quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A dinâmica

Nunca devemos desprezar os que hoje nos são subalternos. A vida dá muitas voltas e quem está por baixo hoje, poderá estar por cima amanhã. É necessário tratarmos a todos com o devido respeito. E em se tratando de nós, surdos, com conhecimento de causa.
A psicóloga que trabalhava na empresa não tinha uma convivência de anos e anos com os surdos. Eu não a conhecia muito bem. Houve uma dinâmica convocada pela diretoria. Eu participei e cheguei avacalhando e rindo com os velhos amigos surdos. Nosso intérprete também estava participando. Ao iniciar a dinâmica ela falou algo sobre “nome” e apontou para a caixa com os nomes de todos os participantes. O problema de surdos que fazem leitura labial, como eu, é que muitas vezes entendemos parcialmente o que foi dito e para evitar pedir que a pessoa repita o que disse, vamos com a cara e a coragem, confiantes de que entendemos corretamente. Eu li nos lábios dela:
- Aqui está a caixa com os nomes. Peguem um nome e coloquem na camisa, com um alfinete.
Eu, pensando que já era a dinâmica, peguei um papelzinho com nome (era o nome do intérprete) e afixei na camisa. E já estava novamente rindo e conversando com colegas do lado. Fui um dos primeiros a pegar o bendito papelzinho, o intérprete rindo, perguntando o que eu estava fazendo. Mas, ele me conhecia por alegre e brincalhão e num primeiro momento pensou que eu estivesse zoando com a psicóloga. A psicóloga não me conhecia muito bem mas, claro, sabia o nome do intérprete e como foi ela quem elaborou os papeizinhos, sabia também que não havia homônimos no grupo. O problema é que ela não me corrigiu imediatamente. Sabedora do meu erro ela simplesmente perguntou:
- Você chama Jurandir? – e apontou para o papel que eu afixara na camisa.
- Não, meu nome é Jairo. – eu estava sorrindo.
- Então porque você está colocando o nome de outra pessoa?
Aquele momento em que você percebe que a pessoa está satisfeita com seu desconforto. Meu sorriso se tornou um esgar envergonhado, a alegria de participar do evento se esvaindo totalmente. O Jurandir veio em meu socorro:
- A Dra. Selena pediu que pegasse o seu nome na caixa.
Aff! Ela disse “peguem o seu nome” e não “peguem um nome”.
- Entendi errado. – justifiquei.
Mas o olhar da psicóloga dizia tudo: burro!! Muitos não acreditam quando digo que o sexto sentido dos surdos é a percepção extraordinária que temos em analisar os semblantes das pessoas. Quando um surdo diz que uma pessoa está com raiva, pode ter certeza, a pessoa está mesmo com raiva. Quando percebemos alguma zombaria não é devido ao que “ouvimos” e sim ao que vemos. O olhar, o sorriso no canto dos lábios. As pessoas que escutam nem sempre percebem estes pormenores faciais, pois o som das palavras os suplantam. O surdo não se “distrai” com os sons e percebe mudanças sutis nos olhos, nos lábios, no movimento da cabeça...
Isto marcou toda a dinâmica. Minha participação foi totalmente ofuscada pelo meu erro inicial. Não tinha como apagar o início desastroso. Não tinha como voltar o tempo e retirar o “meu nome” e não “um nome” qualquer.
Como eu disse no início do texto, jamais destrate um subalterno. Jamais despreze alguém em posição inferior à sua. Houve uma reviravolta inesperada em menos de um ano. Houve um convite da Diretoria para que eu participasse de decisões da empresa. Devido ao encaminhamento de surdos para o mercado de trabalho, eu e mais dois colegas surdos também passamos a avaliar os candidatos. Foram apresentados os trabalhos da psicóloga com os surdos e as avaliações que ela fazia dos candidatos. No momento que os relatórios que ela fazia das entrevistas com os candidatos a emprego foram apresentados à nossa avaliação, houve certo descontentamento. Não somente de minha parte, mas principalmente dos outros dois colegas, que lidavam com surdos há anos. Eu era justamente o novato ali.
A psicóloga era extremamente crítica aos surdos profundos, que não tinham leitura labial e que não escreviam o português corretamente. E os surdos oralizados, com português correto recebiam uma avaliação alta, positivista. Quem convive com surdos sabe que não é por aí que se avaliam as qualificações de um surdo. A não ser que ele vá lidar com elaboração de textos, o português não é o quesito principal. Muitos trabalhos de digitação envolviam principalmente números. E mesmo alguns trabalhos com português, a maioria era copiar textos. Infelizmente, ainda hoje há a consideração de que se você não sabe escrever em bom português, você não é suficientemente inteligente. O problema é que, para os surdos, isso ainda é pior. E a associação de português ruim com capacidade ruim ainda persiste.
Meus outros dois colegas surdos se espantaram que a psicóloga conhecesse tão pouco dos surdos e ainda assim fosse responsável por avaliações dos mesmos. Foram eles que sugeriram o encaminhamento de um pedido à diretoria para substituição da psicóloga. E como os dois já tinham votado sim pela substituição, eu fui voto vencido. Como o Jurandir tinha participado da reunião conosco e depois junto com a diretoria, é óbvio que ele comentaria com a psicóloga o que ali foi decidido. Ela saberia que eu fui voto vencido, mas que eu poderia ter falado a favor dela se não tivesse ocorrido aquele imbróglio da dinâmica. O tratamento que ela me dispensou na dinâmica não me possibilitava falar a favor dela. E pensar que na dinâmica, sendo eu o primeiro a pegar o papelzinho com nome, ela simplesmente se aproximaria e pegaria o nome errado, corrigindo de imediato o meu erro, sem criar o desconforto que ela tornou ainda maior com a reprimenda. Assim é a vida! Não subestime a capacidade de reviravoltas que a vida proporciona.
A psicóloga foi demitida.
Tempos depois, verificando todos os documentos da psicóloga, encontramos também as observações da dinâmica. Eu procurei meu nome. A psicóloga declarou parte de minha personalidade como: autoconfiante, afoito, sem compreensão correta das orientações declaradas; tem bom português, boa noção dos regulamentos.
Como eu disse; a leitura da expressão facial e dos olhos da psicóloga naquela dinâmica demonstravam claramente que ela me considerou “burro”.  A anotação “sem compreensão das instruções declaradas” era só uma maneira cordial de dizer que eu não entendia o que solicitavam. Considerar dessa forma porque eu não entendi UMA instrução, era muito mais um atestado de que ela não conhecia os surdos e tinha uma visão pré-concebida erroneamente sobre nós.
Não tivemos mais contato com essa psicóloga. Ela nunca se tornou parte da comunidade surda.

Até os dias de hoje é muito comum pessoas me considerarem pouco inteligente se num primeiro momento demoro a entender o que estão explicando. É a consideração de que o surdo não é capaz de entender as coisas facilmente, quando na verdade estou com dificuldade de leitura labial, diante de uma pessoa que está conversando comigo pela primeira vez e utilizando palavras raras no dia a dia.


