginei, a Irmã C. não nos esperou e no final do corredor o caminho estava livre à direita. Por ali entramos, observando atentamente os dormitórios das noviças. Não vimos nada demais. A maioria delas já estava fora dos quartos. Uma ou outra ainda estava ajustando o véu, nos fitavam com espanto, mas não tinham, ainda, a autoridade das superioras para nos inquirir. Eram quartos simples, com uma cama, um pequeno criado mudo, crucifixo na parede, um outro pequeno móvel, tipo cômoda. Algumas cruzaram conosco sorrindo. Decepcionados, eu e o Adão já nos preparávamos para dar meia-volta quando demos de cara com uma Irmã. Ela não trabalhava no ISI e não conhecia nossa fama (ainda bem!). Vendo nossos uniformes do ISI, perguntou o que fazíamos ali e eu e o Adão, agora com medo, gaguejamos:
- E e e ele, nós... a aula.
- Pro pro curando a a a Irmã C. – eu disse.
Ela não entendeu porque estávamos procurando a Irmã C. As Irmãs que não trabalhavam no ISI não tinham um bom conhecimento dos hábitos estudantis dos surdos. Ela falou devagar, com calma, tranquila diante do nosso nervosismo:
- O que vocês querem com a Irmã C.? Aconteceu alguma coisa?
- A a a a aula de geografia – disse o Adão, supernervoso.
- Datilografia! – eu corrigi. – É que ficamos para trás e erramos o caminho. Deve ser pro outro lado.
Ela disse com uma tranquilidade na voz e na alma (não escutei nada, claro, mas os surdos “sentem” quando uma pessoa está falando com a voz calma):
- Ah, sim, as máquinas de escrever estão do outro lado do corredor. Vocês viraram à direita ao invés de virar à esquerda.
Como se a gente não soubesse!!
Ela era muito bonita. Tinha um ar tranquilo e um sorriso que realmente acalmava. Ela passou o braço no meu ombro e no do Adão e nos conduziu para fora da área dos dormitórios das noviças. Por um instante até pensei que ela estava só esperando sair de perto das noviças para nos pegar pela gola da camisa e nos conduzir meio que suspensos no ar, até a sala da Madre Superiora ou da Irmã A., a Diretora do ISI. A Irmã A. era realmente brava. Todos tinham medo dela. Mas, esta Irmã simplesmente nos conduziu até próximo à sala de datilografia. Sua mão direita apoiava-se carinhosamente no meu ombro. Era algo muito reconfortante. E ela não entrou na sala de aula da Irmã C. Não informou à Irmã C. que estávamos em área proibida.
Aliviados eu e o Adão adentramos a sala. A Irmã C. nos encarou, surpresa:
- Nossa, vocês demoraram!
- O Adão quer fazer cópias em mimeógrafo e fomos pedir ao Professor O. um stencil. – eu já estava mais seguro e menti descaradamente. Por sorte, eu tinha um stencil comigo. (Obs.: futuramente abro um post explicando para os mais jovens, que nem têm idéia do que seja mimeógrafo ou stencil.)
A aula transcorreu normalmente. Não ocorreu nada no restante do dia, embora o Adão duvidasse que a Irmã do sorriso lindo não fosse nos entregar para a Irmã A.
- Não vimos nada de cama de cimento, elas têm cama normal, com colchão e tudo e estavam todas vestidas. – disse o Adão.
- Aposto que não dormem peladas coisa nenhuma.
- Passamos aquele sufoco todo para nada, Jairo.
- Vai ver que é porque elas são noviças e ali não é clausura, é quarto. Vai ver que essas coisas é só com as Irmãs, não com as noviças.
- Onde será que fica o dormitório das Irmãs?

