sábado, 21 de maio de 2016

Eu, a surdez e a vaga de trabalho

Muitos cobram que os deficientes, os negros, pobres, GLBT e índios lutem por si, sem depender de ajuda governamental, de leis ou benefícios sociais. Ou seja, por mérito. A meritocracia é citada quando se fala em benefícios sociais. Eu, surdo, deveria competir de igual para igual com os normais, sem o benefício das vagas destinadas aos deficientes. Sei o quão difícil é para negros, pobres, índios e GLBT. Mas, não posso falar por eles. Estou incluso na classe de deficientes e sei que, muitas vezes, não adianta você ser o melhor entre muitos. A deficiência é sim, uma desvantagem se você está competindo com os normais.

Em Formiga trabalhei em escritório contábil. Foi um excelente aprendizado do que era fatura, nota fiscal, duplicata. Como funcionavam os registros contábeis. Os livros Diário, Razão, etc. A necessidade de lançamentos fiscais para comprovação do pagamento dos impostos e fiscalização. A vida fiscal de uma empresa aparecia diante dos meus olhos, através das notas fiscais de compra, de venda, pagamentos. Anos depois eu trabalharia em uma gráfica, aprendendo como eram feitas as notas fiscais, os cheques, os blocos de notas, a numeração das notas.
Antes de conseguir o trabalho na gráfica, procurei serviço em diversas empresas de Belo Horizonte. A família mudou-se para Belo Horizonte. Eu estava com 19 anos e iniciando a vida profissional. É importante ressaltar que nesta época não havia nenhum benefício para os deficientes, não havia vagas específicas nos concursos, não havia intérpretes de Libras nas escolas ou empresas. Aliás, nem a denominação Libras existia ainda. Era apenas a Língua de Sinais dos Surdos. A denominação Libras só se tornaria lei em  24 de abril de 2002 (veja AQUI)
Minha irmã mais velha levou-me a diversas entrevistas de emprego, em escritórios contábeis e qualquer empresa que solicitasse “jovem para serviços gerais”. O problema é que tão logo ela informava que “meu irmão é deficiente auditivo, ele ficou surdo com 13 anos...”, já começavam as desculpas:
- O serviço é perigoso e não posso aceitar um deficiente... – em uma empresa de fundição.
- Ah, não vai ser possível! É necessário que atenda o telefone... – em diversos escritórios contábeis.
- Tem que carregar algum peso... – e diante da justificativa de que eu era forte e saudável – mesmo assim, é complicado, porque ele é deficiente e não posso lhe dar um serviço pesado.
Para piorar, houve uma entrevista que minha irmã esqueceu-se de informar corretamente quem estava interessado na vaga e o dono da oficina respondeu:
- Então, você está contratada!
- Não, a vaga é para o meu irmão! – explicou minha irmã, apontando para mim.
Como já estávamos ali há mais de meia hora e eu não tinha dito uma palavra sequer, o dono da oficina me fitou espantado, enquanto minha irmã esclarecia:
- Meu irmão é deficiente auditivo, ficou surdo com 13 anos e...
Mas, o olhar do dono da oficina é de quem parecia fitar um ser de outro mundo. Ele me encarou alguns segundos, mas respondeu à minha irmã:
- Sinto muito, pensei que era você a candidata. Estou interessado em contratar uma secretária. Se você se interessar pela vaga, ela é sua.
Foi a partir deste momento que minha irmã decidiu que eu teria que procurar trabalho sozinho.
- Você fica calado, não fala nada, o homem queria me contratar.
- Como eu vou falar alguma coisa, se você dispara a falar e eu nem sei o que estão conversando? – mas eu estava rindo – Pelo menos agora, se você não quiser mais ser professora de Educação Física, pode trabalhar na contabilidade da oficina.

Passei a procurar trabalho, sempre me apresentando como “deficiente auditivo, mas capacitado a aprender o serviço, sem dificuldades de compreensão”. Descobri que esta era a senha para o “não”. Em alguns lugares a própria recepcionista me dispensava, sem meias palavras. Ou com “meia palavra”: as vagas já foram preenchidas... Em outros, a recepcionista ainda me dava uma pequena esperança, ao procurar um superior. O superior apenas ditava uma resposta mais incisiva, que não permitira contestação devido à minha deficiência:
- A vaga requer o atendimento de telefone. Sinto muito.
Decidi não me apresentar mais como “deficiente auditivo e tal”. Perguntava direto:
- Precisarei atender telefone?
- Precisarei lidar com atendimento aos clientes?
Se uma destas duas perguntas tivesse “sim” como resposta, eu dava meia volta e ia embora.
A leitura labial permitia que eu conversasse sem informar a surdez. A maioria das recepcionistas eram jovens, facilitando a compreensão do que diziam. Mesmo eu perguntando um “o quê?”, não havia a suposição de que eu fosse surdo. Em diversas entrevistas eu conversei com o entrevistador sem ele saber que eu era surdo. Em outras, devido à dificuldade de compreensão do que diziam, eu informava que era surdo, pedia para escrever ou falar mais devagar um pouco. Mas, isto era senha para ser descartado. Nas fichas que eu preenchia, os dados eram bons; jovem, dedicado, facilidade de aprendizagem, conhecimento em contabilidade, tendo trabalhado um ano em escritório, sem carteira assinada. Mas, quando chegava o momento de encarar o entrevistador (ou entrevistadora), a surdez se tornava assunto quase que principal: com quantos anos fiquei surdo, porque fiquei surdo, se tinha problemas de saúde, se fazia algum tratamento, se necessitava de acompanhamento médico. Dava vontade de gritar: sou surdo, não sou doente! Algumas vezes, pacientemente, delicadamente, eu explicava: a meningite foi a doença que causou a surdez, mas a surdez não é uma doença e eu não tenho nenhum problema clínico. Ainda eram os tempos que não havia esclarecimentos sobre como lidar com as necessidades dos deficientes.