Os nomes foram trocados, por motivos óbvios.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O verdadeiro trabalho de Hércules - Parte II

Parte I
M
as ele era bastante frágil em relação a todos os garotos no campo. Aparentava ter sete ou oito anos. Era bem menor que o irmão.
Com o intervalo do jogo ele foi para junto dos companheiros de time. Eu observava de longe, percebendo que ele conversava com todos, buscava água para um e outro, incentivava e alegrava os amigos. Não podendo ajudar os amigos dentro de campo, tornou-se mascote, conselheiro e incentivador do time.
O segundo tempo começou com o time das camisas vermelhas procurando o gol a todo custo, uma vez que só a vitória interessava.
O garotinho Hércules senta-se do meu lado e recomeça a tagarelar:
- O time vai partir pra cima, pois precisamos ganhar este jogo, para disputar a final. O Zé Gambá disse que o time deles já está cansando pelo lado esquerdo e é por ali que o Latinha deve atacar e tentar mandar a bola para meu irmão na área.
- Você estuda? Pretende se formar em alguma coisa?
- Eu estudo sim. Eu sou colega de sala do meu irmão, porque ele já tomou uma “bomba” – ele queria dizer que o irmão foi reprovado. – Agora eu ajudo ele e ele vai passar de ano junto comigo e a gente vai tentar alguma coisa, mas aqui no bairro é difícil. Meu irmão gosta mais de futebol do que de estudar, mas o Juiz já falou que se não estudar, não joga. Aí eu ajudo meu irmão e ele melhora nos estudos e joga também.
- Em que você gostaria de se formar?
- Eu quero ser médico. Um dia meu irmão cortou a perna e eu fui com ele no hospital. Minha mãe nem aguentava ver o tanto de sangue que saía da perna do meu irmão. Eu que fiquei com ele e ajudei o médico a dar os pontos no corte. – ele contava o fato com uma alegria espontânea – Eu gostei muito de ver que o médico ajuda as pessoas e até salva vidas. O médico deixou eu ver ele costurando o corte na perna do meu irmão. Eu até entreguei o gás para ele; o gás não, é aquele troço branco, quase igual as bandagens que o pessoal usa de proteção nos jogos.
- Gaze. – eu ri.
- Isso, gaze! Aí eu falei para o médico que quando crescesse eu também seria médico. E o médico me disse que eu tinha que estudar muito, porque medicina exige muito estudo. Eu estou estudando. Mas aqui no bairro o que a gente mais encontra é professor. Não quero ser professor não, não tenho paciência para ensinar nada. Ensino meu irmão porque ele é meu irmão.
- Pelo menos você é sincero! E isto é muito importante quando abraçamos uma profissão. Não adianta seguir uma carreira se você não se sente satisfeito com ela.
A conversa foi interrompida para acompanhar com atenção um contra-ataque do time. Mas o Pastorzinho errou o passe para o Latinha, facilitando a defesa do time das camisas verdes. O garotinho reclamou com o Pastorzinho, mas sem utilizar nenhum palavrão.
- Pastorzinho do céu! – berrou o garotinho – Faça o lançamento direito, capricha! Não use o seu pé torto! Tenha fé!
Parece que o Zé Gambá pespegou um adendo ao apelido do Pastorzinho, um “tenha fé”, quando se dirigiam ao garoto.
- O Pastorzinho gosta de complicar o que é simples. Bastava caprichar no passe que dava! – e voltou abruptamente para o assunto de profissão – Eu tinha pensado em ser advogado, um dia eu vi um filme legal, o advogado levanta lá e fala “objeção!”, “protesto”, essas coisas tudo e o juiz acaba dizendo que o homem é inocente. Mas, não gostei não...
- Porque não?
- É que ele estava defendendo um criminoso mesmo. Aff, não quero defender bandido não. Imagina defender o João Baiano!, se não conseguir livrar ele, ele manda os traficantes tudo fazer uma peneira com a gente...
- Fazer uma peneira?
- Encher a pessoa de bala, tanta bala que o corpo fica parecendo uma peneira de tanto buraco... – eu percebi que ele tinha baixado o tom de voz.
- Você tem medo do João Baiano?
- Todo mundo tem medo dele. Um dia eu até vi o revólver na cintura dele, mas o Juiz já falou que é pra gente ficar longe do João, não fazer nada que ele pedisse. E se ele pedisse era para contar para ele. O Juiz é o único homem aqui no bairro que eu conheço e que não tem medo do João Baiano. O Juiz é fogo, um dia ele entrou no boteco onde o João bebia pinga e apontou o dedo para o nariz do João e falou que era para ele deixar os meninos dele em paz.
- Bastante corajoso, o Juiz, você não acha? – mas fiquei curioso e perguntei – O que o Juiz faz?
- O Juiz é professor da escola municipal aqui do bairro. Mas o João tem medo dele por causa dos boatos de que quando era moleque igual nós, o Juiz matou um traficante aqui do bairro. O Juiz é muito respeitado aqui no bairro e...
- Lá vai seu irmão driblando!!
O garotinho começa a pular feito doido:
- Vai, vai, Romarinho, corre, corre – o irmão do garotinho corre, dribla mais um na corrida e ruma em direção ao gol – Não tenta “dibrar”, chuta, chuta, chuta!!
Mas Romarinho driblou o goleiro com categoria e chutou de esquerda para o gol. Outro golaço! O irmão de Hércules era realmente bom de bola.
O garotinho Hércules pulava feito maluco e eu mesmo tinha vibrado muito com o gol. No seu modo alegre e descontraído de contar casos, o garotinho fez com que eu me afeiçoasse ao time das camisas vermelhas. Mais de meio time correu em direção à arquibancada e enfileirados levantaram os braços três vezes, em direção ao garotinho. Hércules ergueu os braços também. A homenagem foi bonita e me deixou emocionado.
O jogo continuou bastante disputado. O time de camisas verdes partiu para o ataque, em busca do empate. Mas, os garotos de camisas vermelhas estavam confiantes, seguravam as investidas, com categoria.
O jogo estava quase terminando. O garotinho Hércules cantava alegremente:
- Vamos pra final! Vamos pra final! – batia palmas, dançava e rodopiava todo feliz.
Sentei e fiquei observando a alegria do garoto. Devia ser difícil desejar jogar bola com os amigos e não poder. Ter que participar como torcedor, não podendo correr atrás da bola, marcar gols, ser um dos astros da equipe, como o irmão. Se o time fosse campeão, a foto enquadraria todos os jogadores, mas não o garotinho que carregava as traves, a água, a bola e sozinho, representava uma grande torcida. Para a posteridade, o time seria lembrado sem o garotinho, pois a história grava os gols, os lances, o placar, o nome dos jogadores. Os que ajudam externamente dificilmente são lembrados. Eu tinha percebido a empatia entre o time e o garotinho. O quanto a alegria dele contagiava o time. Um exemplo de resiliência. Admirável!
Meu pensamento se fixava na foto do time campeão sem o garotinho e o fato me irritava:
- Hércules, se o seu time for campeão, ou mesmo vice, quando chegar o momento de tirarem a foto do time, você deve se posicionar de forma que saia na foto também.
- Por quê? – ele perguntou, intrigado.
- Porque você faz parte do time. É importante para o time e, se forem campeões, você também ajudou a conquistar o título.
Ele sorriu, pensativamente. Mas, eu lia nos olhos dele, que ele gostou da ideia e que, provavelmente, seguiria minha sugestão. Ele via o fato como uma peraltice a executar.
Eu imaginava Hércules no canto da foto, o menorzinho de todos os garotos, com aquele sorriso cativante. Indagariam quem era aquele pedacinho de gente e assim conheceriam a história de Hércules, que não era o musculoso herói mitológico e sim o raquítico incentivador do time.
O jogo terminou, os garotos de camisas vermelhas seguraram a vitória com categoria. Iriam à final. Comemoravam ainda em campo e o garotinho Hércules se preparava para se juntar a eles.
- Você virá para a final?
- Farei o possível.
- Isso que você me contou do Hércules é verdade?
- Bom, Hércules não existiu de verdade. Era um deus da mitologia grega. – achei que estava complicando a cabecinha da criança – Você pode procurar livros na biblioteca da sua escola que falam de Hércules. O seu professor de História também vai gostar de falar sobre isso em uma aula.
Acrescentei:
- O Zé Gambá provavelmente te apelidou de Hércules por gozação. Mas, sabe, você é verdadeiramente um Hércules. Hércules fez doze trabalhos que eram considerados impossíveis. Em muitos ele usou sua força física descomunal. Você fez um décimo terceiro trabalho, que foi incentivar seu time para chegar à final. – ele ria de orelha a orelha – Por isso está certo, você pode sim, ser chamado de Hércules!
Ele me deu um abraço espontâneo! Eu, sentado, era da altura dele, tão pequenino!
Afastou-se e correu em direção ao irmão e amigos que comemoravam a vitória no meio de campo. Parou a meio caminho e olhou para trás. Eu continuava sentado, embriagado pelo abraço tão afetuoso. Ele ergueu o braço numa saudação silenciosa.
Ergui meu braço também e disse:
- Adeus, pequenino!



quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O verdadeiro trabalho de Hércules - Parte I