A arte de fazer arte - III

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A arte de fazer arte - I

Minha sala no Instituto Santa Inês ainda tinha resquícios da época em que o ensino para os surdos era focalizado na oralização. As carteiras ainda tinham os fones de ouvido (enormes, iguais aos de radialistas) guardados em seu interior e no exterior os diversos comandos de som, volume e microfone. Inclusive, numa sala do segundo andar o equipamento estava conservado. Uma vez tivemos uma aula de português lá, com a professora colocando uma música para “ouvirmos” e depois interpretarmos o texto. Afora o Adão, que ouvia acima da média, os demais não gostaram da aula. A professora fez uma pesquisa para verficiar se gostaríamos de repetir a aula lá e a resposta foi “não”, com um único “sim”, do Adão, claro. Eu ainda expliquei que tudo que ouvia era um “bzzzzz, bzzzzz” na cabeça e mais incomodava que ajudava.
Na nossa sala, o equipamento não funcionava mais e só servia para eu e o Adão fazermos nossas brincadeiras, ora “narrando um jogo pela rádio” ou falando um para o outro, com os enormes fones nos ouvidos, e perguntando entre gargalhadas:
- Tá escutando?
Ou:
- Vamos ouvir a música do Roberto Carlos, Amada Amante, em homenagem ao meu amigo Adão. – e mexia nos comandos na mesa e começava a cantar a música (que eu já ouvi e conheço).
O Adão, que tinha perda auditiva baixa, ouvia o suficiente para comprrender muita coisa. Ele ouvia, inclusive, rádio (surdos que “ouvem” a tv têm a ajuda das imagens e fazem a leitura labial para acompanhar)
- E para o Jairo vai a música, também de Roberto Carlos, Meu Pequeno Cachoeiro. – isto porque eu vivia falando de Formiga. Ele me zoava com essa música cantando Formiga ao invés de Cachoeiro.
Na hora do recreio eu eo Adão ficávamos na sala brincando com o equipamento. Dois colegas de outras séries, Carlos e Wilton, descobriram nossa brincadeira, e ficavam a nos observar. O Wilton ficou curioso e quis saber o que era na verdade todo aquele equipamento. Naquela época eu não sabia muito bem e expliquei da aula no segundo andar. O Wilton então tentou ligar um dos fones na mesa do professor, que também tinha os equipamentos e um microfone. Eu e o Adão rimos e eu disse:
- Você não está vendo que toda a fiação está cortada?
- Sei. Mas, de onde ela vem?
- Da caixinha aí na parede.
Ele foi para a caixinha, paramentado com o enorme fone de ouvido e tentou encaixar o cabo de entrada do fone em algum lugar.
Eu ri:
- Mas você quer ouvir o que, ô, Wilton? Não tem nada produzindo som e ninguém falando em microfones.
O Adão avacalha:
- Ele espera ouvir os sinais extraterrestres.
Estávamos às gargalhadas quando o Wilton resolve mexer na fiação. O estouro que ocorreu quase derruba eu e o Adão das cadeiras, assustados. O Carlos pulou para fora da sala apontando para o Wilton e fazendo top top top. Eu, o Adão e o Wilton também saímos correndo da sala para o corredor. Quatro surdos correndo de barulho.
Quase no final do corredor, da sala da Diretoria, já saía uma Irmã, assustada, em nossa direção.
- Jairo e Adão, o que vocês estão aprontando agora?
Como sempre, sobrava para nós. Mas o Adão respondeu:
- Nós não fizemos nada. Quem estava mexendo na fiação era o Wilton.
Todos olhamos para o Wilton e rimos:
- Tira esse fone dos ouvidos, cara! Viu o que dá mexer em fiação antiga!
Com a Irmã à frente, voltamos para a sala. Não havia fogo, nem cheiro de queimado. A Irmã começou a xingar eu e o Adão.
- Vocês ficam brincando com os aparelhos e...
- Ah, não, Irmã. Foi o Wilton que mexeu na caixa na parede. Porque a fiação das carteiras não tem ligação com nada, os fios estão cortados. – não precisava ser um gênio da eletricidade para ver e saber disso.
Ela concordou, mas tempos depois as carteiras com aparelhagem foram retiradas da nossa sala.

A arte de fazer arte - II

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Santos Dumont, um brasileiro

14 Bis, o primeiro avião mais pesado que o ar
O Google homenageou ontem um dos mais famosos brasileiros: Santos Dumont, o Pai da Aviação.
Praticamente todos conhecem a história deste brasileiro (mineiro, também). Mas, vale a pena ressaltar alguns dados:
- O fascínio de Santos Dumont por máquinas o levou a adquirir um automóvel e a promover e participar de corridas em Paris.
- Ele ganhou diversos prêmios (em dinheiro) por vôos realizados e seu costume era distribuir os valores entre seus operários e os pobres de Paris.
- Ele não patenteava suas invenções e seus projetos foram aperfeiçoados por outros.