O pior momento foi em um escritório contábil de grande porte. Ao responder “não” às duas perguntas críticas que eu sempre fazia, acreditei que poderia conseguir a vaga. Informei à recepcionista que eu tinha perda auditiva severa (eufemismo para “deficiente auditivo” ou “surdo”). Ela não deu importância ao fato porque a conversa fluiu normal.
O local era considerado chique, com recepcionista uniformizada, atendentes e entrevistadores engravatados. Sala de testes, de datilografia (ainda não existia o computador) e de entrevistas separadas. Teste escrito, com vinte questões, entre conhecimentos contábeis, gerais e relacionamento no ambiente de trabalho. A recepcionista que me acompanhava tinha um movimento labial excelente, permitindo que eu entendesse “de primeira” o que ela dizia, pedia ou ordenava. O teste escrito era fácil, as questões contábeis eram referentes à nota fiscal, as questões de conhecimentos gerais referentes ao país e as de relacionamento no ambiente de trabalho eram simples. Lembro somente de uma questão que pedia para explicar “como será seu relacionamento com um subalterno”. E que eu respondi mais ou menos assim, conceito que levei por toda minha vida trabalhista: “independente do cargo, eu serei um novato no novo ambiente de trabalho e tenho muito a aprender com qualquer um dos veteranos, seja ele o office-boy ou o faxineiro”. O teste de datilografia também era descomplicado, bastando copiar um pequeno texto de um livro, sem marcação de tempo. Findo o teste, a recepcionista pediu que eu aguardasse. Havia um quadro diante de nós, candidatos. Algum tempo depois um rapazinho de uniforme verde surgiu com todos os testes na mão e começou a escrever nomes dos candidatos no quadro: 1 – Pedro Parker, 2 – Joana Katniss, 3 – Jairo Fernando... até o número 15. Eu li direto nos lábios da outra recepcionista:
- São somente 10 os classificados. Os 5 últimos são suplentes. Os demais podem se retirar. Agradecemos a presença e a participação.
Eram muitos candidatos às vagas e a sala ficou parecendo enorme quando mais da metade se retirou.
Pouco depois a recepcionista chamou um nome, que não prestei atenção qual era e o rapaz entrou na sala do entrevistador. Ocorre que não havia somente uma sala de entrevistas e de repente percebi que a recepcionista que me acompanhou durante todo o tempo, agora me fitava, curiosa. Ao perceber que ela me fitava, eu a encarei também. E ela falou, com uma expressão séria:
- Eu estou te chamando!
Então entendi que chamaram os dois primeiros de uma vez e eu não percebi. E que a recepcionista estava séria demais:
- Eu chamei o seu nome três vezes!!
- Eu te disse que tenho perda auditiva severa. Eu leio nos lábios, mas à distância fica muito difícil.
- Como é? – ela estava incrédula. Afinal, tinha conversado comigo durante toda a manhã de teste de forma praticamente normal.
Ela anotou na minha folha de teste em letras maiúsculas, com caneta vermelha: deficiente auditivo. Pediu que eu aguardasse e adentrou a sala do entrevistador.
Os outros eram chamados e eu continuava aguardando. Logo a sala estava quase vazia. De candidatos, somente eu e mais quatro pessoas. 
Surge o rapazinho de uniforme verde, entrega um papel para a recepcionista e se dirige para o quadro. A recepcionista me chama e informa:
- A sua classificação não foi suficiente para a nossa empresa.
- Mas, mas... – eu fiquei sem argumentos para contestar, ainda mais que não sabia o critério das avaliações.
- Sinto muito. Temos seu telefone. Se surgir uma oportunidade, nós o chamaremos.
Então percebi o rapazinho de uniforme verde apagando meu nome no quadro...
Entendi que o classificado em 11º tinha uma vantagem em relação a mim, classificado em 3º: ele não tinha nenhuma deficiência.
A empresa, particular, tinha o direito de escolher quem ela quisesse para o preenchimento da vaga. Não cabia reclamação por nada, sequer por discriminação ou preconceito.

Na época eu era um jovem de 19 anos, com toda a vida pela frente. No dia seguinte estava procurando emprego novamente, todo animado, com um sorriso nos lábios. 

Somente em 2015 foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).  A Lei 13.146, no seu Capítulo VI, Do Direito ao Trabalho, diz: “§ 3o  É vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.” - (veja AQUI)

*Os nomes de outras pessoas no quadro não são verdadeiros.

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