terça-feira, 27 de setembro de 2016

Inclusão de recursos audiovisuais nas salas de cinema

É uma grande conquista dos cegos e dos surdos brasileiros. Prazo de 6 meses para a legenda descritiva e de 12 meses para a Libras. Importante ressaltar o seguinte:  "Os recursos serão providos na modalidade que permita o acesso individual ao conteúdo especial, sem interferir na fruição dos demais espectadores." Ou seja, somente os espectadores surdos terão acesso à Libras e somente os espectadores cegos terão a legendagem descritiva.
Clique para ler
As empresas que comercializam sistemas de acessibilidade estarão participando dos trabalhos de implementação dos recursos.
Minha curiosidade está relacionada ao filme com acessibilidade em Libras, em que somente os espectadores surdos verão a tradução em Libras. Para os cegos, fones de ouvido com som exclusivo, fornecerão a legendagem descritiva. Mas, e para os surdos? Como a Libras será visível somente para estes espectadores?
Se alguém sabe como isto será feito, pode esclarecer nos comentários.

Recentemente tivemos muitos surdos reclamando da falta de legendas nos filmes. A reclamação era devido aos cinemas não disponibilizarem cópias legendadas de alguns filmes. Todas as sessões de fim de semana de alguns filmes eram dubladas. A cópia legendada era exibida somente no meio da semana, partindo daí a reclamação de espectadores surdos. Os filmes brasileiros também não disponibilizam legendas. A opção de legendas é a minha preferência para assistir filmes, sejam estrangeiros ou nacionais. Mas, sei que alguns surdos prefeririam a Libras. 

Também houve uma campanha para que a Netflix legendasse os filmes nacionais. Aparentemente, a empresa disponibilizou o closed caption para os filmes nacionais, tornando estes filmes acessíveis para os surdos. Os filmes nacionais mais antigos, porém, continuam sem a opção de closed caption.

Publiquei post recentemente sobre filmes em Libras. Para ler, clique AQUI.

sábado, 20 de agosto de 2016

Na roça.

A jardineira
Num fim de semana fomos, eu e meu primo, para a roça dos pais do Jamir. Fomos, nós três e a irmã mais velha do Jamir, na jardineira, um ônibus antigo, com frente de caminhão Mercedes Benz. Nós achávamos o máximo andar de carro ou ônibus. Hoje, acredito que veículos motorizados são uma coisa muito banal para as crianças. Não tem a empolgação que a gente tinha. A jardineira levava diversos moradores da roça, com suas compras, alguns com seus animais de pequeno porte (galinhas, pintinhos, patos). Na roça, nós três ficamos a brincar na área em volta da casa principal da fazenda.
Hoje também é difícil a criançada simplesmente brincar sem mais nem menos. Muitas vezes os adultos ditam para as crianças; brinca disso ou daquilo, sem contar os absurdos de chegar em alguma roça com a criançada e a primeira pergunta deles é: cadê o videogame? A casa dos pais do Jamir não tinha energia elétrica naqueles tempos. À tarde, nós três estávamos brincando no laranjal e o Jamir propôs de experimentar laranjas diferentes. Ele sabia qual era qual; São João, bahia, seleta, laranja-lima, laranja-pêra, etc, etc. Nesse meio tempo as irmãs do Jamir passaram por nós e disseram:
- Nós vamos ali e já voltamos. - a irmã mais velha do Jamir era colega das minhas irmãs mais velhas, estudavam o antigo magistério, seriam futuras professoras.
- Tá bão, - respondeu o Jamir - a gente fica brincando aqui.
Nós mineiros e este "ali" é complicado... O "ali" pode ser a esquina da rua ou quilômetros de distância. Lembro que os pais do Jamir também foram, na charrete. As irmãs do Jamir foram a cavalo.
Ficamos ali no laranjal, brincando e rindo, conversando fiado, subindo em algumas árvores. O tempo foi passando, a tarde avançando e começando a escurecer. Voltamos para a casa da fazenda, mas dentro estava escuro demais, então ficamos na escadaria. A escuridão da casa era mais assustadora do que a penumbra fora. Sentimos falta dos adultos:
- Seu pessoal está demorando, Jamir. - eu disse.
- Pior que num entendi onde eles falô que ia.
- Parece que sua irmã queria ver um rapaz, acho que Francisco.
- Vixi, então eles foi na fazenda do Seu Norato.
Ficamos os três a fitar a estrada ao longe, a claridade cada vez menor. Os três sentados na escadaria, a casa da fazenda já estava totalmente às escuras. Meu primo inventa:
- Vou beber água...
Sobe os lances da escada, passa pela porta da entrada e retorna.
- Não ia beber água? - perguntei.
- Não enxergo nada lá dentro!
A única coisa que evitava o nosso pânico era a companhia um do outro. Já não era possível avistar o caminho ao longe. Apenas uns cinco metros à frente. Os três, sentados juntos nos degraus, temendo a escuridão que começava a tomar conta de tudo, o silêncio assustador, entrecortado por alguns sons de pássaros e animais noturnos.
De repente, ouvimos ao longe o tropel de cavalos. Não era possível avistar quem se aproximava. Só o som dos cascos dos cavalos no chão de terra. Ficamos de pé, quase ao mesmo tempo, forçando a vista para ver quem chegava. Dava para escutar as batidas dos três corações; como bumbos em ritmo acelerado. O tropel de cavalos se aproximava, nós três de pé na escadaria, começamos a subir os degraus de costas, devagar, olhos arregalados. O medo de não saber o que se aproximava dava coragem suficiente para entrar na casa às escuras, se necessário fosse. Nós três, subindo a escadaria de costas, no mesmo ritmo, era a imagem pura e simples do medo.
Então ouvimos uma voz:
- Eu devia ter botado uma sela neste cavalo.
Aliviados, reconhecemos a voz de uma das irmãs do Jamir. Eles chegaram, os pais do Jamir de charrete e a mãe dele perguntou:
- Porque vocês não entraram, meninos? E você, Jamir, nem para acender uma lamparina?
Rimos. Nenhum de nós falou nada. Mas, qual!, a casa às escuras dava mais medo que o quintal com a claridade normal de uma noite limpa.

*Os nomes citados não são os verdadeiros.
Publicado originalmente em 2010.

domingo, 24 de julho de 2016

A lista negra

A convivência com os surdos possibilitou a percepção de que alguns ficavam marcados por toda a vida devido a algum ato errado. Mesmo após anos, o fato marcante envolvendo o surdo era a referência dele. Ainda que ele tivesse mudado, dificilmente conseguia modificar sua referência. Quando trabalhei como um dos responsáveis pelos encaminhamentos ao trabalho de diversos surdos, descobri que meu colega era adepto de uma “lista negra”. Nesta lista estavam todos os surdos que haviam causado problemas no serviço em anos anteriores. Mesmo eu falando que eram novos tempos, que teríamos as portas abertas para todos, ele se apegava a esta lista. Às vezes sequer aceitava receber os surdos desta lista. Ele era o “linha dura” e, estando no trabalho de encaminhamento há mais tempo que eu, eu preferia não polemizar.
Não sei como ocorreu, mas, de alguma forma, os surdos descobriram que eu era bem mais aberto e conciliador. Assim, quando chegavam à empresa para solicitar trabalho, a secretária Renée perguntava:
- Você quer conversar com o Guarnieri?
Espertamente, eles respondiam:
- Quero conversar com o Jairo, primeiro.
Assim, tinham a oportunidade de expor os fatos, explicar que já tinham solicitado trabalho ao Guarnieri, mas que ele não os encaminhava.
Um dos primeiros foi o Wendell. Ele disse que já tinha vindo ali quatro vezes, sabendo que havia uma vaga de trabalho.
- O Guarnieri anotou meu telefone, mas não me chamou. Ele colocou meu nome no fim da fila, por quê? Agora eu soube que a vaga ainda está aberta!! – ele explicou, em Libras.
Como eu não imaginei que ele estivesse na “lista negra”, chamei o Guarnieri.
- Vamos encaminhar o Wendell para esta vaga...
- É muito arriscado. O Wendell já trabalhou aqui antes. Ele falta muito.
Mas, o Wendell disse algo concreto:
- Isto tem mais de cinco anos!!
- Mas, você ainda vende adesivos. – disse o Guarnieri. Ele realmente conhecia muito bem os surdos. – Viaja muito. Por isso, vai faltar muito no serviço. Não vai dar certo.
- Se eu começar a trabalhar, só vou viajar nos fins de semana.
Muitos surdos viviam da venda de adesivos, viajando para diversas cidades do interior mineiro. Corriam atrás do sucesso de um dos primeiros surdos a mexer com isso: a venda de adesivos, com uma rede de vendedores particular (também surdos). Sendo ele um dos primeiros, quando a competitividade não existia, ele conseguiu lucrar bastante. Só que muitos e muitos outros surdos começaram a trabalhar com o mesmo objetivo, acarretando o excesso de demanda e a consequente queda de rendimento neste tipo de trabalho.
Como o Guarnieri disse que a vaga não foi preenchida, falei que ele poderia encaminhar o Wendell.
Mas, disse para o Wendell:
- Estamos te dando uma nova chance. Porém, se você começar a faltar para vender adesivos, as portas estarão fechadas de novo.