Ali não era favela, apesar de antes assim ser chamado. Era um local pobre, mas urbanizado e limpo. Resolvi o problema com o colega que por ali morava, que se acidentara e eu levei alguns documentos para ele assinar. Descia o morro tranquilamente quando avistei o campinho de futebol. A molecada estava se preparando para um jogo. Colocavam as traves nos buracos próprios, conversavam animados, estavam uniformizados, havia juiz e bandeirinhas, adultos e mais alguns em volta de uma mesa com anotações. Admirei a organização. Sabia que algumas comunidades de bairro levavam a sério seu trabalho e, em áreas de risco como aquela faziam de tudo para que as crianças não desencaminhassem para a criminalidade. O esporte era o melhor caminho para evitar este problema.
O jogo estava para começar, time de camisas vermelhas, com faixa branca, contra o time de camisas verdes. Os calções variavam de cores, bem como, alguns com chuteiras, outros com tênis. Resolvi sentar na pequena arquibancada coberta, que proporcionava sombra agradável naquela tarde de sol. Não havia mais ninguém assistindo o jogo. Minutos antes de o jogo começar um garoto pequeno e magrinho atravessa o campo correndo e senta-se do meu lado.
- O meu time precisa ganhar hoje por vitória simples para se classificar pra final do campeonato aqui do bairro. Meu irmão é o camisa nove. Ele é bom de bola, vai marcar dois gols hoje. – o garotinho dispara a falar sem rodeios – Se a gente não ganhar vamos disputar o terceiro lugar de novo. Ano passado disputamos o terceiro lugar e perdemos. Ah, não!
O jogo tem início, a garotada correndo atrás da bola. O garotinho, magrinho como ele só, observa que estou bem vestido e conclui acertadamente:
- Você não é do bairro... O que você está fazendo por estes lados?
- Tenho um amigo que mora ali perto da caixa-d’água. – ele se descontraiu e eu continuei – Mas, qual é o seu time?
- O de camisa vermelha. Olha lá meu irmão, “dibrou” dois caras... vai, vai... ah, não, perdeu a bola. – levantou-se feito maluco e berrou tão alto que até um dos adultos em volta da mesa do outro lado do campo levantou a cabeça – Segura ele, Chumbinho!!
Chumbinho devia ser o jogador da defesa, camisa três, que parou o contra-ataque com um carrinho. Embora tenha tocado a bola, o jogador adversário caiu e o juiz deu falta.
- Foi na bola! Foi na bola! – a despeito da magreza, o garotinho tinha um vozeirão – Juiz ladrão! Foi na bola!!
- Você não tem medo de xingar o juiz? Ele é daqui do bairro?
- Sim, ele é Presidente da Associação de Moradores. Ele apita quase todos os jogos aqui do bairro e a gente chama ele só de Juiz. Ele é pai do Gabiroba, que joga em outro time. Nenhum jogador xinga ele, porque senão ele dá cartão vermelho e a suspensão é feia, teve uma suspensão de cinco jogos para o Baiacu. Aqui na torcida a gente aproveita e xinga mesmo, porque ele não pode expulsar a torcida. – e o garotinho gargalhou, com um olhar malandro.
No jogo, o defensor Chumbinho cometia outra falta. Desta vez, perigosa, próxima à meia-lua. O adversário preparava-se para bater a falta e o garotinho do meu lado esfregava as mãos nervosamente. O adversário acertou um chute potente e o goleiro não conseguiu defender. Infelizmente, 1x0 para o time das camisas verdes.
- Mas que droga! – o garotinho sentou-se, acabrunhado – O Pantera hoje não está num bom dia.
- Quem é Pantera?
- O nosso goleiro. Logo ele que é bom de defender pênalti, levar um gol de falta bobo desses. Parece até que comeu feijoada no almoço. Nem foi direito na bola.
- Caramba! Todos têm apelidos! Como é o apelido do seu irmão?
- Romarinho. Mas ele é bom mesmo, igual o Romário de verdade, “dibra” muito e faz gols de cabeça, mesmo sendo baixinho. Lá na defesa tem o Meio-quilo, aquele gordo lá. Camisa quatro.
Eu que estava rindo.
- Quem colocou este apelido de Meio-quilo nele?
- Foi o Zé Gambá. – o garotinho estava gargalhando de novo – O Zé um dia estava correndo atrás do Branca de Neve, ali na rua do Bar do Grande, porque o Branca tinha roubado uma bola dele. Só que o Branca pulou o esgoto perto do bar e o Zé, quando foi pular – o garotinho estava gargalhando e falando ao mesmo tempo – caiu dentro do esgoto. Saiu todo sujo de bosta e o pessoal não perdoou mesmo! Começaram a chamar ele de Zé Gambá e o apelido pegou. Ele apelava quando a gente chamava ele de Zé Gambá... – o garotinho ria a não poder mais – Aí a gente chamava mais ainda... Depois ele deixou prá lá.
Eu estava rindo e admirando a loquacidade do garotinho. Como falava!
Ele prestou atenção no jogo, ataque do time de camisas vermelhas, mas o jogador com a bola chutou longe do gol.
- O Latinha devia ter passado a bola para meu irmão. Ele estava livre ali no meio!
Era apelido que não acabava mais... Fiquei curioso e perguntei:
- E como eles te chamam?
- Hércules! – ele respondeu, sorridente.
- Foi o Zé Gambá que te pôs esse apelido?
- Sim, por quê?
- Ele é bastante irônico...
- Iro.. o quê?
- Ele é gozador. Chamou o gordo de Meio-quilo e você, que é magro, de Hércules. Porque ele te apelidou de Hércules?
- Bom, como você sabe eu tenho problemas de falta de ar e não posso nem jogar bola com eles. Mas, eu ajudo carregar as traves e as chuteiras e as camisas. Aí eu andava cabeludo e carregava as traves. Um dia eu cortei o cabelo e quando fui carregar as traves eu passei mal e o Zé Gambá começou a gozação comigo, falando que cortou meu cabelo, cortou minha força, então eu era o Hércules.
Eu ri um bocado. Principalmente do modo do garotinho contar o fato.
- O Zé Gambá pode ser gozador, mas está fazendo confusão com as histórias. Quem era forte porque era cabeludo era o Sansão. Hércules era forte, mas não tinha nada a ver com cabelo.
- Como você sabe disso? – ele perguntou, muito curioso.
- A história de Sansão está na Bíblia, no Livro dos Juízes. Já Hércules é um deus mitológico. Sansão era forte porque não cortava os cabelos, até que um dia Dalila descobriu este segredo e cortou os cabelos dele. Já Hércules é lembrado devido a Os 12 Trabalhos de Hércules.
- Que mulher sacana!! – ele estava rindo muito – O Pastorzinho é que gosta de contar histórias da Bíblia. Ele fica ouvindo o pastor da igreja dele e depois quer que todo mundo acredite nas histórias que ele conta. O Zé Gambá uma vez sacaneou com ele, quando ele disse que Jesus caminhou sobre as águas... – ele começou a rir antes mesmo de terminar o relato – Ele jogou o Pastorzinho no rio e ficou gritando “caminha sobre as águas, Pastorzinho! Tenha fé!!”
Eu não consegui deixar de rir. Esse Zé Gambá era o maior piadista!!
- Olha o ataque do seu time!! – alertei.
E foi um ataque fulminante, com Latinha driblando dois marcadores e desta vez, passando a bola na medida para Romarinho, que chutou forte, de primeira e marcou um golaço. O mais incrível foi a comemoração dos garotos, que correram em direção à arquibancada onde eu estava. Eu até me assustei momentaneamente ao ver a molecada correndo em minha direção. Mas, o garotinho, Hércules, desceu o pequeno desnível da arquibancada e correu até a lateral do campo, onde abraçou os jogadores do time. Após a comemoração, o irmão, Romarinho, trouxe o pequeno Hércules de volta para a arquibancada, abraçados.
- Você viu que golaço o meu irmão marcou? – perguntou o garotinho, todo feliz.
- Sim, eu vi. E vi que o pessoal do time gosta muito de você.
- É que no princípio, quando eu tinha nove anos ainda, eu jogava com eles e também marcava muitos gols, igual meu irmão. Depois eu fui ficando muito doente, muita falta de ar e também fiquei no hospital e fiquei muito magro e o médico falou que eu não podia mais jogar bola com eles.
- Quantos anos você tem agora? E o seu irmão?

- Eu tenho onze e meu irmão tem doze anos.