E mais:
- Ficou muito amargurado quando aeroplanos foram utilizados na Primeira Grande Guerra Mundial.
- Anos depois, apelou à Liga das Nações para que impedisse a utilização de aviões como armas de guerra.
- Ele se manifestou diversas vezes que sua invenção foi doada à humanidade para fins pacíficos. Jamais aceitou que sua invenção fosse utilizada para fins bélicos.
- Ele se suicidou pouco depois que soube que aviões foram utilizados na Revolução Constitucionalista de 1932. Tinha 59 anos.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Nossos sensores extras

Falo com as mãos, escuto com os olhos.
Eu falo normalmente também. Não sou mudo. A maioria das pessoas não compreende que somos muito diferentes, que nossa compreensão não se resume à leitura labial ou aos sinais. O rosto do comunicador, todo o rosto, é importante para transmitir a mensagem.
Lembro do meu colega chegando num dia de verão, com óculos escuros e falando comigo:
- O Atlético ontem jogou...
- Tire o óculos escuros.
- Por que? - ele pergunta, espantado - Você lê os meus lábios, ora.
- Mas, os olhos ajudam na compreensão do que você está falando.
Mais ou menos 30% da mensagem é transmitida pelos olhos. A leitura labial envia a mensagem, mas o complemento emocional está nos olhos. A tristeza, raiva, alegria, rancor ou desdém está nos olhos, não nos lábios. Devido a todo momento estarmos lendo expressões faciais, nós surdos temos uma grande capacidade de percepção. Lemos nos olhos quando uma pessoa está triste, alegre, magoada, feliz. Só o jeito do chefe me encarar eu já sei se tem um problema com o serviço ou se está tudo tranquilo. É um sensor extraordinário, esta capacidade de ler os olhos. Vemos fundo n'alma de uma pessoa através de seus olhos. Lembro de meus amigos espantados, quando eu informava quem não gostava de mim, numa turma de  dez companheiros, por exemplo. Isso não é um privilégio dos surdos, claro, mas são os surdos que têm mais facilidade para esta percepção. O meu amigo Tonho uma vez se espantou com isso:
- Porque você está falando que o D. não gosta de  você?
- Pelos olhos dele. - eu ri - Não gosta mesmo...
- Estranho... Ele disse que você é meio invocado.
Na época praticávamos taekwondo, de forma amadora, mas vivíamos falando disso e fazendo demonstrações da luta (como os competidores olímpicos, que tentam acertar cabeça e tronco. Nós só tentávamos acertar o tronco). O D. praticava karatê em academia e não aceitava muito como a gente lutava.
Meu outro sensor é corporal. As pessoas se espantam quando eu me assusto com o bater da porta, com trovões mais fortes ou com estouro de foguetes. Acreditam que surdo não ouve nada e confundem ouvir com sentir. No caso da porta, eu sinto a vibração (quanto mais próximo eu estiver da porta, mais forte será a vibração e maior será meu susto). No caso de trovões e foguetes (rojão), os decibéis são elevadíssimos (um tiro ou um rojão chega a 140 dB). Por isso é errôneo pensar que vivemos em silêncio total. Alguma coisa pesada que cai, porta ou janela batendo, estouro de escapamento de carro, foguete ou bombinha, farão com que eu me assuste com o ruído, mas nem sempre saberei identificá-lo. Digo que o barulhão foi um foguete (rojão) quando na realidade foi um estouro de escapamento, ou vice-versa. Mas, não sentiremos o barulho de prato, moeda, copo ou garrafa caindo. Estes objetos não produzirão a vibração necessária para sentirmos alguma coisa, pois eles se quebram.
Foto: Jornal O Tempo
Quando novo minha surdez era realmente uma curiosidade para todos. Numa festa, na casa do meu amigo e vizinho, a criançada estava na sala brincando e eu estava na copa conversando com um jovem de uns 20 anos (na época eu tinha 15 anos) sobre a minha surdez. Justamente por eu ter me assustado com o barulho de alguém derrubando uma cadeira foi que ele perguntou como eu "ouvi" o barulho. Já tinha explicado como eu lia os lábios dele com facilidade (movimento labial muito bom) e passei a explicar o que era sentir as vibrações. No meio da conversa ele pegou umas moedas e soltou, perguntando se eu sentia esse barulho também. Eu respondi que não (na época ainda não sabia explicar porque não sentia o som das moedas caindo). Nisto, a meninada que estava na festa surge correndo na copa. Eu e o jovem rimos muito, ainda mais que eu falei:
- Eu não senti nada do barulho das moedas, mas a meninada, ó, estão escutando perfeitamente...
Eu convivi e convivo com ouvintes no seio familiar. Meus familiares são ouvintes, bem como minha esposa e filhos. Isto faz com que eu tenha uma referência para os barulhos que eu sinto. Se estou no quarto com minha esposa e sinto um barulho, mas ela não move um músculo, então eu sei que o barulho é insignificante. Quando eu  me assusto com alguma vibração mais forte, já me informa:
- Uma porta bateu.
- Alguém está soltando foguete.
O único problema é quando estou sozinho, sem alguém ouvinte para servir de referência, muitas vezes eu tenho que verificar o que foi o barulho. Quando estou sozinho é quando eu "escuto" a barulhada toda em derredor. É porque estando sozinho, o sensor que responde às vibrações fica mais alerta.
Também somos sensíveis a qualquer batidinha no móvel em que estivermos encostados. Também podemos sentir os sons tocando os objetos que fazem barulho (rádio, tv, computador). Podemos sentir a música, mas sentimos principalmente os instrumentos de percussão (tambores). O som produzido por instrumentos de sopro já não são sentidos, ou são sentidos, mas muito levemente.
Uma noite minha esposa pára de ler e se concentra em algum som. Eu pergunto, curioso:
- O que você está ouvindo?
- Uma ambulância ao longe...
- Porque ambulância? Pode ser um carro de polícia ou de bombeiros.
- Não. Cada um tem uma sirene diferente.
Legal! Minha memória auditiva lembra de sirene. Mas, em Formiga, na minha infância, o que eu ouvia era a sirene de polícia, pois lá não tinha bombeiros e não me lembro de nenhuma ambulância.
Ah, sim, eu só sei que está chovendo quando eu vejo a chuva.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Esclarecendo o Auxílio-reclusão