Antonella também utilizou o mesmo subterfúgio do Wendell para falar comigo primeiro. Nesta época, porém, eu já tinha sido alertado pelo intérprete que alguns surdos estavam confiantes que poderiam voltar a trabalhar na empresa, mesmo após os sérios problemas que causaram. E todos os que processaram a empresa, brigaram fisicamente, desrespeitaram os chefes, entre outros fatos desagradáveis, também não eram recebidos por mim. Ou seja, parte da “lista negra” era realmente de surdos que não poderiam ser aceitos.
Antonella estava na lista dos inaceitáveis. Era surda profunda, pronunciava algumas palavras, mas a conversação só era possível através da Libras.
- Jairo, o Guarnieri não me chama nunca. Mas, eu sei porque...
- O que você aprontou?
- Foi muitos anos atrás, eu tinha dezoito anos. Na escola, junto com umas colegas, fui acusada de roubar outra.
- E você roubou?
Ela ficou triste. Respondeu, com os olhos lacrimejando:
- Mas, foi uma bagunça com as colegas. Nós pegamos dez reais para comprar cigarro... Hoje tenho mais de trinta anos, tenho uma filha, preciso trabalhar...
Pedi à secretária que trouxesse a ficha de Antonella. Ela não estaria na lista por causa de fatos escolares. Na ficha, encontrei algo relacionado ao trabalho. Acusação de furto.
- Aqui diz, Antonella, que você furtou sua colega de trabalho.
- Não, não. O que aconteceu... na sala de trabalho esta colega deixou a bolsa na mesa. A mesa dela era perto da minha. Mas eu não mexi na bolsa dela não. No outro dia que ela disse que eu roubei o dinheiro dela. Só que eu não roubei...
- As outras colegas também disseram que foi você.
- Porque todas lembravam o que aconteceu na escola. E duas colegas estudaram lá comigo. Por isso todos apontaram o dedo para mim. Mas, eu não roubei.
- Onde você trabalhou depois que saiu daqui?
- Trabalhei em empresa particular. Fui mandada embora tem cinco meses...
- Por que foi mandada embora?
- Não sei...
Pedi à secretária que ligasse para a empresa. Solicitasse informações sobre a Antonella e o motivo da dispensa.
- Nenhuma reclamação contra a Antonella. Foi dispensada devido à dificuldade com o português, não conseguindo redigir cartas para as filiais. Os outros serviços da empresa não poderiam ser feitos por ela, carregador era para homens, e faxina, o salário seria menor, o que é proibido.
Antonella fitava assustada a secretária discorrendo sobre sua dispensa. A secretária conversava comigo utilizando Libras também.
- Então, está tudo certo. Você sabe, Antonella, que se você for encaminhada e fizer alguma coisa errada, eu serei responsabilizado? E não vai ter como eu falar nada a seu favor?
Ela respondeu que compreendia.
Guarnieri, já na sala, preparando um encaminhamento, observou:
- As colegas não vão aceitar trabalhar com ela neste setor. Elas estudaram juntas.
- Então, arrume uma vaga em que ela trabalhe sozinha.
- Você sabe o que ela fez? – perguntou o Guarnieri.
- Sim. Mas também conversei com o David – o intérprete que fazia os relatórios dos problemas nos locais de trabalho – e ele explicou que a colega acusou o furto no outro dia, sem muita certeza. De todo jeito, a Antonella vai trabalhar sabendo que, qualquer coisa ela será responsabilizada e sem chance de voltar a trabalhar com a gente.
Antonella ficou muito feliz com a oportunidade e me agradeceu efusivamente.

O Enzo não estava na lista. É um caso diferente. Recebemos ligação do setor onde o Enzo trabalhava. O chefe do setor informa:
- O Enzo não vem trabalhar a dois dias! Podem mandar outra pessoa para o lugar dele.
O Guarnieri já estava providenciando a substituição e o novato seria enviado na tarde daquele dia. Mandamos a secretária pedir notícias do Enzo. Ela ligou para a casa dele, a esposa do Enzo atendeu, disse que estava tudo bem. Não sabia por que ele não foi trabalhar. Pedimos que ele viesse conversar conosco. O Enzo era um surdo atleta, participava de maratonas em Belo Horizonte. Sempre o via com a camisa do Cruzeiro.
Ele chega assustado. Eu, Guarnieri e o terceiro diretor na sala, junto com a secretária.
- Você faltou dois dias e não avisou ninguém, Enzo!! Como você faz uma coisa dessas?? – o Guarnieri foi direto ao assunto, sem rodeios.
Antes que ele falasse alguma coisa, eu acrescentei:
- Agora a gente vai mandar um substituto lá para o seu serviço. Você vai ter que esperar aparecer outra vaga.
- Não! Não pode! Como eu vou fazer? Preciso do trabalho. Telefona para meu chefe, diz que eu vou trabalhar hoje!!
- Por que você faltou sem avisar??
- Minha esposa caiu na escada. Não podia nem andar. Machucou muito a perna. Por isso que eu faltei. Eu estava ajudando ela lá em casa...
- Caiu na escada??
- É, caiu!! – e levantou-se e dramatizou a queda – Ela foi andando assim e a escada pequena, três degraus, ela pisou em falso, caiu de mau jeito em cima da perna... Ficou muito ruim. Não conseguia andar...
Nós três diretores nos entreolhamos, com vontade de rir. A secretária baixou a cabeça. O Enzo suplica:
- Por favor, Jairo. Liga lá para o Santiago – o chefe dele – diz que eu vou hoje, trabalhar. Não vou faltar mais não.
- O Guarnieri já mandou outra pessoa... Se o seu chefe gostar desse novato, não podemos fazer nada...
- Que dia o novato vai começar? – perguntou o Enzo, desesperado.
- Hoje, às 13 horas. Daqui a quarenta minutos.
- Liga para o Santiago... vou hoje, agora!!
A secretária liga. Diz que os diretores estão pedindo para ele reconsiderar a substituição do Enzo e aceita-lo de volta. O Santiago reluta, mas acaba aceitando.
Falei com o Enzo:
- Vá para seu serviço rápido. Você tem que chegar lá antes do novato começar a trabalhar. Fale para o novato vir aqui conversar com o Guarnieri.
- Você tem que chegar lá no seu serviço em meia hora – brincou o Guarnieri. - 
É melhor correr.

Às 13:05 h a secretária nos reúne e informa:
- O Santiago acabou de ligar. Informou que o Enzo chegou todo suado. Parece que foi correndo, daqui até lá. O Enzo agradeceu ao Santiago. Está trabalhando normalmente...
Nós rimos muito. Soubemos depois que ele, realmente, foi correndo da nossa sede até o local de serviço em trinta e dois minutos. Provavelmente a esposa nunca caiu da escada. Logicamente, ela teria comunicado isso, quando a secretária ligou pedindo informações sobre a ausência do Enzo no trabalho.

Dos surdos da “lista negra” do Guarnieri, que eu insisti em dar uma nova chance, apenas dois deram problemas novamente.

Wendell, Antonella e Enzo nunca deram mais problemas.