(continua...) Parte II

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Oportunidades de trabalho para deficientes

Oportunidades de trabalho para deficientes.
Para maiores informações, clique AQUI.

"O projeto acontece em um stand adaptado para todos os tipos de deficiência, com atendimento para deficientes auditivos realizado por intérprete de Libras, piso tátil e material de divulgação em versão braile para cegos e rampas e balcões para cadeirantes" (texto do panfleto)


Recebido por e-mail através de Juliano Salomon.


sábado, 26 de setembro de 2015

26 de setembro - Dia Nacional do Surdo

A data remonta à inauguração da primeira escola para surdos no Brasil, em 1857, o Instituto Nacional de Surdos Mudos do Rio de Janeiro, atual INES‐Instituto Nacional de Educação de Surdos. O INES, hoje uma referência nacional em termos de educação para os surdos era também um asilo. Ali eram deixados os surdos de toda parte do país, alguns abandonados pelas famílias. Somente eram aceitos homens. D. Pedro II trouxe da França Hernest Huet, professor surdo que ensinou a língua de sinais para os surdos brasileiros. Huet colaborou para a fundação e a educação dos surdos no INES.

Super Notícia - 29/09/2002
No início dos anos 2000 participei ativamente das passeatas e manifestações dos surdos de Belo Horizonte, quando apresentamos diversas reivindicações ao Governo do Estado (primeiro ao Governador Itamar Franco e nos anos seguintes ao Governador Aécio Neves). Na realidade, pouco conseguimos diante dos políticos mineiros.  Ainda hoje, em Belo Horizonte, a referência escolar para os surdos é o Instituto Santa Inês e a Escola Estadual Francisco Sales. Estudei no Instituo Santa Inês, que é parte do Colégio Monte Calvário, das Freiras Filhas de Nossa Senhora do Monte Calvário. No ISI terminei o ensino fundamental, que eu iniciei em Formiga, interrompido então, pela surdez. E quanto à Escola Estadual Francisco Sales, recentemente o governo por pouco não encerrou as atividades desta escola, devido à inclusão escolar dos surdos. Em vista de manifestações contrárias, o governo manteve a E.E. Francisco Sales ativa. Com a inclusão escolar, diversas escolas estaduais proporcionaram aos surdos a possibilidade de cursar o Ensino Médio. Na E.E. José Bonifácio foi onde eu cursei o Ensino Médio. Com salas mistas (surdos e ouvintes) e um intérprete, os surdos conseguiram continuar os estudos. Havia muita dificuldade para cursar o Ensino Médio, pois não havia nenhum projeto de inclusão dos surdos. Também esta conquista (Ensino Médio nas escolas, com intérprete) foi uma grande batalha, com auxílio também das intérpretes (haviam somente duas turmas). Atualmente, além das escolas, os surdos conseguem cursar faculdades, pois a inclusão escolar se expandiu enormemente, proporcionando aos surdos maior acesso aos cursos superiores. É a realidade advinda das manifestações dos surdos. A de 2002 tinha justamente o tema "Direito a Escola e Educação para os Surdos".

Ainda tenho a camisa da
manifestação dos surdos - 2002
Da manifestação dos surdos em 2002 ainda tenho a camisa padronizada (comparem nas fotos) que foi distribuída para todas as entidades que apoiaram a manifestação, que as redistribuiu entre os participantes. A parte de trás constava com os apoiadores, praticamente todas as entidades de surdos de Belo Horizonte e Contagem.

Uma das leis que já existiam e que, praticamente não era cumprida, chamada de Lei de Cotas (Lei 8.213 de 24 de julho 1991), foi de extrema importância na inserção dos surdos no mercado de trabalho. Entre as reivindicações dos surdos sempre constava um capítulo específico solicitando que o governo cumprisse e fizesse cumprir a Lei de Cotas. Somente a partir de 2003, com um maior rigor da fiscalização do Ministério do Trabalho, as empresas passaram a ser autuadas em decorrência do não cumprimento desta lei. Os avanços com o cumprimento desta lei se mostraram bastante satisfatórios para a admissão dos surdos no mercado de trabalho. Grandes empresas nacionais e multinacionais passaram a contratar deficientes e os surdos foram os maiores beneficiados, pois a contratação do surdo não exige que as empresas modifiquem a estrutura funcional do ambiente de trabalho.

Em outubro de 2008 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei que criava o Dia Nacional do Surdo. (Lei 11.796/2008)

A Lei de Acessibilidade (Lei 10.098/2000) proporcionou aos surdos a possibilidade de acompanharem na TV diversos tipos de programas televisivos, desde novelas a telejornais, pois instituiu a legenda oculta (closed caption) na grade de programação das emissoras de TV. Com o aumento gradual da inserção da legenda, a programação em 2016 já deverá contar com a opção em todos seus programas.

A Lei de Libras (Lei 10.436/2002) estabeleceu a Libras como a língua oficial da comunidade surda brasileira. 

As dificuldades enfrentadas pelos surdos foram diminuindo com o tempo, mas ainda há muito a ser feito.


As lutas mais atuais se concentraram na aprovação do Estatuto da Deficiência. Assim, em 6 de julho de 2015 foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) (Lei 13.146/2015). Com esta lei veio a aprovação das escolas bilíngues para surdos, muito importante para a inserção do surdo à língua portuguesa e vice-versa. 


Conquistas que beneficiaram a comunidade surda em geral:

- cumprimento (com maior fiscalização a partir de 2003) da Lei de Cotas.
- a Lei de Libras proporcionou aos surdos um maior acesso à educação, possibilitando comunicar e ensinar em Libras.
- em diversos órgãos públicos há profissionais capacitados em Libras (intérpretes), que proporcionam um melhor atendimento ao surdo.
- closed caption em vasta programação televisiva
- a aprovação das escolas bilíngues.
- o celular se tornou um aparelho essencial para os surdos, possibilitando a utilização do telefone sem intermediários.
- aposentadoria especial.

Parabéns a todos os surdos pelo seu dia!

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Meus dois amigos atleticanos

Dois grandes amigos de infância e adolescência eram atleticanos. Talvez por isso, nunca fui partidário das brincadeiras envolvendo as torcidas, preferindo muito mais a discussão clara e objetiva, envolvendo o jogo. A.C. e E.P. eram atleticanos ferrenhos e muitas vezes eu estava junto a eles, acompanhando os clássicos, no rádio. Dificilmente um clássico era televisionado. Ocorria quando os ingressos se esgotavam e a tv entrava com a transmissão ao vivo, de surpresa. Ao lado dos meus amigos, ficava aguardando que me informassem gols ou lances capitais. Mas, eles eram torcedores do Atlético e os comentários eram parciais:
- O Galo está atacando direto. O Cruzeiro está todo recuado.
- O Galo está jogando bem.
- Quase gol do Galo.
Vibravam com os lances de perigo na área cruzeirense, momento que eu pensava que tinha sido gol a favor do Atlético. E quando o gol realmente ocorria eu tinha que aguentar os dois pulando feito doidos, gritando “Galôôôô”. Quando era gol do Cruzeiro, eu nem vibrava. Eles demoravam a informar que foi gol do Cruzeiro. Ficavam secando a validação:
- Não valeu. Vai anular. Que isso?!?! Roubado.
Eu perguntava:
- Gol de quem?
- Gol do Cruzeiro. – respondiam, com a cara emburrada.
Os dois sabiam escrever com o alfabeto manual dos surdos em velocidade incrível (lembrando que na época ainda não existia a denominação Libras).
Acompanhamos juntos a decisão de 1977, quando o Cruzeiro tinha um time abaixo da média e o Atlético estava com os craques selecionáveis, Toninho Cerezzo, Reinaldo, Paulo Isidoro, Éder Aleixo. O Cruzeiro foi tetracampeão mineiro (1972 a 1975) e a sequência foi interrompida em 1976, com o Atlético sendo campeão. A decisão de 1977 começou com o Atlético vencendo o primeiro jogo por 1x0. A. e E. já comemoravam o título, pois o Atlético precisava de um empate no jogo seguinte. Só que no segundo jogo, Revetria marcou três. O Atlético precisava do empate para ser campeão e chegou a fazer dois. A cada lance em que o Atlético quase empatava a partida os dois pulavam. E eu ficava interpretando as expressões faciais deles. Eles só me passavam o que interessava a eles. Rádio é mesmo uma coisa inútil para os surdos! Não é possível descrever o martírio que era desejar saber o que ocorria no jogo e compreender perfeitamente que o aparelhinho ali descrevia todas as situações. Ainda quando ouvia escutei alguns jogos pelo rádio, junto à minha mãe (que era apaixonada com o Formiga Esporte Clube e a Seleção Brasileira). Portanto, eu tinha plena consciência do que era narração de um jogo. E como meus amigos eram atleticanos, no momento em que eles prendiam a respiração, ficavam imóveis, de olhos arregalados e preparando para gritar e pular, eu sabia que o Atlético estava atacando com perigo de gol. Claro que isso não acontecia quando era o Cruzeiro que atacava, muito menos quando o Cruzeiro fazia gol.
- Quase gol do Galo!
- Passou perto! Vai empatar.
Não empatou. Teríamos um terceiro jogo. Bons tempos em que muitas decisões eram assim: venceu o primeiro jogo, perdeu o segundo, um terceiro jogo era realizado (a primeira Libertadores que o Cruzeiro conquistou também teve um terceiro jogo em campo neutro).