Um  dos fatores que  mais prejudicam a população é a divulgação errada das leis. Principalmente uma lei que beneficia o preso. Há anos circula e-mail e charges com a falácia de que o Auxílio-reclusão é um "benefício" concedido aos presos. É muito triste e constrangedor ler coisas do tipo: "prêmio por estar preso"; "vale a pena ser criminoso"; "se o criminoso tiver 5 filhos vai receber R$ 4.575,25" e por aí vai.
Não se deixe enganar. Presos perigosos
nunca trabalharam, nem pagaram INSS na vida.
A razão de tanta informação errada remonta à campanha presidencial de 2006, quando o governo Lula estava tentando a reeleição e o PSDB acreditava (acredita ainda) que o Bolsa Família renderia muitos votos. Consequentemente disseminou um e-mail apócrifo com as informações distorcidas e colocando a alcunha de "bolsa reclusão" ou "bolsa bandido" no Auxílio-reclusão tentando desta forma associar negativamente o Auxílio-reclusão ao Bolsa Família. Os e-mails se disseminaram de norte a sul do país, com as informações erradas e até os dias de hoje circulam, dando a entender que vale a pena ser delinquente. Não deixe que seu filho acredite nisso. Não divulgue estes e-mails. E quando receber um, responda com os devidos esclarecimentos. Também no facebook circula a charge acima. Não compartilhe. E se possível, esclareça que a charge está errada e deixe o link da Previdência Social.
O Auxílio-reclusão existe há mais de 50 anos. Não foi criação do Lula. Nunca foi chamado de "bolsa" reclusão (a palavra "bolsa" foi colada ao Auxílio-reclusão porque o PSDB tem em suas fileiras os maiores críticos do Bolsa Família e dessa forma tinham um mote para colocar todas as "bolsas" como algo negativo).
Leis específicas do Auxílio-reclusão (Lei nº 8.213, de 24/07/1991 e alterações posteriores,  Decreto nº 3.048, de 06/05/1999  e alterações posteriores,  Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 06 de agosto de 2010  e alterações posteriores)

Vamos deixar bem claro:
- O Auxílio-reclusão NÃO é um benefício. É um seguro devido a todos os contribuintes do INSS, igual ao Auxílio Doença. Em sendo um seguro previdenciário, o preso não está recebendo nada além do que ele já pagou/contribuiu.
- O Auxílio-reclusão NÃO é pago ao preso. É pago à família do preso.
- O Auxílio-reclusão NÃO é pago por dependente. É um valor fixo.
- O valor de R$ 915,05 (atual de 2012) não é o valor a receber e sim o teto máximo.
Somente quem está contribuindo com o INSS (trabalhador com carteira assinada ou autônomo que paga INSS em dia) e que foi preso tem direito a este auxílio. Lembrando ainda que. para ser considerado beneficiário é preciso ter contribuído ao INSS por, no mínimo, 12 meses.

Perguntas e respostas esclarecedoras sobre o Auxílio-reclusão na página da Previdência Social (clique). Leia, os esclarecimentos são oficiais e muito importantes.