Exceto o meu, todos os demais nomes estão trocados, por motivos óbvios.


sábado, 9 de julho de 2016

Filmes em Libras

A minha preferência pessoal é por legendas nos filmes. Mas, sei que parte da comunidade surda gostaria que houvesse filmes com Libras. Para beneficiar todas as camadas diferentes da comunidade surda, existe um site que colocou acessibilidade audiovisual em alguns filmes, As diferentes identidades surdas complicam a acessibilidade para todos. Lembro que chegando na casa do meu colega, intérprete, percebo o pai dele, surdo profundo, assistindo o canal de tv de uma rede evangélica.
- Mas, ele é católico!! - eu disse. - Mostre para ele o canal de uma rede católica.
- Ele conhece o outro canal, Jairo, mas não gosta, porque só tem a legenda. Ele prefere esse, porque tem a intérprete de Libras.

Muito importante a iniciativa do site Filmes que Voam, em legendar e ao mesmo tempo incluir também a Libras. Parte da comunidade surda que não desfruta de filmes, nem mesmo os legendados, será beneficiada com a iniciativa.

Para assistir os filmes, basta ir ao site (www.filmesquevoam.com.br) e clicar nos canais de acessibilidade: Canal FQV - Acessibilidade ou Canal FQV Kids - Acessibilidade.

As diferenças de acessibilidade para os surdos é um grande complicador, pois há desinformação na forma de tratar os surdos.
- Surdos que preferem Libras em todos os momentos - sua língua mãe é a Libras. 
- Surdos que preferem a escrita (português) e a Libras - normalmente sua língua mãe é o português, mas utilizam também a Libras. Portanto, para escrita, legendas, informações em quadros ou painéis, preferem o português, mas em uma palestra, conversação ou apresentação, preferem a Libras ou o intérprete de Libras.
- Surdos que preferem somente a escrita (português) e a leitura labial - são os surdos oralizados que não conhecem e não se interessam pela Libras. Toda comunicação para eles deve ser em português.

Por isto, muitas vezes nos deparamos com conteúdo que beneficia somente uma parte da comunidade surda, pois só contém legendas ou somente Libras. Esclarecemos sempre para os que produzem vídeos de acessibilidade que é necessário legendas e Libras, para não excluírem parte da comunidade surda.



quinta-feira, 23 de junho de 2016

Documentário sobre atletas paralímpicos

É um documentário sobre o cotidiano dos atletas paralímpicos. Infelizmente, não inclui referências aos surdos que, como já expliquei em outro post (clique AQUI para ler), têm sua própria olimpíada.
O filme parece ser interessante, mas peca já no trailer, que começa com legendas, mas depois não há mais. Não sei se o filme a ser exibido nos cinemas conterão legendas. Mas, comumente, filmes em português, não têm legendas, um erro crasso das entidades responsáveis.

O filme é um longa, de 110 minutos. "Paratodos" estréia nesta quinta-feira (23/06) nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília, Salvador, Palmas e Londrina. Aqui em Belo Horizonte está em cartaz no Cine Belas Artes.



O filme também estará disponível para exibição em organização, centro cultural, coletivo, cineclube, escola ou qualquer outro lugar de interesse público. Recomendado também para entidades que trabalham com a inclusão de deficientes e escolas da rede pública de ensino que contam com  a inclusão social.  Basta se cadastrar no site Plataforma Taturana (clique para ir ao site).


sábado, 11 de junho de 2016

Concursos públicos e deficientes

Imagem Agência Senado
A meritocracia é legal entre os iguais. Mas, colocar no mesmo nível pessoas sem e com deficiência gerará desequilíbrio. É óbvio que uma empresa não vai contratar um deficiente se uma pessoa sem deficiência também se oferece para a vaga. Nós, surdos, enfrentamos apenas a barreira da comunicação. Mas, os demais deficientes, como os cegos e paraplégicos necessitam de adaptações no ambiente de trabalho. Rampas e banheiros adaptados para os paraplégicos; programas de voz para os cegos trabalharem com o computador, entre outros. No entanto, se não há uma norma ou lei obrigando as empresas a contratarem deficientes, elas não os contratarão. É compreensível que uma empresa contrate, por exemplo, um funcionário ouvinte e não um surdo, uma vez que, independente da função que ele exercer, ele poderá atender o telefone e lidar com o público externo.  Com a criação de uma lei específica foi possível uma melhor inserção dos deficientes no mercado de trabalho. A lei da reserva de vagas para deficientes em empresas com mais de 100 empregados é a Lei 8.213/91.

A Lei 7.853, de 1989, foi a primeira a recomendar a reserva de vagas nas administrações públicas e no mercado privado. Porém, somente dez anos depois, com o Decreto 3.298, de dezembro de 1999 foi que a reserva de vagas para deficientes em concursos públicos estava instituída por decreto, no seu Art. 37 (clique AQUI) - 

“Art. 37.  Fica assegurado à pessoa portadora de deficiência o direito de se inscrever em concurso público, em igualdade de condições com os demais candidatos, para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.
§ 1o  O candidato portador de deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, sendo reservado no mínimo o percentual de cinco por cento em face da classificação obtida.
§ 2o  Caso a aplicação do percentual de que trata o parágrafo anterior resulte em número fracionado, este deverá ser elevado até o primeiro número inteiro subseqüente.
Art. 38.  Não se aplica o disposto no artigo anterior nos casos de provimento de:
I -  cargo em comissão ou função de confiança, de livre nomeação e exoneração; e
II - cargo ou emprego público integrante de carreira que exija aptidão plena do candidato.”

Lembrando que no Art. 38 fica clara a impossibilidade de ingressar em carreiras que exijam aptidão plena, como Polícia Militar, Bombeiros, entre outros. A Polícia Militar de MG, no entanto, já nos surpreendeu oferecendo reserva de vagas para deficientes em concurso público relacionada à área administrativa. O concursado deficiente afere todos os direitos, sendo considerado policial militar, porém, sem porte de arma e sem trabalhos externos. 

Nos primeiros anos da aprovação do Decreto 3.298, participei de diversos concursos públicos. Participei de concursos em Ibirité, Contagem, Betim e a maioria, em Belo Horizonte. O primeiro em que fui aprovado foi em um concurso público de Contagem, da área de Saúde. No início dos anos 2000, lembro-me da satisfação de ver meu nome em primeiro lugar, na lista de deficientes:
1 – Jairo Fernando de Oliveira
2 – Solange M. A.
Solange, que tinha surdez profunda, brincava muito quando me via:
- Você roubou minha vaga...
- São duas vagas! Assim que me chamarem, não demora muito e te chamam também.
Ambos trabalhávamos em uma entidade de surdos, fazendo parte dos conselhos, eu, do Administrativo e ela do Fiscal.
Mas, nunca fomos convocados para preenchimento das vagas. Um dos fatores não respeitados em relação aos concursos públicos era justamente a ordem de convocação dos deficientes. Algumas vezes os órgãos públicos decidiam que os deficientes seriam convocados após o preenchimento das vagas das pessoas ditas “normais”. E como a maioria dos concursos tinha validade de dois anos, os deficientes aguardavam por um longo tempo a convocação. E a validade do concurso se esvaia e a convocação não se concretizava. Esta era a forma que diversos órgãos públicos encontraram para ignorar a convocação de deficientes. Os órgãos também tinham o direito de decidir quando seriam convocados, não somente os candidatos com deficiência, mas todos. Muitos concursos eram realizados, mas nunca ocorria a convocação (de nenhum candidato). Anos depois a legislação obrigou que os aprovados em um concurso deveriam ser chamados dentro do prazo de validade do mesmo. Mas, os deficientes sempre ficavam à mercê da decisão dos órgãos públicos. A situação começou a melhorar quando os deficientes passaram a entrar na Justiça contra a não convocação para preenchimento das vagas. Assim, houve a implantação da convocação dos deficientes de acordo com a porcentagem de convocados. 

De diversos concursos públicos que participei, não levava muita fé na minha aprovação, porque eu pouco estudava. Não comprava apostila, não fazia cursinho. Quando havia questões de Direito Administrativo, dava uma lida nas apostilas que os colegas surdos compravam. 