O terceiro jogo foi televisionado. Só o A. estava assistindo comigo. Ele não tinha tv em casa. Diante da tv foi minha vez de pular e vibrar. O Cruzeiro foi campeão, 3x1. O A. contava para os nossos amigos:
- Não dá para assistir jogo com o Jairo. Fica gritando feito doido. E sapateando na cadeira. – sofá era um móvel caríssimo para os nossos padrões financeiros à época.
Mas, eu ria e dizia:
- E não dá para acompanhar jogo no rádio com você. Fica só falando do Galo, quase gol do Galo, o Galo está atacando, pressão total do Galo. Parece que o Cruzeiro nem está jogando.
Mas, a amizade era muito maior que a rivalidade clubística e no clássico seguinte lá estávamos nós novamente, ao lado de um rádio.

Muitas vezes acompanhamos o campeonato brasileiro cada qual com sua tabela da revista Placar. Eu ficava perdido com os resultados de muitos jogos. Eles ouviam os resultados no rádio e me passavam. Coleção de reportagens sobre o Atlético ou sobre o Cruzeiro, eu e o E. pegávamos de revistas antigas. Se encontrasse alguma revista velha, principalmente a Placar, com alguma conquista de campeonato, levava para ele e vice versa. Alguns amigos achavam estranho quando eu estava com revista ou jornal com reportagem sobre o Atlético. Perguntavam desconfiados:
- Mas você não é cruzeirense?
Eu ria, informava que era para um amigo atleticano.
Também estranhavam o E. na mesma situação, com reportagens sobre o Cruzeiro.
Eu tinha recortes da primeira conquista internacional cruzeirense, a Taça Libertadores de 1976. O E. me ajudou a montar o caderno de recortes. Só que com as tantas mudanças que a família fez, de Formiga para Belo Horizonte e daí para Contagem, esse caderno sumiu.
Jogávamos futebol com a molecada da rua em Formiga e o E. se espelhava em Ortiz, o goleiro argentino do Atlético, à época, com bermuda longa (o tamanho normal hoje) e faixa no cabelo. E. era o goleiro do time e usava indumentária igual. Pegava um calção do irmão mais velho, deixava o cabelo crescer e usava faixa. Ortiz era realmente um grande goleiro, batia pênaltis também. Infelizmente, ele foi crucificado por causa dos dois jogos em que levou 4 gols do uruguaio Revetria. Revetria marcou os 3 gols da segunda partida (3x2) e mais um na terceira, quando o jogo ainda estava 1x0 para o Atlético, resultado que dava o título para o Atlético. Com o empate veio a prorrogação, o Cruzeiro marcou mais dois e foi campeão.

A excelente convivência com estes meus dois amigos atleticanos, que nunca discutiram futebol ofensivamente comigo, deixou-me sempre dissociado das zombarias ofensivas que envolvem as torcidas.


Daquela boa época de adolescente, ainda tenho o chaveirinho de Itu, que o dono da distribuidora de bebidas da esquina me deu. Ele era cruzeirense fanático.

O "chaveirinho" de Itu tem, na verdade, quase um palmo de altura.

A cidade de Itu é conhecida como a cidade onde tudo é grande.


Ortiz faleceu em 1995, aos 48 anos, vítima de cirrose (eu não sabia disso, mas hoje em dia, temos o Google, a enciclopédia virtual), onde é possível encontrar qualquer informação.

Ao lado, Ortiz, o goleiro do Atlético que mais influenciava a criançada, inclusive meu amigo E.P. (na foto, levando um dos gols de Revetria) Com seu calção enorme, sua vasta cabeleira, faixa e bonezinho, ele realmente chamava muita atenção. - Para ler mais sobre Ortiz, clique AQUI>


Triste observação: No clássico de domingo passado (13/09) morreram torcedores em briga de torcidas. É algo que nunca vou entender. Porque motivo saem brigando e matando em nome de times de futebol? Que diabos estão defendendo, afinal? 


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Surdos e os esportes olímpicos

O Parapan-americano foi um sucesso para os atletas deficientes do Brasil. Conquistamos mais que o dobro de Medalhas de Ouro do segundo colocado, o Canadá. Os atletas deficientes do Brasil estão de parabéns. Mostraram que é possível superar as barreiras das deficiências e participar ativamente de diversas modalidades esportivas. O futebol de 5 (cegos) ganhou a final contra a Argentina (2x1). O futebol dos cegos utiliza uma bola com guizo. Os goleiros não são cegos.

O Brasil conquistou medalhas em praticamente todas as modalidades. Mostrou um grande desempenho e bateu diversos recordes.
Mas, e os surdos? Porque eles não participam do Parapan ou das Paralimpíadas? Porque desde 1924 os surdos têm o seu próprio evento, as Surdolimpíadas. Mas, ter nosso próprio evento sem a carona das Olimpíadas não permite que as Surdolimpíadas tenham a projeção que as Paralimpíadas têm. As mídias quase nada divulgam das Surdolimpíadas. Não ter espaço midiático para o evento torna as Surdolimpíadas praticamente desconhecida. Atletas famosos nas piscinas, como Clodoaldo Silva e Daniel Dias, deficientes físicos, têm grande espaço midiático. Surdos se sobressaem justamente quando estão atuando junto com os ouvintes, caso da jogadora de vôlei Natália Martins, que atua profissionalmente no Brasília Vôlei. É a primeira atleta surda contratada profissionalmente no vôlei, que atua na Superliga Feminina e também na Seleção Brasileira. Ou seja, os surdos se destacam justamente por ser um diferencial no meio dos ouvintes e não por participarem de sua própria competição. Aqui a reportagem de 2014, com Natália Martins, quando ainda jogava pelo Praia Clube e foi convocada para a seleção.

O espaço midiático para as Surdolimpíadas existe, mas é pouco. A última Surdolimpíadas foi realizada em 2013, em Sófia, na Bulgária. O Brasil levou 19 atletas. Conquistou 1 medalha de prata e 3 de bronze, ficando em 37º lugar. Progrediu bastante em relação aos anos anteriores. Mas ainda estamos longe dos primeiros colocados. A Rússia conquistou 177 medalhas. Das medalhas que o Brasil trouxe, três medalhas (1 prata e 2 de bronze) foram conquistadas na natação e mais 1 de bronze no karatê. 

Em 2007 estive em diversos eventos desportivos dos surdos, junto com o presidente da CBDS (Confederação Brasileira Desportiva dos Surdos) à época. Foi quando ele me esclareceu os motivos de os surdos terem suas próprias competições. Tivemos bons debates relacionados ao tema. Eu era a favor de que os surdos participassem das Paralimpíadas ou tivessem o seu evento na mesma data e local. O Presidente da CBDS esclareceu que seguia a recomendação da Organização Mundial dos Surdos, mantendo a filiação das entidades de surdos descoladas dos Comitês Olímpicos. Assim, sem a filiação ao COB (Comitê Olímpico Brasileiro) e nem ao CPB (Comitê Paraolímpico Brasileiro), os surdos não podem participar dos jogos paraolímpicos. A CBDS também não recebe verbas governamentais. 