Eu sempre respondo aos e-mails que recebo com as indignações de sempre contra o Auxílio-reclusão esclarecendo que não são verdadeiras as informações contidas no texto. E termino com a frase: ESCLAREÇA CORRETAMENTE O QUE É O AUXÍLIO-RECLUSÃO. NÃO PERMITA QUE OS JOVENS CRESÇAM ACREDITANDO QUE VALE A PENA SER DELINQUENTE.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Moedas sociais do Brasil

Eu nem sabia que existiam outras moedas no país. Nós conhecemos o vale-refeição, vale-alimentação, vale-transporte, que também são um tipo de moeda, mas, dinheiro mesmo, impresso com papel moeda, não conhecia.
Existe no Brasil mais de 80 tipos de moedas diferentes. São as moedas sociais, emitidas por Bancos Sociais com circulação restrita. Em grandes cidades, normalmente estão restritas a um bairro ou comunidade. Em pequenas cidades, é a moeda corrente. A função das moedas sociais é garantir o crescimento da economia local. Muitas vezes as pessoas recebem altas somas de dinheiro, mas ele não é gasto na comunidade local. As pessoas procuram grandes redes de supermercados, shoppings centers. Com a moeda social restrita a uma comunidade, o ganho é da comunidade, gerando crescimento. Em alguns locais a moeda social é mais vantajosa que o real; os comerciantes dão desconto para pagamentos com moeda social.
A moeda social é paritária com o real. Um maracanã, sabiá, tupi ou palmas equivale a um real.
O Banco Palmas é um dos bancos sociais que trabalham com estas moedas. Também fazem empréstimos, garantindo vantagens para quem solicita valores em moeda social, com juros zero. Emprestam também reais, mas com juros.
Se deseja ler mais, clique AQUI - a reportagem é de 2008.



Utilize as setas <- Anterior ou -> Próximo, para visualizar os slides. Ou > Reproduzir, para reprodução automática.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Flagrantes de BH...

Meio-dia e meia, Praça da Estação.
O mendigo resolve descansar, que ninguém é de ferro.
Mas, o legal mesmo é que os dois cães que o acompanham, também resolvem descansar. E dormem ao lado dele, indiferentes ao barulho dos passantes, que saem do túnel do metrô. Um dos cães dorme de patas para o ar bem ao lado do dono.
Essa é a nossa BH.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