Em 2007 passei no concurso da SUDECAP, órgão da Administração Indireta da Prefeitura de Belo Horizonte. O problema neste concurso era a forma de identificação do deficiente: no primeiro momento, apenas marcamos um “x” na opção “Deficiente”. Como em todos os concursos, a classificação inicial, com os candidatos aprovados, incluía os deficientes. Após, houve a publicação no Diário Oficial do Município para que os deficientes apresentassem seus laudos médicos à direção do concurso. E só então era publicada a classificação dos deficientes. Infelizmente, eu perdi esse prazo. Como eu trabalhava e era, então, um dos diretores da entidade de surdos, priorizava a responsabilidade com a entidade. A perda do prazo para apresentação do meu laudo médico acarretou minha desclassificação. Eu fiz 128,00 pontos e estaria classificado em 2º lugar entre os deficientes. Fiquei extremamente irritado quando percebi que havia perdido o prazo para apresentar o laudo. A convocação para apresentação do laudo médico foi publicada no DOM em 08 de novembro de 2007. O resultado do concurso, com a classificação dos deficientes foi publicado no DOM de 3 de janeiro de 2008. Eu só vi o resultado final. E na classificação final dos deficientes, infelizmente, meu nome não constava, claro!

Mas, a vida continuava. Ainda que muito triste por perder a vaga, reconheci o meu erro: eu deveria ter ficado atento à data de apresentação do laudo médico. E disse a mim mesmo que “se passei em um, passo em outro!”. Sempre muito otimista, mesmo sabendo que a partir do momento que o Decreto 3.298 passou a ser respeitado, a participação dos deficientes em concursos públicos cresceu substancialmente.

É importante ressaltar que os deficientes devem informar que são portadores de deficiência. Lembro-me de uma colega que foi eliminada, embora tenha conseguido excelente classificação. Quando ela nos informou que foi eliminada, pensamos que ela poderia entrar com recurso, mas o advogado foi claro:
- Como deficiente, ela deveria concorrer às vagas dos deficientes.
- Ok, ela concorreu com os “normais”. – está inscrita como candidata de ampla concorrência. – E ela teve uma classificação muito boa! – acho que ela havia passado em décimo quarto lugar.
- Ela é surda, certo? Ou tem deficiência auditiva severa, que pode complicar em algumas situações, como o atendimento de telefone, por exemplo?
- Correto.
- As atribuições do cargo para os candidatos “normais” diz que deverá “prestar atendimento e esclarecimentos ao público interno e externo” e ainda “otimizar as comunicações internas e externas, mediante a utilização dos meios postos à sua disposição, tais como, telefone, fax...” e é aí que a Comissão Organizadora do Concurso vai declarar que ela não está apta para o cargo. 
- Mas como deficiente ela também não estaria!!
- Justamente por isso concorre às vagas de deficientes, onde não poderão exigir que ela atenda ao telefone, por exemplo. Assim como o cego que passa na mesma vaga que vocês e vai utilizar computadores. Só que para os cegos, os computadores terão programas adaptados com sintetizadores de voz. Excepcionalmente para estas vagas haverá modificações no ambiente e nos equipamentos de trabalho, mas não para todos.
Esse debate ocorreu há mais de 10 anos. Mas, ainda hoje ocorrem fatos parecidos, com candidatos deficientes disputando vagas de ampla concorrência. O imbróglio jurídico que tal fato acarreta muitas vezes termina com o candidato perdendo a vaga. As discussões jurídicas acerca deste tipo de ocorrência geram grandes debates, recomendando pois que os deficientes sempre informem serem Portadores de Necessidades Especiais. É óbvio que estou falando de candidatos com deficiências severas, com grande perda motora ou sensorial.

Em 2008 prestei mais um concurso público, desta vez atento à questão do laudo médico. Mas, não era o mesmo critério do anterior, em relação aos deficientes. Deveria marcar a opção “Deficiente”, mas o laudo médico só seria exigido após a homologação e convocação, no momento de fazer a perícia médica da própria Prefeitura. Portanto, foi muito mais tranquilo em relação à isso. Fiquei atento às datas e prazos.
Classifiquei em 1º Lugar na reserva de vagas para deficientes e a Fundação Municipal de Cultura é onde presto serviço até os dias de hoje. Relato sobre isso eu publiquei AQUI, em 2012.

As regras dos concursos públicos, em relação aos deficientes, foram aprimoradas, permitindo que diversas artimanhas utilizadas pelos órgãos públicos para não convocarem os deficientes fossem, pouco a pouco, sendo eliminadas. Essas questões são pouco percebidas pelas pessoas que acreditam que o estado e as leis não devem intervir em benefício das pessoas portadoras de necessidades especiais. Alegam que o mérito é que conta. Esquecem que, deficientes e a classe menos favorecida, índios, negros, pobres, LGBT são constantemente excluídos, embora alcancem aprovação por mérito. 


sábado, 21 de maio de 2016

Eu, a surdez e a vaga de trabalho

Muitos cobram que os deficientes, os negros, pobres, GLBT e índios lutem por si, sem depender de ajuda governamental, de leis ou benefícios sociais. Ou seja, por mérito. A meritocracia é citada quando se fala em benefícios sociais. Eu, surdo, deveria competir de igual para igual com os normais, sem o benefício das vagas destinadas aos deficientes. Sei o quão difícil é para negros, pobres, índios e GLBT. Mas, não posso falar por eles. Estou incluso na classe de deficientes e sei que, muitas vezes, não adianta você ser o melhor entre muitos. A deficiência é sim, uma desvantagem se você está competindo com os normais.

Em Formiga trabalhei em escritório contábil. Foi um excelente aprendizado do que era fatura, nota fiscal, duplicata. Como funcionavam os registros contábeis. Os livros Diário, Razão, etc. A necessidade de lançamentos fiscais para comprovação do pagamento dos impostos e fiscalização. A vida fiscal de uma empresa aparecia diante dos meus olhos, através das notas fiscais de compra, de venda, pagamentos. Anos depois eu trabalharia em uma gráfica, aprendendo como eram feitas as notas fiscais, os cheques, os blocos de notas, a numeração das notas.
Antes de conseguir o trabalho na gráfica, procurei serviço em diversas empresas de Belo Horizonte. A família mudou-se para Belo Horizonte. Eu estava com 19 anos e iniciando a vida profissional. É importante ressaltar que nesta época não havia nenhum benefício para os deficientes, não havia vagas específicas nos concursos, não havia intérpretes de Libras nas escolas ou empresas. Aliás, nem a denominação Libras existia ainda. Era apenas a Língua de Sinais dos Surdos. A denominação Libras só se tornaria lei em  24 de abril de 2002 (veja AQUI)
Minha irmã mais velha levou-me a diversas entrevistas de emprego, em escritórios contábeis e qualquer empresa que solicitasse “jovem para serviços gerais”. O problema é que tão logo ela informava que “meu irmão é deficiente auditivo, ele ficou surdo com 13 anos...”, já começavam as desculpas:
- O serviço é perigoso e não posso aceitar um deficiente... – em uma empresa de fundição.
- Ah, não vai ser possível! É necessário que atenda o telefone... – em diversos escritórios contábeis.
- Tem que carregar algum peso... – e diante da justificativa de que eu era forte e saudável – mesmo assim, é complicado, porque ele é deficiente e não posso lhe dar um serviço pesado.
Para piorar, houve uma entrevista que minha irmã esqueceu-se de informar corretamente quem estava interessado na vaga e o dono da oficina respondeu:
- Então, você está contratada!
- Não, a vaga é para o meu irmão! – explicou minha irmã, apontando para mim.
Como já estávamos ali há mais de meia hora e eu não tinha dito uma palavra sequer, o dono da oficina me fitou espantado, enquanto minha irmã esclarecia:
- Meu irmão é deficiente auditivo, ficou surdo com 13 anos e...
Mas, o olhar do dono da oficina é de quem parecia fitar um ser de outro mundo. Ele me encarou alguns segundos, mas respondeu à minha irmã:
- Sinto muito, pensei que era você a candidata. Estou interessado em contratar uma secretária. Se você se interessar pela vaga, ela é sua.
Foi a partir deste momento que minha irmã decidiu que eu teria que procurar trabalho sozinho.
- Você fica calado, não fala nada, o homem queria me contratar.
- Como eu vou falar alguma coisa, se você dispara a falar e eu nem sei o que estão conversando? – mas eu estava rindo – Pelo menos agora, se você não quiser mais ser professora de Educação Física, pode trabalhar na contabilidade da oficina.