Para ver mais imagens das Surdolimpíadas de 2013, na Bulgária, clique AQUI (portal UOL).
Mais informações sobre as Surdolimpíadas, na Wikipédia (clique AQUI).


A próxima Surdolimpíadas será realizada em 2017, em Ankara, Turquia.

Continuo com a opinião de que os surdos deveriam sim, se filiar aos Comitês Olímpicos e participar das Paralimpíadas. Além da grande visibilidade que as Paralimpíadas têm, as verbas e patrocínios seriam fonte importantíssima para que muitos atletas surdos se profissionalizassem. Também seria motivacional para a prática esportiva. 



Atualizando: o termo Paralimpíadas passou a ser utilizado a pedido do Comitê Paralímpico Internacional. Dos países de língua portuguesa (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste), somente o Brasil utilizava o termo Paraolímpiadas. A mudança foi anunciada no ano passado. Leia mais AQUI.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Das vantagens de ser surdo...

Eu trabalhava na Secretaria Municipal de Educação, como digitador, era um dos cinco surdos que lá trabalhavam. Foi quando me tornei amigo do William, que não tinha perda total auditiva podendo, portanto, atender ao telefone. Ele conversava, muitas vezes normalmente com diversas pessoas. Mas, de costas e um pouco mais longe, se alguém o chamasse, ele não se voltava. Minha perda auditiva é bilateral de 100% e a dele era 60% em um ouvido e 40% no outro, mais ou menos. A nossa chefe, Dione, tinha um apreço especial por mim e gostava muito do William. Mas também era rigorosa. Um dia chegamos os dois juntos, um mais atrasado que o outro, quase correndo, na esperança de que a Dione ainda não tivesse chegado. Doce engano, ela já estava ao telefone, serviço de responsabilidade do William e a expressão era de muita irritação.
Ao terminar a ligação, ela se dirige ao William:
- William, você sabe que necessito de sua presença no setor no horário correto, principalmente para atender ao telefone! Então, é inadmissível que você chegue antes de 9 horas, pois muitas pessoas ligam pedindo informações neste horário. Sem contar os momentos que outros diretores ligam, solicitando informações. – o William tentou um “mas”, prontamente interrompido com a mão direita levantada – A sua presença no setor é justamente para suprir esta necessidade na parte da manhã. Espero que você tenha mais responsabilidade, Não faça mais isso, por favor!
Ela ainda falou por mais uns 2 minutos.
Sem poder questionar nada, o William concordou e me fitou, aguardando o momento em que a Dione fosse me repreender. Ela percebeu os olhares do William em minha direção e resolveu que eu também merecia uma reprimenda.
- Jairo, muitas vezes preciso que os relatórios estejam na minha mesa em...
- Precisa do quê? – é muita gente que esquece que sou 100% surdo e desanda a falar depressa demais!
- Relatórios! – falou mais devagar, mas mesmo assim eu não entendi – Re-la-tó-ri-os!
- Ah, os relatórios! – sorri
- Isso! Então... – com as interrupções ela perdeu o contexto do que estava falando e fez uma prolongada pausa. - ... é inadmissível que você chegue...
- É o quê? – sinceramente, inadmissível é uma palavra rara e de difícil leitura labial. A junção de “mis-sí”, é quase um simples sibilar.
- Inadmissível! – a Dione insistiu, ao invés de mudar o contexto para algo mais simples, como “é importante que...” – I-nad-mis-sí-vel!!
Repetiu mais duas vezes e desistiu:
- Jairo, procure não chegar mais atrasado.
E deu por finda a conversa, com o William se descabelando. Saímos os dois para a sala dos computadores, ele para digitar e eu para tirar relatórios.
- Ah, não acredito! A Dione me passa um sermão de meia hora e para você é só um “ Jairo, não chegue atrasado!”. – reclamou o William, imitando os trejeitos da chefe.
- Mas, se eu não escuto mesmo, como você quer que ela me passe um sabão se ela não sabe a Língua de Sinais? – na época ainda não existia a denominação Libras. – E ela ainda usa umas palavras difíceis pra complicar.
Como o William era bastante ativo junto aos funcionários na Secretaria e como eu era outro surdo que falava normalmente, muitos acreditavam que eu tinha surdez nas mesmas condições que ele.
Um dia a Supervisora nos chama à sala dela. Entramos receosos, já sabendo que, se ela nos chamava, era para reclamar de alguma coisa. Só aparecíamos na sala dela para entregar documentos e eu, para entregar relatórios com nome, idade e filiação dos alunos das escolas municipais e mesmo assim, era a recepcionista que nos atendia. Ela chama o William primeiro e eu aguardei, na antessala. Quase meia hora depois o William sai, a cara vermelha, com expressão irritadiça.
- Me xingou até, por causa do atendimento telefônico aos pais. Uma mãe reclamou!
A recepcionista diz que eu posso entrar. Sentado diante da Supervisora, aguardo enquanto ela termina uma conversação ao telefone e percebo que o movimento labial dela é horrível. Já sei que não entenderei nem metade do que ela falar.
- Você é o responsável pelos relatórios? – eu digo “ah?”, ela repete a pergunta e eu, entendendo, respondo:
- Sim.
- Bom, os relatórios precisam estar atualizados ao fim do semestre e...
- Sinto muito, não estou entendendo o que a senhora está falando.
- Como o William entende tudo e você não? – ela teve que repetir a frase, mas essa era uma pergunta que eu já esperava.
- O William tem perda auditiva leve, coisa de 50%. Eu tenho perda auditiva total, 100%. Ele escuta o que a senhora fala, eu não. Eu leio nos lábios.
Ela fica meio desconcertada. Fica me fitando, sem saber o que fazer. Pega um papel, rabisca algumas palavras. Eu ri comigo mesmo, pensando: “não é possível que ela vá escrever uma reprimenda de trinta linhas”. Devolve-me o papel e diz, sorrindo:
- Pode ir.
O William me aguardava e ficou mais irritado ainda, ao perceber que não demorei nem 10 minutos.
- Já?
- Ela me deu este papel.
Mostrei o papel onde estava escrito: “Preciso dos relatórios consolidados até 30/06”
O William só faltou arrancar os cabelos de tanta raiva.
- Só eu que levo ferro mesmo!

No meu trabalho atual, uma pessoa de outro setor chega e ao perceber que na sala estamos só eu e a colega L.A., sabendo que eu sou surdo, vai até a L. E dispara a falar, apontando para o ofício que trouxe.
- Preciso que faça o remanejamento dos valores entre estes códigos orçamentários. Repassar o valor de $$ para este outro código. Para o lançamento dos valores no sistema, não esquecer de... blábláblá....
L. ouve pacientemente e ao perceber que era serviço que eu fazia, disse:
- Ah, é o Jairo que faz este serviço.
Já me mostrando o ofício, diz:
- Você sabe o que tem que ser feito?
- Sim. – explico, praticamente o mesmo que a pessoa explicou para a L. – Remanejamento de valores entre os códigos apresentados, algo que faço constantemente.
Depois que a servidora do outro setor se vai, a L. fala comigo, no seu linguajar peculiar:
- Nossa, ela ficou falando na minha cabeça toda vida. Deu vontade de interromper e dizer que não estou entendendo p* nenhuma, porque esse serviço não é meu. – rimos – E quando te mostro o ofício, você traduz em uma frase que é a transferência do valor de um para outro código orçamentário!
Já a M.H., também do meu trabalho atual, recebe uma ligação de uma outra autarquia, responsável pela publicação de dados oficiais. Ela se vira para mim, e é possível ler nos lábios o que ela diz:
- Sim, o Jairo é o responsável pelas publicações. Ele está aqui do meu lado.
Alguns ‘uh, uh, uh” e novamente leio direto nos lábios dela:
- Não, não. Ele é surdo e não atende telefone. Pode falar comigo mesmo.
Pra quê? Ela ficou ouvindo por quase cinco minutos as reclamações do rapaz. Meneando a cabeça, me fita angustiada, como quem diz: “como para essa falazada?”
- Ah, não, Jairo. Você se esqueceu de colocar a autorização da despesa junto à última publicação que você enviou para lá.
- Foi mal, M.H. Eu, realmente esqueci. Mas, eu sei que só publicam se a autorização for junto. Foi uma falha momentânea.
- Pois é! O cara estava bravo, dizendo que não podia e tal, eu tive que aguentar, falando só “é, é”, para no fim, te passar o que na verdade é o mais importante: não enviar pedido de publicação sem a autorização.
Comecei a rir:
- Bem, como muitas vezes vocês ouvem por mim, tem estes momentos complicados também, não é? Principalmente ao telefone!!