É nóis na roça... IV

Na manhã seguinte, o Walter pegou a bicicleta e foi trabalhar. Nem vimos ele saindo. O Edson fez o café. Comemos com biscoitos. Eu e o Edson lavamos os vasilhames sujos na noite anterior. E como sempre, acabo sendo o ponto de desabafo de meus amigos. O Edson:
- O Amarildo quando bebe muito fica encrencando com tudo. Não pense que ele encrenca só com você, não. Com a gente também ele adora discordar de tudo. Não sei pra que...
Momentos depois, quando acompanho o Ivan até a entrada da mata, onde ele ia tentar matar algum pássaro para o almoço:
- Não deixa o Edson fazer o arroz de novo, não, senão vai ficar uma porcaria de novo.
- Tá, ta... eu faço junto com ele. O problema ontem é que colocamos muita água.
- O Edson não sabe cozinhar coisa nenhuma...
Ele entra mata adentro, eu volto para a casa. Eu e o Amarido resolvemos jogar baralho, do lado de fora da casa, aproveitando o sol.
- O Ivan só sabe reclamar e não faz nada para ajudar. – reclama o Amarildo.
- Ele foi ver se caça alguma coisa para o almoço.
- É, mas só foi porque o Edson disse que ele devia ajudar em alguma coisa.
Estas situações sempre me constrangeram um pouco. Porque eu, muito amigo de todos os três, tinha que “ouvir” calado cada um reclamando do outro. Por conseguinte eu jamais ampliava as reclamações de um e outro. Se algum deles pensava que eu iria repassar a reclamação ao outro, estava enganado, porque eu me mantinha neutro. Eu não reclamava de nenhum deles, aliás, na maioria das vezes, os defendia dos outros, dissimuladamente, usando a palavra “nós”. Claro, imaginava que eu também entrava na roda, com algum deles reclamando de alguma coisa minha.
O Walter chegou meio-dia e meia, trazendo pão, sardinha e um frango abatido. Eu e o Amarildo estávamos exaustos do jogo, “burro”, que ele chegou a estar ganhando de 6x3, eu fiz 6x6, empatamos mais uma e ele parou. Rimos, com o Edson, Ivan e Walter do lado, querendo o desempate, mas o Amarildo disse:
- Paramos por aqui. O empate é a paz entre os adversários.
- Só até a próxima disputa. – respondi, entre gargalhadas do pessoal.
O almoço saiu melhor, porque eu não deixei que colocassem tanta água como no dia anterior. Comemos, acompanhado do que sobrou da galinha. O Ivan reclamou que a galinha já estava meio perdida, mas comemos assim mesmo. Tanto que o mesmo Ivan colocou mais comida e pegou mais pedaço de galinha. O Edson:
- Olha a vontade do Ivan, comendo a galinha perdida...
- Galinha perdida? Nós já encontramos o melhor caminho para ela!! - eu disse, arrancando gargalhadas do pessoal.
A tarde estávamos na parte da frente da casa, conversando, bebendo e fumando. O Edson estava com o violão. São momentos complicados, pois não tem como eu participar. Até que eles começaram a cantar músicas religiosas, pois participavam do Grupo Jovem e organizavam a Missa dos Jovens. Algumas músicas eu acompanhei; “Senhor, faze de mim um instrumento de sua paz; onde houver ódio que eu leve o amor;...”, “o Senhor me chamou a trabalhar, a messe é grande a ceifar, a ceifar o Senhor me chamou, Senhor aqui estou, Senhor aqui estou”..., “pão e vinho que é o próprio Cristo, nessa mesa Senhor nós te ofertamos”, “Glória, glória, aleluia, glória, glória, aleluia, louvemos o Senhor...”.
O pessoal se espanta:
- Como você conhece estas músicas tão bem?
- Eu e meu primo íamos mais à Missa dos Jovens do que na Missa das Crianças. Essas músicas eram as mais cantadas. Como eu já disse, minha memória auditiva é excelente. E mesmo lembrando só partes da música, eu procurava a letra completa e decorava.
- Seu primo canta na Missa dos Jovens até hoje.
- Nós tínhamos uns 10 anos, mais ou menos, quando ele ia à Missa dos Jovens e soltava a voz cantando “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos. – foi uma música que tocou muito nas Missas, e também, “A Montanha”. – Eu não tinha o mesmo entusiasmo do meu primo e não cantava nada.
- E da Missa das Crianças?
- Tem aquela da Primeira Comunhão: “chegou o dia da querida festa, chegou a hora em que vamos comungar, a inocência brilha em nossa testa, queremos sempre a Jesus amar...”
O Edson diz “isto!” e acompanha com o violão.
Eram os tempos em que a maioria dos jovens eram católicos. O Ivan era ex-seminarista, o Edson e Amarildo participavam ativamente do Grupo de Jovens, não só na paróquia, mas também em atividades externas, como visitas ao Orfanato, Asilo e Hospitais. Anos depois Amarildo e Ivan eram quase ateus. Eu, não gosto de muita coisa da Igreja Católica, mas ainda valorizo muito os seus dogmas.
Cantamos mais algumas músicas. Principalmente que o pessoal achou interessante eu acompanha-los na cantoria.
- A Missa das 7 horas da manhã era daqueles homens sérios, que levavam os Estandartes de Cristo.
- Lembra de alguma música deles?
Eu entoei, engrossando a voz:
- “Vamos todos a casa de Deus, do Deus que alegra a nossa vida, a Igreja é a imagem dos céus, nós somos a família reunida”. – o pessoal riu muito da minha entonação.
Só o Edson conhecia esta.
Fonte: Google
Sabendo que eles talvez quisessem cantar músicas populares e estavam sem jeito de me dispensar, eu disse que ia tomar café e fumar. Depois, enquanto eles continuavam com a cantoria, peguei a bicicleta e subi o morro, continuando a estrada além da casa da roça. Do alto, a paisagem era linda mesmo. A vista alcançava ao longe, o verde sobressaindo.
A noite foi tranqüila. O frango abatido era muito mais fácil de preparar do que a galinha. Jantamos e conversamos bastante.
O Walter ficou curioso:
- Jairo, como é que você tem esse nível de informação tão elevado?
- Ué, eu leio muito. Porque o espanto?
- Você não percebe, mas a gente fica admirado, porque você é surdo e muitas vezes sabe mais do que nós aqui, que ouvimos normalmente.
- Bom, eu fiquei surdo e como conseqüência da surdez, perdi muito o contato externo. Quando morei com minhas irmãs em BH e estudava de manhã, as tardes eu lia e escrevia muito. Aqui em Formiga, sim, eu ainda tinha mais amigos de futebol, natação, rua... Mas, não deixava de ler. Acho que minha frustração por não ter continuado os estudos me levava a devorar pilhas de livros, revistas, jornais. Só tem 2 anos que trabalho na gráfica. Mesmo assim, nos fins de semana meu maior divertimento ainda é ler.
- Tem uma memória muito boa, pra lembrar de tanta coisa. – riu o Ivan.
No domingo de manhã, arrumamos tudo e resolvemos voltar logo. Fizemos o caminho de volta avacalhando e rindo, como sempre. Paramos na casa do Edson, onde a avó dele não estava acreditando, de jeito nenhum, que eu era surdo. O Edson ficou enchendo minha bola, a tia e os avós dele passaram a me dar toda atenção. Eu tinha falado antes que queria café, porque o café que o Edson fazia lá na roça era ruim demais. Não tinha café.
- Não tem problema. Vamos indo, pessoal. Estou doido para tomar um banho... estamos parecendo os cinco porquinhos...
Nem pensar. A avó do Edson fez questão de preparar café, praticamente obrigando a gente a esperar.
O avô do Edson conta:
- O pessoal da outra roça passou aqui e disse que a minha casa da roça tinha sido invadida por um monte de jovens... armados com uma espingarda.
Nós rimos muito.