Passei a procurar trabalho, sempre me apresentando como “deficiente auditivo, mas capacitado a aprender o serviço, sem dificuldades de compreensão”. Descobri que esta era a senha para o “não”. Em alguns lugares a própria recepcionista me dispensava, sem meias palavras. Ou com “meia palavra”: as vagas já foram preenchidas... Em outros, a recepcionista ainda me dava uma pequena esperança, ao procurar um superior. O superior apenas ditava uma resposta mais incisiva, que não permitira contestação devido à minha deficiência:
- A vaga requer o atendimento de telefone. Sinto muito.
Decidi não me apresentar mais como “deficiente auditivo e tal”. Perguntava direto:
- Precisarei atender telefone?
- Precisarei lidar com atendimento aos clientes?
Se uma destas duas perguntas tivesse “sim” como resposta, eu dava meia volta e ia embora.
A leitura labial permitia que eu conversasse sem informar a surdez. A maioria das recepcionistas eram jovens, facilitando a compreensão do que diziam. Mesmo eu perguntando um “o quê?”, não havia a suposição de que eu fosse surdo. Em diversas entrevistas eu conversei com o entrevistador sem ele saber que eu era surdo. Em outras, devido à dificuldade de compreensão do que diziam, eu informava que era surdo, pedia para escrever ou falar mais devagar um pouco. Mas, isto era senha para ser descartado. Nas fichas que eu preenchia, os dados eram bons; jovem, dedicado, facilidade de aprendizagem, conhecimento em contabilidade, tendo trabalhado um ano em escritório, sem carteira assinada. Mas, quando chegava o momento de encarar o entrevistador (ou entrevistadora), a surdez se tornava assunto quase que principal: com quantos anos fiquei surdo, porque fiquei surdo, se tinha problemas de saúde, se fazia algum tratamento, se necessitava de acompanhamento médico. Dava vontade de gritar: sou surdo, não sou doente! Algumas vezes, pacientemente, delicadamente, eu explicava: a meningite foi a doença que causou a surdez, mas a surdez não é uma doença e eu não tenho nenhum problema clínico. Ainda eram os tempos que não havia esclarecimentos sobre como lidar com as necessidades dos deficientes.

O pior momento foi em um escritório contábil de grande porte. Ao responder “não” às duas perguntas críticas que eu sempre fazia, acreditei que poderia conseguir a vaga. Informei à recepcionista que eu tinha perda auditiva severa (eufemismo para “deficiente auditivo” ou “surdo”). Ela não deu importância ao fato porque a conversa fluiu normal.
O local era considerado chique, com recepcionista uniformizada, atendentes e entrevistadores engravatados. Sala de testes, de datilografia (ainda não existia o computador) e de entrevistas separadas. Teste escrito, com vinte questões, entre conhecimentos contábeis, gerais e relacionamento no ambiente de trabalho. A recepcionista que me acompanhava tinha um movimento labial excelente, permitindo que eu entendesse “de primeira” o que ela dizia, pedia ou ordenava. O teste escrito era fácil, as questões contábeis eram referentes à nota fiscal, as questões de conhecimentos gerais referentes ao país e as de relacionamento no ambiente de trabalho eram simples. Lembro somente de uma questão que pedia para explicar “como será seu relacionamento com um subalterno”. E que eu respondi mais ou menos assim, conceito que levei por toda minha vida trabalhista: “independente do cargo, eu serei um novato no novo ambiente de trabalho e tenho muito a aprender com qualquer um dos veteranos, seja ele o office-boy ou o faxineiro”. O teste de datilografia também era descomplicado, bastando copiar um pequeno texto de um livro, sem marcação de tempo. Findo o teste, a recepcionista pediu que eu aguardasse. Havia um quadro diante de nós, candidatos. Algum tempo depois um rapazinho de uniforme verde surgiu com todos os testes na mão e começou a escrever nomes dos candidatos no quadro: 1 – Pedro Parker, 2 – Joana Katniss, 3 – Jairo Fernando... até o número 15. Eu li direto nos lábios da outra recepcionista:
- São somente 10 os classificados. Os 5 últimos são suplentes. Os demais podem se retirar. Agradecemos a presença e a participação.
Eram muitos candidatos às vagas e a sala ficou parecendo enorme quando mais da metade se retirou.
Pouco depois a recepcionista chamou um nome, que não prestei atenção qual era e o rapaz entrou na sala do entrevistador. Ocorre que não havia somente uma sala de entrevistas e de repente percebi que a recepcionista que me acompanhou durante todo o tempo, agora me fitava, curiosa. Ao perceber que ela me fitava, eu a encarei também. E ela falou, com uma expressão séria:
- Eu estou te chamando!
Então entendi que chamaram os dois primeiros de uma vez e eu não percebi. E que a recepcionista estava séria demais:
- Eu chamei o seu nome três vezes!!
- Eu te disse que tenho perda auditiva severa. Eu leio nos lábios, mas à distância fica muito difícil.
- Como é? – ela estava incrédula. Afinal, tinha conversado comigo durante toda a manhã de teste de forma praticamente normal.
Ela anotou na minha folha de teste em letras maiúsculas, com caneta vermelha: deficiente auditivo. Pediu que eu aguardasse e adentrou a sala do entrevistador.
Os outros eram chamados e eu continuava aguardando. Logo a sala estava quase vazia. De candidatos, somente eu e mais quatro pessoas. 
Surge o rapazinho de uniforme verde, entrega um papel para a recepcionista e se dirige para o quadro. A recepcionista me chama e informa:
- A sua classificação não foi suficiente para a nossa empresa.
- Mas, mas... – eu fiquei sem argumentos para contestar, ainda mais que não sabia o critério das avaliações.
- Sinto muito. Temos seu telefone. Se surgir uma oportunidade, nós o chamaremos.
Então percebi o rapazinho de uniforme verde apagando meu nome no quadro...
Entendi que o classificado em 11º tinha uma vantagem em relação a mim, classificado em 3º: ele não tinha nenhuma deficiência.
A empresa, particular, tinha o direito de escolher quem ela quisesse para o preenchimento da vaga. Não cabia reclamação por nada, sequer por discriminação ou preconceito.

Na época eu era um jovem de 19 anos, com toda a vida pela frente. No dia seguinte estava procurando emprego novamente, todo animado, com um sorriso nos lábios. 

Somente em 2015 foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).  A Lei 13.146, no seu Capítulo VI, Do Direito ao Trabalho, diz: “§ 3o  É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.” - (veja AQUI)

*Os nomes de outras pessoas no quadro não são verdadeiros.

sábado, 7 de maio de 2016

As mães

O piloto, Fernando Alonso, estava em uma corrida de F1, a mais de 150 km por hora, sofre um acidente assustador, o carro voa, vira uma cambalhota e sobra somente o cubículo que protege o piloto. As recomendações são para o piloto permanecer no carro, aguardando o atendimento, principalmente em um acidente daquele porte. Mas, o piloto saiu do carro! Por quê?
“Saí rápido do carro para minha mãe ver que eu estava bem”.
O próprio Fernando Alonso achou graça que a frase fosse destaque em quase todos os jornais pelo mundo. E relatou mais detalhadamente a história.
“Não foi muito normal [risos]. Vou te contar, mas não foi muito normal. Quando passei pela checagem médica, cheguei ao paddock outra vez, cheguei à base da McLaren e antes de tirar o macacão, disse: ‘Deixe-me ligar para meus pais que eles estão bem preocupados’. Ligo para minha mãe com a câmera, fazendo uma vídeo-chamada, e vejo meu pai tranquilo no sofá da sala, com um cobertor, tomando um café e te digo. ‘Como estão? Preocupados?’”, lembrou.
(clique AQUI para ler a matéria completa)

Jogávamos bola animados e o goleiro fazia incríveis defesas. Mas houve um momento que ele calculou mal uma “ponte” (o ato de defesa do goleiro, que se atira longamente para um dos lados do gol) e bateu a cabeça na trave! Jogo paralisado, nós assustados, percebemos que nosso amigo goleiro desmaiou. Ele respirava e antes que a gente pensasse em algo, abriu os olhos e reclamou:
- O que aconteceu?
- Você bateu a cabeça na trave e desmaiou! Está tudo bem?
- Sim, está tudo bem.
- Você tem que ir para casa e repousar, porque desmaiou.
A galera acompanhando o amigo goleiro, que concordou com a sugestão. Chegando perto da casa dele, ele nos para e pede:
- Não falem pra minha mãe que eu desmaiei!