Houve ainda outra vez, na Secretaria de Educação, que eu e o William saímos na hora do serviço para fazer inscrição em concurso público. Eram outros tempos, a internet na velocidade atual ainda era um sonho. O setor já tinha conexão discada. Ao voltarmos demos de cara com a Dione nos aguardando.
- Onde vocês estavam? – ela nos questiona, com as mãos na cintura. – Precisando de vocês dois e vocês não estavam aqui no prédio.
- Fomos fazer inscrição no concurso público. Avisamos o Marcão.
- William, quantas vezes eu já disse que a responsabilidade do setor depende de sua presença? A Secretária telefonou diversas vezes. Nós mantemos vocês aqui em vista da demanda do serviço. – eu lembro o quanto a Dione gostava da palavra “demanda”, inserida em tantos ofícios que digitei para ela – Você tem que entender como é prejudicial a Secretária ligar e ninguém do setor atender. Temos que cumprir prazos e os pedidos devem ser respondidos sem demora...
E falou ainda por mais uns cinco minutos. O William só meneando a cabeça, furibundo. Novamente ele acreditou que, pelo menos desta vez eu também levaria uma boa reprimenda. Fez questão de aguardar ao lado da mesa da Dione, quando ela me chamou. Como estávamos no setor a mais de um ano, eu tinha mais facilidade de compreender o que a Dione falava e ela sabia como conversar comigo, falando mais pausadamente.
Ela me encarou, a expressão séria, balançando as mãos, nervosa:
- Jairo, vocês não estavam aqui e a Secretária ligou, porque ela precisa dos relatórios da E.M. Mauríc...
- Qual relatório? – interrompi – O mensal ou o consolidado?
- O.. o..
- O mensal está pronto, só falta imprimir. O consolidado demora um pouco, mas em menos de meia hora eu consigo.
- O.. 0... é o consolidado que ela precisa, mas, vocês não devem sair na hora do serviço e...
- Melhor eu ir logo para a sala de informática, para preparar o relatório, né, Dione? Em menos de meia hora estará pronto.
E fui saindo.
O William veio atrás de mim.
- A Dione deve ter uma paixão secreta por você! – ele estava deveras irritado – Ela não consegue te chamar a atenção!!
- Você é que não consegue interromper a lenga lenga dela... – eu disse, rindo. – Companheiro, se ela está cobrando por um erro, a gente conserta o erro rapidinho. É a melhor forma de resolver o problema.
Nesse dia, o Willians realmente tentou arrancar os cabelos e só não o fez, porque seu cocuruto já aparentava uma carequinha.

Obs.: Os nomes foram trocados ou não são citados, por motivos óbvios. William é o mesmo amigo de um relato anterior (Decepção Amorosa)

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Dilma sancionou o novo Estatuto da Pessoa com Deficiência

A comunidade deficiente comemorou a sanção pela Presidente Dilma, no dia 6 de julho, do novo estatuto, que amplia direitos e concede maior cidadania aos deficientes.

A reportagem publicada  no Portal Brasil (clique AQUI para ler)

Para a comunidade surda, importante item relacionado à Educação:

CAPÍTULO IV
DO DIREITO À EDUCAÇÃO
......
IV - oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas;
......
§ 2o .........
I - os tradutores e intérpretes da Libras atuantes na educação básica devem, no mínimo, possuir ensino médio completo e certificado de proficiência na Libras;

........


O respeito à Libras como primeira língua do surdo e escolas bilingues, uma batalha que se travava há anos!
A qualidade dos intérpretes ainda pode melhorar, com a exigência de Curso Superior, mas, a exigência mínima de ensino médio completo já é um bom começo.

Na área de informação, legenda oculta ou janela com intérprete de Libras. 

CAPÍTULO II
DO ACESSO À INFORMAÇÃO E À COMUNICAÇÃO
Art. 63. .........
......
Art. 67.  Os serviços de radiodifusão de sons e imagens devem permitir o uso dos seguintes recursos, entre outros:
I - subtitulação por meio de legenda oculta;
II - janela com intérprete da Libras;
III - audiodescrição.
...............

Diversas outras conquistas constam do Estatuto. Para uma procura mais ampla, clique no link abaixo, para abrir a página da Lei e depois utilize Control+F para pesquisar palavras de seu interesse ou de sua área.

Os deficientes comemoraram esta conquista. O respeito à diferença, a inserção no mercado de trabalho, a cidadania do deficiente, são conquistas que levaram anos para serem efetivadas.


A Lei, em sua íntegra, pode ser lida clicando AQUI..

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Um caminhoneiro

Quando fui casar no civil, a moça da firma que fez o favor de telefonar para minha namorada, ao invés de dizer para me encontrar no cartório, mandou que  me encontrasse numa praça próxima. Eu saí do serviço e fui para o cartório. O encontro estava marcado para 17:00 h e já passava de 17:20 h. A Praça do Cartório, em Contagem, naqueles anos era um ponto de caminhoneiros. Então, pedi a um caminhoneiro que ligasse para mim. Era uma pessoa humilde, me encarou e perguntou:
- Ligar para você por que?
- É que eu não escuto e não tenho como usar o telefone.
- Pra falar com quem?
- Com minha namorada, que eu estou esperando aqui no cartório. Ela está atrasada.
Às vezes eu falo de uma forma muito natural, olhando nos olhos das pessoas, elas então compreendem que não estou zombando. Ele pegou o número do telefone e discou.
- Com quem eu devo falar e qual é o seu nome?
- Falar com Hilda. Meu nome é Jairo.
Naqueles bons tempos não havia o celular. A comunicação era única e exclusivamente por telefone fixo. Na rua, através dos orelhões, com ficha DDD.
- Ela atendeu. O que é para falar?
- Diga para ela que estou aqui na porta do cartório esperando! Pergunta se ela não vai vir mais não! - eu ri.
Eu consegui ler nos lábios do caminhoneiro, que tinha um porte físico avantajado, movimento labial bom e na minha imaginação, uma voz grossa e rouca:
- Dona Hilda, o moço aqui do meu lado, o Jairo, está esperando você aqui... nós estamos aqui na Praça do Cartório. Ele está perguntando porque você está demorando. Já é quase cinco e meia e o cartório fecha às seis. Isto, o moço aqui, o Jairo, que está perguntando... Tá bom.
Ele me fitou e disse:
- Ela falou para você esperar que ela já está vindo!
Me devolveu o papel com o número do telefone. Acrescentou:
- Ela disse que estava te esperando na outra praça; por isso que desencontrou e voltou para casa.
- Eu pensei que ela desistiu de casar comigo.
Ele deu uma gargalhada alegre, que eu até parecia “escutar”!
- Ela tá vindo. - reforçou, com uma expressão que tentava me tranquilizar.
Apertei-lhe a mão e agradeci efusivamente.
- Muito obrigado ao senhor. Me ajudou de verdade!
Não perguntei-lhe o nome e no momento em que escrevo isto reclamo da minha falha. Pessoa partícipe do meu viver, apenas uma vaga imagem, uma profissão; nada mais. Mas, é a imagem da solidariedade. De pessoas que não se importam de perder um tempinho para ajudar aqueles que não têm todos os sentidos e atributos físicos perfeitos. Minha então namorada chegou, fomos ao cartório, assinamos os papéis e nos casamos. E um caminhoneiro boa praça fez parte deste momento.