(Fim)

terça-feira, 5 de junho de 2012

É nóis na roça... III

Em volta do fogão de lenha, bebendo e conversando fiado, o Amarildo declama:
- Quando eu bebo Sukita, meu coração palpita.
Rimos. Mas eu quis saber o por quê da frase.
- É uma propaganda que está passando atualmente. Muito legal, bem humorada.
Era a propaganda do Tio Sukita, que ficou muito famosa e verdadeiramente fez crescer as vendas do refrigerante. Não sei se o personagem declamava o que o Amarildo citou. Na época não era fácil saber o que realmente era dito na TV se eu não tivesse uma boa alma ao lado no momento justo da propaganda. Hoje, as pesquisas na internet só retornam as propagandas do tio, que eu assisti e entendia mais ou menos (o quarentão se encantando pela menina de 18 anos, que sempre no final ela o chamava de “tio”).
Mas, eu sempre aproveitava os “ganchos” das conversações e declamei também:
- Quando eu bebo pinga, minha mãe me xinga.
O pessoal ri muito e eu e o Amarildo fomos duelando (o Amarildo primeiro, eu em seguida):
- Quando eu bebo Brahma, minha mãe reclama.
- Quando eu bebo pinga, minha mão catinga.
- Quando eu bebo Tatuzinho, nunca encontro o caminho.
- Quando eu bebo “mé”, eu não paro em pé.
- Quando bebo Coca-cola, não vou para a escola.
O pessoal ri, mas contesta:
- Uuuuu... não tem nada a ver Coca-cola e não ir para a escola.
Eu aproveito a deixa de novo:
- Minha namorada de camisola, parece uma Coca-cola...
A “torcida” contesta de novo:
- Não bebeu, não valeu...
- Vocês estão muito exigentes – eu ri – Então, corrijo: Quando eu bebo Coca-cola, vejo minha namorada de camisola.
- Quando eu bebo guaraná, minha namorada concordará. (só podia ser o Amarildo! Modificada devido à censura militar à época).
Eu consegui uma boa rima:
- Quando eu bebo Guarapan, me lembro do Ivan.
O pessoal riu muito desta.
- Quando eu bebo Mate-Couro, me torno um touro. – o Amarildo.
- Quando eu bebo Caracu....
- Parou, parou!
- Nem vem... essa não!
- Não bebe Caracu não!!
- Acabou... acabou...