A turma estava fazendo a maior algazarra no banco da praça, que ficava em frente à escola. Tínhamos feito provas finais, fomos liberados mais cedo. Entre “acho que passei” e “vou pegar recuperação”, muitos tapas, socos e empurrões. Um dos colegas resolve aprontar com nosso colega gordinho e inventa:
- Ele tirou 10 na prova de matemática e não passou cola para ninguém. Vamos deixa-lo só de cueca hoje.
A turma segura o colega que se debate tentando evitar o vexame. No empurra-empurra tentando tirar a calça do colega, justamente o que propôs a brincadeira (de mau gosto, reconheço), abraça o gordinho e diz:
- Não, não, para, para! Não vamos fazer isso com nosso amigo.
- Qual é? Foi você mesmo que inventou e agora está arrependido?
E o colega, assustado, com expressão de total pavor:
- Minha mãe está vindo em nossa direção...

O grupo de amigos na rua, formando uma roda entre dois debatedores. Sabíamos que iam ficar somente na conversa, voz forte de um lado e outro, mas nada de briga. Dedo em riste, apontando para a face.
- Se você aparecer na rua de baixo, você vai apanhar.
- Não tenho medo de você, Marcão. A rua não é sua. Passo por lá quando eu quiser.
- Estou te avisando! Não vou perdoar. Aqui você está com a maioria dos seus amigos. Mas, na rua de baixo, os amigos são meus...
- E você acha que estou com medo disso?
- Já disse, André, que aqui você está com amigos, mas na rua de baixo você não tem amigos não.
- E eu já disse que não tenho medo de você. E que passo pela sua rua sim. Tenho 13 anos, vou para onde quero, faço o que quero, não tenho que obedecer a ninguém!
Nisto uma janela se abre e uma senhora grita:
- Andrezinho, já para dentro!!
E Andrezinho, caminhando para casa, altivo, com o dedo ainda em riste:
- Só minha mãe...

Poucos anos depois que fiquei surdo, muitas vezes eu descobria que algum moleque, aproveitando-se da minha surdez, tinha me xingado pelas costas. Alguns amigos, sabendo que eu me enfurecia fácil com isso, não me contavam de imediato, mas sim, momentos depois, quando o moleque já estava longe. Meus amigos pediam calma, falavam para eu deixar prá lá, que não valia a pena brigar por isso. Muitas vezes eu acabava realmente esquecendo o fato. O problema é quando, no mesmo dia, eu encontrava o moleque novamente.
Assim foi com o Werneck. Eu estava voltando para casa e ele estava caminhando do outro lado da rua. Eu corri em direção a ele, dedo em riste, o empurrando, com raiva:
- Então eu sou filho da puta, né, seu merda. Agora estou de frente para você. Repete, fala na minha cara, deixa eu ver se você é tão corajoso assim, como é quando eu estou de costas e não escuto o que gritam.
- Para, para, não, não, eu não xinguei não...
- Claro que xingou! Além de medroso, é burro! Meus amigos escutam muito bem, idiota. Eles me contam tudo. Mesmo que não seja na hora.
Enquanto o encarava, ele retrocedia, assustado. Atravessou a rua andando de costas, tropeçou no meio-fio e caiu, ralando o joelho na calçada. Nesse momento minha mãe dobra a esquina. Eu percebo e ameaço o Werneck.
- Abre a boca com minha mãe e você me verá bravo de verdade.
Minha mãe se aproxima, vê o menino caído, pergunta:
- O que é isso? O que aconteceu?
- Ele tropeçou no meio fio, mãe! – respondo de imediato.
Mas, minha mãe estava fitando o Werneck, esperando uma resposta dele. O Werneck percebeu meu olhar e não titubeou:
- Eu vinha andando e pisei em falso... Caí e o Jairo veio me ajudar...
O joelho estava ralado e sangrando. Eu tento ficar livre logo do Werneck.
- Ele está bem, mãe!
- Ih, menino, não está vendo que ele ralou o joelho e está arfando? Ajuda ele a levantar e traga aqui para dentro para limpar este machucado.
Quase ri, pois ele estava arfando era de medo! Mas, como mãe manda e a gente obedece, ajudei o Werneck a entrar. Minha mãe deu lhe um copo d’água e depois fez um curativo básico no joelho dele.
Tudo isso acabou modificando a visão do Werneck comigo. Eu ainda o acompanhei até o portão, pensando em como as mães fazem a gente passar por cada uma! Então, ele disse:
- Desculpe, Jairo. Agradeça sua mãe novamente...
O Werneck foi meu amigo por muitos anos.


sexta-feira, 1 de abril de 2016

Primeiro de abril

Professor Onofre, a Irmã Ana está chamando o senhor.
- Nessa eu não caio, Jairo! – respondeu o professor rindo.
Era 1º de Abril e eu estava pregando peças em todos. Disse à Doralice que a Professora D. Regina estava chamando na sala da 6ª série. Enquanto ela se dirigia para a sala da 6ª série, eu falei, todo sério, com nosso professor de Geografia:
- Professor Lenine, a Irmã Ana está chamando o senhor.
- Onde ela está?
- Na hora que ela me falou ela estava entrando na Diretoria.
Ele se dirigiu para lá e eu entrei na minha sala. Sentamos e o Professor Onofre começou a aula de Ciências, fazendo a chamada.
- A Doralice não veio? – ele perguntou.
- Veio. – respondi rindo. – É que ela está com a Professora D. Regina
A Doralice entra na sala, gesticulando nervosa “mentiroso, mentiroso!”.
- A D. Regina não estava me chamando. Mentiroso!!
Todos riram e ela perguntou:
- Porque ele está falando mentira?
- Hoje é 1º de Abril, dia da mentira. Pode falar mentira  à vontade.
Quando o recreio estava terminando, duas alunas da 6ª série voltavam do pátio e eu disse, com sinais:
- “Hoje confissão Padre Vicente. Esperar na capela. Vocês atrasadas já”.
Elas deram meia volta e foram para a capela. Eu voltei para minha sala. O Professor Onofre estava ministrando a aula de Matemática (ele lecionava as duas matérias, Ciências e Matemática).  A Irmã Ana entra na sala e começa a conversar com o professor. Sempre prestávamos atenção quando a Irmã Ana entrava, porque era alguma informação ou modificação nos horários de aula. E li direto nos lábios dela:
- Professor Onofre, não teve aula de Geografia para ninguém hoje. Não sei o que aconteceu, mas o Professor Lenine foi embora, após perguntar onde eu estava.
- Isso é o Jairo e as brincadeiras de 1º de Abril. – dedurou o professor, rindo, sabendo que eu tinha falando com todos os professores que a Irmã Ana estava chamando.
- Ê, menino! O Professor Lenine estava pedindo alguns dias de licença e quando você disse que eu estava chamando, ele pensou que era para dispensá-lo e foi embora.
- Não sabia disso não, Irmã. Eu falei de brincadeira.
Neste momento entra a Irmã Gorette, Professora de História, preocupada:
- Duas alunas da 6ª série não voltaram do recreio, procuramos e não encontramos em lugar nenhum.
As Irmãs Ana e Gorette saíram da sala e o Professor Onofre ia continuar a aula, mas o Adão escutou em parte o que a Irmã Gorette disse e me informou, já sabendo o que eu tinha aprontado. Eu esclareci para o Professor Onofre:
- Professor, manda as Irmãs buscarem as duas na capela.
- Capela? Como você sabe que elas... Jairo, o que você aprontou agora?
- Eu disse que hoje tinha confissão do Padre Vicente e falei para as duas irem para a capela.
O Professor Onofre foi até as Irmãs e informou onde estavam. As duas estavam na capela, sentadas no primeiro banco, caladinhas, esperando o Padre Vicente. O Padre Vicente era uma grande figura. Referência para todos os surdos, devido à sua luta para se tornar padre. Ele foi o primeiro padre surdo do Brasil. Era muito amigo de todos os surdos, usava a língua de sinais. Era também bastante enérgico conosco.
O Padre Vicente não estava lá, claro.
O Professor Onofre voltou e contou o que tinha ocorrido.
- Professor, a Irmã Ana vai me dar uma advertência depois dessa? – perguntei, meio temeroso.
- Não, Jairo. – e se aproximou de nós, segredando – Não contem para ninguém, mas quando eu disse para a Irmã Ana o que você aprontou, ela soltou uma gargalhada.
E o Professor Onofre acrescentou, ele mesmo rindo muito:
- Nunca tinha visto a Irmã Ana gargalhar antes.

Alguns nomes foram substituídos por motivos óbvios.

Publicado originalmente em 14/08/2012. Terceira parte da seguinte sequência
A arte de fazer arte - I
A arte de fazer arte - II

quinta-feira, 10 de março de 2016

Minha mãe e o temor da ditadura militar

Considerado um garoto “bonzinho”, longe dos olhares dos adultos eu era bastante “levado”. Minha mãe tinha plena consciência deste fato, mas nunca interveio nas bagunças que eu aprontava, junto com meu primo ou com os amigos da rua. Também era um moleque atento às conversações dos adultos, dissimuladamente. Naqueles anos era muito difícil uma criança se intrometer nas conversas dos adultos. Mas ouviam e repetiam muita coisa que os adultos falavam.

Eu estava sentado, brincando perto de minha mãe e minha tia, ouvindo a conversa como quem não quer nada:
- Dizem que este general é pior que os outros. Um linha dura que vai piorar a situação política do país. – falava minha tia.
- Que general?
- O Garrastazu Médici. Está prendendo e torturando muito mais que os outros. Não permite nenhuma manifestação contrária ao regime. 
Minha mãe fez uma brincadeira com o nome do general:
- Ah, o Garrafa Azul Médici. – riu – E os políticos que dirigem o estado? Será que vão lutar contra?
- Não acredito nisso não. Embora o Israel Pinheiro seja um governador meio que contra a ditadura, não pode falar nada, senão será deposto. São poucos os que ousam levantar a voz contra a ditadura.
- Esse Israel é só mais um bunda mole.
- Pelo menos ele se posiciona contra o governo militar.
Daí que eu, criança ainda, peguei da conversa somente o que eu considerei engraçado e estava a repetir:
- O presidente é o Emílio Garrafa Azul Médici. – e ria alegremente. – E o governador é um bunda mole.
Naqueles tempos o nome do presidente constava nos exercícios escolares. Colocava-se a data, o nome da professora, do aluno e do presidente. Mas, eu não tinha ideia do que fosse ditadura. Sequer sabia que o presidente era um general e considerado um ditador. Que pessoas eram mortas e torturadas. Eu tinha 9 ou 10 anos à época (1969/70). Ditadura era uma palavra proibida nas escolas, era algo que não estudávamos. Os adultos temiam qualquer referência negativa ao governo militar. Para mim era somente uma brincadeira com nomes, com o nome do presidente militar e do governador do estado. Eu não sabia dos horrores da ditadura, não sabia que até mesmo crianças foram torturadas, presas e fichadas pelo regime ditatorial que vigorou no Brasil.
Minha mãe ouviu e me chamou a atenção, calmamente:
- Não pode ficar repetindo isso.
Mas sabendo como eu era levado, minha mãe desconfiava que, longe dela eu estava repetindo estas alcunhas maldosas. E ocorreu que dias depois chego da escola anunciando:
- Mãe, um político vai passar aqui em Formiga depois de amanhã. A gente vai sair da escola e ficar perto do Bazar Guri (Praça Getúlio Vargas), com bandeirinhas do Brasil, acenando. A professora falou hoje. – eu disse, todo orgulhoso por poder levar para casa a bandeirinha do Brasil que eu deveria portar no ato.

O político, que não tenho certeza quem era, mas suponho que fosse o governador, passou por Formiga em carro aberto. E eu acenei minha bandeirinha alegremente, achando tudo muito divertido e ainda chamando a atenção do colega, dizendo que ele não estava “acenando direito”.

Muitos anos depois, em conversa com meu tio, lembrando de fatos da minha infância, ele me contou que esta ocasião foi extremamente preocupante para minha mãe. Porque a vinda do político coincidiu justamente com a minha repetição quase diária do nome alterado do presidente militar e a alcunha pejorativa ao governador. Meu tio, rindo um pouco ao lembrar dos fatos disse:
- Sua mãe sabia que você era muito levado e que não tinha papas na língua. Ela lembrou do dia que você chegou da escola mais cedo, lembra que sua mãe quase morria do coração quando acontecia alguma coisa fora do normal com vocês, ela lembrou disso, que você tinha desafiado a professora que tinha inventado um troço lá na sala de aula de pagar se levantasse da carteira sem pedir licença. Você falou que tinha problemas nas vistas, não tinha dinheiro para óculos e que não ia pagar nada disso. A professora no dia da cobrança ficou brava e mandou você vir buscar o dinheiro. Por isso, quando sua mãe lembrou dessa história, ela foi lá na Escola Normal e conversou com a diretora, perguntando se você não estava aprontando alguma coisa. A diretora respondeu que não e sua mãe insistiu, perguntou se você não estava fazendo gracinhas com nome do presidente... Sua mãe sabia muito bem o horror que era a ditadura militar e não ficou tranquila, não mesmo! 

Soube então que no dia do desfile, minha mãe estava postada alguns metros logo atrás de mim e só voltou para casa quando todo o evento terminou e eu já estava novamente no interior da escola.


Leia mais sobre os filhos de vítimas da ditadura militar:
- clique AQUI  - Carta Maior
- ou AQUI  - Promenino Fundação Telefônica.
O período de Médici como presidente foi denominado de Anos de Chumbo, devido à extrema perseguição política, tortura, repressão e suspensão de direitos políticos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Carnaval


Para quem gosta de assistir vídeos em Libras, com tradução, eis um excelente site com esta opção. Os participantes, a Libras e a tradução são de excelente qualidade.
Aproveitando que fevereiro é o mês do carnaval, vídeos contando como é o carnaval por esse Brasil afora.

Clique para acessar a TV INES.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O violão

Corporação Musical S. Vicente Férrer - Formiga-MG
Sede da Banda
(imagem: Google Maps)
Ouvi durante 12 anos e meio, tempo mais que suficiente para boas lembranças de quase todo tipo de música. Embora vagamente, também lembro de orquestras tocando clássicos. Ouvi a maioria dos músicos da MPB e da Jovem Guarda. De músicas sacras e do som magnífico do órgão da Igreja Matriz de São Vicente Férrer, que as freiras tocavam, somente em ocasiões especiais, Páscoa e Natal, por exemplo. Gostava muito da Banda, da Corporação Musical de São Vicente Férrer. Horas e horas lá na “sede da Banda”, ouvindo os músicos ensaiando. Eles deixavam a porta principal aberta, a molecada entrava, porém, ficavam todos quietos, usufruindo o prazer das músicas. Eles tocavam em eventos da cidade, carnaval, festas. Lembro-me da Banda passando pelas ruas às 5 horas da manhã, era a Alvorada. Outra lembrança forte é a Banda acompanhando e tocando a Marcha Fúnebre na procissão da Sexta-feira da Paixão. 
Depois de surdo, a música continuou fazendo parte do meu viver, pois em Formiga eu só convivia com ouvintes. Assim, com meu amigo Antônio, vez ou outra estávamos cantando. Ele era um grande incentivador de que eu cantasse junto, músicas antigas.
Ele aprendeu a tocar violão. A maioria dos amigos sabia tocar, participavam do Grupo Jovem e a música fazia parte. Quando visitávamos o asilo, cantavam acompanhados de violão em visita a cada quarto. Era bom ver os velhinhos animados, acompanhando os amigos cantantes. Eu não cantava. Era figurante mesmo. Às vezes os velhinhos percebiam e falavam:
- Canta também, filho!
Os amigos explicavam que eu era surdo, não tinha como acompanhar a música. Discorriam sobre minha surdez, como fiquei surdo. Era uma história que agradava muito os velhinhos e eu brincava com meus amigos:
- Acho que vocês gostam que eu vá junto para ficar contando minha história para os velhinhos.
Via o violão na minha casa, da minha irmã mais nova, na casa do meu primo, na casa do Antônio e demais amigos. Era um instrumento comum aos jovens. Mas notei, ao sentir os sons com o tato, que era quase imperceptível a diferença das notas (a sensação das notas mais fortes suplanta as notas mais suaves).
Quando eu cantava a “Canção do Exílio”, na estrofe sobre o violão, ficava matutando como seria cantar com o violão realmente junto ao corpo. Um dia, adentrando a casa do meu amigo Antônio na hora do almoço, vi o violão sobre a cama. Nós já trabalhávamos aos 18 anos e na hora do almoço eu ia à casa dele conversar fiado e, como era “de casa”, entrava e aguardava no quarto. Normalmente só a avó dele estava em casa, no quarto dela.
Pego o violão, encaixo no corpo, vou apenas dedilhando e solto a voz:

 “Você sabe de onde eu venho
É de uma pátria que eu tenho
No bojo do meu violão
Que de viver no meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração”

Meu amigo invade o quarto rindo:
- Primeiro, não é seu, não, esse violão é meu. Segundo, você está cantando alto! Lá da rua deu para te escutar.
Um dos problemas de ser surdo e falar normalmente é o descontrole sobre o tom de voz. Quando penso que estou falando baixo é justamente o contrário.
Nós dois rimos muito. Conversamos sobre o ocorrido.
- Os soldados ficavam longe de casa, dando origem a essas músicas que falavam do amor à terra distante. Nessa estrofe o cantador percebe que o violão é o coração saudoso da terra.
- E você quis ter o violão junto ao corpo por quê?
- Para entender a sensação do poeta. – rimos. – Será que ele compôs a estrofe enquanto estava com o violão ou somente depois, relembrando a imagem?


Muitos surdos gostam da música em Libras. A não ser que seja interpretação literal da música, eu não gosto. Provavelmente por saber exatamente como é a música e seu acompanhamento instrumental.
A música em Libras, na maioria das vezes, não se preocupa com a letra da música. Para alguns, não há problemas nesta desconexão, mas eu, particularmente, considero a letra importante também.

Mas, junto com amigos surdos e ouvintes, se há uma real animação, dançamos e nos alegramos, mesmo sem ouvir a música.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Entrevistas

Eu fazia a entrevista dos candidatos ouvintes que iriam trabalhar conosco.

Uma das primeiras candidatas era jovem, sabia Libras razoavelmente e estava bastante disposta a aprender. Respondeu todas questões com naturalidade, informou que fazia curso de Libras em uma entidade de surdos.
Porém, ela era evangélica e acreditava que os surdos precisavam ser salvos.
Trabalhou conosco apenas os três meses de experiência. Porque um dia, quando estávamos em reunião, a portas fechadas, ela adentrou a sala e diante dos diretores atônitos, colocou um papelzinho para todos. Era um convite para o culto evangélico. E ainda cobrou:
- Não deixem de comparecer, tá?
Mais tarde, fui eu quem teve que lhe repreender:
- Você não pode entrar na sala quando estamos em reunião, a não ser que seja algo extremamente importante!
- Você não gosta de Jesus, Sr. Jairo?
- Não tem nada a ver com Jesus. São regras que se seguem no ambiente de trabalho.
- Está bem. Mas eu espero que o senhor compareça no culto hoje.
- Jesus!! – mas eu disse baixo o suficiente para ela não ouvir.
Como ela não parava de falar no salvamento dos “pobres surdos”, insistindo todos os dias que deveríamos participar dos cultos, foi dispensada ao término da experiência.

Um jovem, bastante humilde, se apresenta. Inicio a entrevista:
- Como é seu nome?
- Marcelo.
- Marcelo, você já trabalhou com surdos?
- Não.
- Tem contato com surdos?
- Eu conheço o mudinho lá do bairro. E ajudo muito ele para conseguir uns bicos. Limpar quintal, ajudar em mudanças, bater laje.
- Mudinho?
- É, ele não fala nada. Não escuta nada também. O senhor não é mudo?
- Não... – percebi o intérprete segurando o riso na mesa mais afastada – Estou aqui falando com você, não é mesmo? Mas, eu sou totalmente surdo.
- O mudinho lá do bairro também é surdo como uma porta. A gente grita e ele não escuta nada. O senhor escuta um pouco, né? Eu estou falando e o senhor está escutando tudo!
- Não, não. Não estou escutando. Estou lendo seus lábios.
- Nossa! Como o senhor faz isso?
- É uma característica de alguns surdos. – eu estava sorrindo – Você sabe como trabalhará conosco aqui?
- Não sei não, senhor! A moça – a secretária que ia sair - falou que aqui tem muitos mudinhos. Atender o telefone, ajudar o senhor e os outros mudinhos.
- Você sabe alguma coisa de Libras? – e diante da expressão de confusão dele, acresci – A língua de sinais dos surdos.
- Só o básico. Igual eu falo com o mudinho lá do bairro.
- O básico? Qual é o básico que você sabe?
- “Comer”, “beber”, “trabalhar” – retirou o suor da testa com o indicador – “fumar”, “certo” – fez o sinal de positivo – “errado” – sinal de negativo – e “levar ferro” – e fez o tradicional “top-top-top” (a mão aberta batendo na outra em forma de “o”)
- Está bom, Marcelo. Vou conversar com os outros colegas e qualquer coisa, “a moça” liga para você, está bem?
- Está, Sr. Jairo. Quando eu começo a trabalhar?
- Tem outras pessoas para entrevistar ainda. Agradeço sua boa vontade em comparecer aqui.

Importante: os sinais utilizados pelo jovem não são sinais básicos de Libras. Alguns são considerados mímica. Outros são considerados classificadores. Muitos dos sinais de Libras são oriundos da mímica referente ao ato, como beber, comer e fumar. Mas, o sinal de trabalhar já é bem diferente do classificador utilizado pelo jovem. O gesto obsceno é gesto obsceno, independente se utilizado por surdos ou não.

Uma candidata de mais idade. Ao contrário dos demais candidatos, desta vez eu que a tratava com deferência.
- Sra. Matilde, a carteira de trabalho da senhora indica que trabalhou muitos anos como secretária – e numa grande empresa mineira. – A senhora já trabalhou com surdos?
- Não, mas nos últimos dois anos trabalhei em uma APAE, lidando com deficientes.
- Não consta na sua carteira de trabalho.
- Foi um trabalho mais para voluntário que contratual. Recebi pagamentos como autônoma.
- Lidou com surdos?
- Alguns...
- Sabe alguma coisa de Libras? Porque eu leio nos lábios e tenho facilidade de conversação, mas a maioria com quem a senhora lidará, não.
- Não sei, não. Mas aprendo fácil. – e no momento seguinte eu não percebi a mudança de quem entrevistava quem – Você tem filhos, jovem?
- Sim, tenho dois meninos.
- Que bom. Os filhos são uma coisa muito importante na vida, não é mesmo? Porque você ficou surdo?
- Eu tive meningite com 12,5 anos. A sequela foi a surdez bilateral profunda.
- Os outros também são surdos?
- Sim. Alguns em menor ou maior grau de surdez.
- Essa é sua sala?
- Sim! – respondi, estranhando a pergunta.
- É que aqui tem uma corrente de ar frio. Você deveria fechar a janela ou usar um agasalho.
- Obrigado. – percebendo o desvio da conversação, voltei à entrevista – A senhora nos auxiliará, principalmente, com telefonemas, atendimento ao público e a diversos outros surdos.
- Pode ficar tranquilo. Tenho grande experiência. Saberei cuidar de todos vocês.
- Está bem... – mas eu não fiquei tranquilo. Aquele “saberei cuidar de todos vocês” parecia muito mais a frase de uma mãe.
Observando a Sra. Matilde, com sua face rechonchuda, sorriso agradável, óculos na ponta do nariz, o cabelo grisalho adornado com um caprichado coque, parecia estar diante de uma mãezona, que realmente cuidaria de nós. Senti vontade de rir. Já imaginava eu chegando gripado e a Sra. Matilde indo preparar um chazinho de limão.

Tanto o Marcelo como a Sra. Matilde, não foram contratados.

Os nomes foram trocados, por motivos óbvios.