Jantamos alegremente. A galinha, infelizmente, ficou meio dura. Algumas partes mais macias que outras. Mas, com o apetite aberto pela bebida, comemos como se fosse um banquete. Quem foi esperto pegou as partes macias, fígado, peito, coração.
Mais tarde resolvemos ir até à mina buscar água. Levamos uma garrafa de bebida, cigarros e uns pedaços de frango. O Edson carregava uma lamparina para iluminar o caminho. Uns vinte minutos de caminhada depois, chegamos à mina, onde enchemos os vasilhames de água, sentamos, bebemos, fumamos e conversamos. Ouviram alguma coisa e o Amarildo brincou:
- É o lobo...
O Ivan discorda:
- Isso não foi uivo, foi pio de coruja.
Percebo os olhares de todos atentos, apurando os ouvidos para identificarem o som.
- Agora foi um uivo... – insiste o Amarildo.
- Amarildo, não tem lobo no Brasil.
- Tem sim, o lobo-guará! – insiste o Amarildo.
Eles me informam o teor da conversa e eu esclareço:
- Você está certo nesta questão, Amarildo. Temos o lobo-guará, mas ele não uiva.
- Ah, essa não! Você não escuta, como você sabe disso?
Todos riem, eu inclusive. A bebida já estava afetando meu amigo.
- Não escuto, mas sei que o cachorro faz “au-au”, o gato faz “miau” e a hiena emite um som estranho que parece uma gargalhada humana...
- Lá vem você com seu conhecimento chato...
- Porque chato, colega? Eu apenas leio muito.
Fonte: Google
O Edson é mais honesto:
- Essa do lobo-guará não uivar nem eu sabia, Jairo.
- Eu tinha uma enciclopédia dos animais quando morei com minhas irmãs e uma delas ganhou um monte de livros da biblioteca do padre, da igreja em que ela trabalhava. Eu lia estes livros a tarde toda, depois que chegava da escola, não tinha nada para fazer a tarde.
- Que barulho o lobo-guará faz?
- Late. – rimos todos – Mas não é o “au-au” dos cachorros, é um pouco diferente.
O Amarildo resolve encrencar comigo:
- Se você nem ouve o que estamos ouvindo, como você pode dizer o que está uivando?
- Não vem não, Amarildo. Em nenhum momento eu disse que sabia o que está uivando. Mas, sinceramente, conhecendo nossa fauna, o Ivan está certo, deve ser uma coruja.
O Edson reclama com o Amarildo, pois o mesmo estava distorcendo o que eu disse antes. Sabendo que ele já tinha bebido muito, o Walter brinca:
- Passa a garrafa prá cá, Lobo Mau.
- Vai virar um lobisomem se continuar bebendo desse jeito.
O Walter conta um caso, o Ivan traduz:
- Ele disse que uns tempos atrás, uma família na roça foi praticamente dizimada pelo pai, que atacou a mulher e os filhos. O pessoal dizia que ele se transformou em um lobisomem.
- Credo! – reclama o Edson – Vou dormir com a lamparina acesa.
- É lenda. Não existe lobisomem. – diz o Amarildo.
O Ivan traduz o que ele diz e me fita. Ao perceber que vou falar alguma coisa o Amarildo esbraveja:
- Se você falar que existe, vou brigar com você.
- Não existe! – eu ri, juntamente com o pessoal – Mas, existe uma doença, uma síndrome, chamada licantropia, em que a pessoa acredita que se transformou em lobo.
- Não acredito! – o Amarildo só faltava soltar fogo pelas ventas – Me dê essa garrafa aí, Walter.
- Você vai jogar ela na cabeça do Jairo?
Rimos, porque sabíamos que no fundo, o Amarildo jamais partiria para a violência comigo, ainda mais devido a divergências tão banais de conversas. Era uma constante, debatermos sobre muita coisa. Mas, sabíamos que a irritação dele era real, principalmente quando ele bebia.
- Como você sabe dessa, Jairo? – perguntou o Edson – Para mim, transformações em lobos sempre foram lendas.
- A maioria é lenda mesmo, meu amigo. Na realidade, a pessoa não se transforma em lobo, ela apenas acredita ter se transformado no animal, passa a rosnar e a andar de quatro.
- Ainda não disse como ficou sabendo disso...
- Vocês vão rir: lendo revistinha de faroeste. – riram mesmo. Expliquei – Coleciono Tex, e um dos números tem a história “Diablero”, sobre um mexicano que se transforma em lobo, e encurtando, um personagem é cientista, quando Tex diz que algo assim era impossível, explica que a medicina há muito já havia relatado casos de licantropia, que é justamente esta doença. Claro que eu não deixei por isso mesmo e procurei feito doido algum livro que fizesse referência ao termo.
Hoje, com o Google, você acha o que quiser na internet. Mas naqueles tempos, era muito difícil encontrar alguma coisa sobre raridades. Licantropia é uma citação muito rara. Imagine mais de 30 anos atrás, a dificuldade de pesquisa.
Quanto à revista de faroeste, eu tive mais de 200 números. Anos depois eu vendi a coleção, por um bom preço, mas me arrependi depois.
Bebemos e fumamos. Resolvemos voltar para a casa. Eu já estava um pouco “alto” e voltei com uma mão apoiada no ombro do Ivan. O pessoal fica curioso:
- Tá brincando de guiar cego?
- Não, amigos. É que audição ajuda o equilíbrio e no meu caso, a falta dela me faz andar cambaleando pior que bêbado. Quanto mais escuro e mais irregular o chão, mais complicado é manter o equilíbrio. Eu ainda bebi muito, o que piora a situação.
Foi uma das primeiras coisas que eu descobri ao perder a audição. Andava escorando nas paredes. Demorou alguns meses até parte do equilíbrio retornar. Mas, não conseguia andar de bicicleta, tive que aprender de novo. Mas, mesmo depois de estar mais equilibrado, escuridão e chão irregular me faziam cambalear muito.
Na casa, cansados e um tanto “altos”, fomos dormir. Antes de apagar a lamparina, o Walter ainda brinca com o Amarildo, ao ouvir alguma coruja piando ao longe:
- O lobo, Amarildo!!
- Falou, Chapeuzinho Vermelho.

(Relato em 4 capítulos. Continua AQUI)