Publicado originalmente em 11/01/2011.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Um amor terminal

Percebo entre as contas de luz, telefone e cartão de crédito uma carta. Carta escrita a mão, com meu nome em destaque. Curioso, pego logo o envelope para ver o remetente. Embora tremida, a letra era caprichosa e bonita. Kátia M, Hospital Municipal. Que estranho! O endereço era do hospital, não da residência. Lembrei da moreninha Kátia, do amor quase infantil que nos envolveu. Abri o envelope e li a carta. Kátia explicava que sua doença já estava avançada e que seu estado era terminal. Informava que não tinha mais ninguém no mundo e que os familiares mais próximos faleceram alguns anos atrás. Lembrei os momentos tristes que passamos juntos, ela chorando a morte de uma tia. E nos anos seguintes a mesma doença levando a mãe e a irmã mais nova. Formamos e nos separamos, indo cada um para um lado. Na carta ela informava que até pouco tempo atrás ainda tinha forças para ir ao saguão do hospital assistir a tv. Um dia ela percebeu que o palestrante era eu e que ao final da palestra informava o telefone da minha assessoria. Ela anotou este telefone e com muito custo conseguiu ligar. Tudo que conseguiu com o assessor foi meu endereço para correspondência. Kátia lembrava que fomos namorados e pedia que eu fosse vê-la. Sabia que eu estava casado e tinha filhos; não queria causar nenhum problema matrimonial para mim, mas eu era a única pessoa que ela gostaria de ver, nestas circunstâncias. Eu ri, pois ela não sabia que eu estava separado há mais de três anos. Resolvi ligar para o hospital. Já era tarde e eu disse apenas que no sábado estaria lá para visitar a Kátia. A recepcionista anotou o meu nome e desdobrou-se em elogios: "estaremos honrados com sua presença"; "estamos ao seu inteiro dispor" e por aí vai. Sábado de manhã viajo para o interior, para a cidade onde Kátia estava internada. Com problemas no carro, só chego à noite, rebocado. Passo a noite no hotel e domingo de manhã vou ao Hospital Municipal. Vou direto ao quarto de Kátia, onde uma enfermeira arrumava a única cama.
- A paciente que estava internada aqui?
- Kátia?
- Sim! Onde ela está?
- Ela faleceu esta madrugada, senhor. - a enfermeira me encarou e me reconhecendo acrescentou de imediato - Sou a enfermeira Jucilene. Se o senhor desejar, posso levá-lo até o necrotério.
- Não! - respondi, quase chorando. - Não há necessidade. Diga-me como foi o dia dela ontem, por favor.
- O senhor está colhendo dados para suas palestras?
- Sim. - menti, recostado na cama limpa e arrumada, fitando a enfermeira.
- Ah, o senhor nem imagina a mudança de ânimo dela, ontem. Kátia acordou cedo, com o rosto brilhante, sorrindo e informando a quase todas as pessoas que entravam no quarto que ela estava para receber a visita de um antigo amor. Eu mesma lhe ministrei os remédios do dia, tomei-lhe o pulso e temperatura. O pulso estava mais acelerado que o normal, mas associei isto à empolgação dela com a visita do antigo amor. As enfermeiras não lhe deram muito crédito, mas ninguém disse nada, sabemos como são os doentes terminais quando criam estas ilusões. Ela pediu um lenço para cobrir o que restava dos cabelos. Mais tarde pediu um espelhinho e um batom. Passou o dia todo praticamente se arrumando.
Então a enfermeira percebeu meus olhos, minha face molhada. Minha expressão angustiada.
- O o o o.. senhor... Ah, meu Deus, não!... o senhor era quem ela esperava?
- Sim.  Meu carro quebrou e só cheguei à noite, infelizmente.
- Ah, não! - a enfermeira retorcia as mãos, contendo o choro.
- Entregue meu cartão para a direção do hospital e informe que todas as despesas serão pagas; que ela tenha um enterro digno. Estarei presente, mas afastado o suficiente para não ser notado. Adeus, Jucilene, não nos veremos mais.
- Adeus, senhor!

Esta crônica eu publiquei originalmente em 07/07/2011

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Decepção amorosa

No mês de maio publiquei diversos posts sobre mães em homenagem ao Dia das Mães.
Agora é junho, posts de amores homenageando o Dia dos Namorados.
Esse conto (fatos reais) foi publicado originalmente em 04/11/2011.

- William, porque você terminou com a Patrícia?
- Não dava mesmo para continuar...
- Mas, ela foi a única menina que eu percebi que você realmente amou. Não foi um daqueles seus casos interesseiros, de paquerar, ganhar a menina e depois largar.
- Porque você diz isso?
- Somos amigos há anos, William. Sei muito bem quando você trata uma menina de forma diferente. Ainda mais a Patrícia, que era presbiteriana, séria pra caramba.
- Confesso que realmente, dela, eu gostei muito e esperava muito mais...
- Eu sei e até achava engraçado, você indo namorar todo arrumadinho, com roupa social.
- E você nem imagina, Jairo, que ela queria porque queria, me ensinar a comer com estilo.
- Estilo?
- Ela queria que eu usasse garfo e faca, colher, guardanapo. Uma vez eu até procurei aprender, mas você sabe, eu detesto este negócio de comer com estilo.
- Que estilo, meu amigo? Etiqueta.
- Que seja. Já bastava eu ter que ir namorar de roupa social. E nem pensar em tomar uma cervejinha. A única coisa boa é que de vez em quando ela servia um vinho dos bons.
- Essa é boa. E o que aconteceu para você se decepcionar com ela?
- Vou te contar... foi uma coisa muito estranha, porque foi na Igreja dela.
- O que a igreja tem a ver com isso, William.
- Ela conhecia o pastor da Igreja do bairro e sempre passava lá à tarde, para trocar umas ideias com o pastor. Ela “ajudava ele” nos cultos. Para você entender melhor, lembra que eu já te falei de um tal de Olavo?
- Sim, o ex-dela. Ex-noivo, se não me engano. Você me contou que um dia, quando foi buscá-la na faculdade, ela estava te esperando no carro dele. Dentro do carro dele. Você ficou uma fera, reclamou muito, mas ela disse que eram só amigos e que ele a ajudava com trabalhos da faculdade.
- Isso mesmo. Então, você vai entender... Quando chegamos na igreja, à tardinha, ela me mostrou as coisas da igreja e também uma urna. Eu perguntei para ela se a urna era para dar esmola. Ela reclamou, dizendo que não era esmola que falava e sim dízimo. E que aquela urna não era para isso, era para os pedidos de oração. Pegou um envelope, me mostrou e disse. Escreva o seu pedido de oração e coloque na urna. Eu disse que não tinha nada para pedir. Falei para ela escrever sem problemas, eu não tinha nada para pedir mesmo e nem sabia como escrever pedido de oração. Ela me explicou como era, pedia oração sem colocar o nome de ninguém, o que valia era o pedido. Ela insistiu para eu escrever. Ela escreveu alguma coisa rapidamente, colocou no envelope, depois na urna e ficou esperando que eu escrevesse algo. Enquanto eu estava pensando no que escrever, o pastor chamou a Patrícia. Eles sumiram lá para o interior da igreja e eu fiquei olhando o envelope dela na urna. Era uma urna transparente e eu percebi que a tampa era só de pressão.
- Meu amigo!!! Não me diga que você...
- Ah, Jairo, eu fiquei curioso de saber o que ela escreveu e a tampa da urna era fácil de levantar... abri a urna, peguei o envelope dela, joguei o meu lá dentro e tampei a urna de novo. Se a Patrícia voltasse era só jogar o envelope dela na urna, como se fosse o meu.
- Bom, o mal já estava feito... o que ela escreveu?
- Você não vai acreditar... ela pedia orações para os pais. E pedia que o ex-noivo voltasse, que eles reatassem o noivado, casassem e fossem felizes.
- PQP! Você tá de brincadeira!
- Eu não podia ficar com o papel, porque ela estava voltando junto com o pastor e eu coloquei o envelope de volta na urna. Mas, a decepção que eu senti ao ler aquilo, Jairo! Fiquei com vontade de xingar a Patrícia, mandar ela para... mas o pastor veio junto, me cumprimentou educadamente, desejou que eu comparecesse no culto daquela noite.
- Você tá falando sério, William? Ela escreveu isso mesmo? Não era o envelope de outra pessoa?
- Jairo, não tem como eu esquecer o que eu li. E não tem como ser de outra pessoa... eu te disse que a urna era transparente... peguei o envelope DELA, com a letra DELA.
- Por essa eu não esperava... não mesmo!
- Daí em diante, quando ela me ligava eu dizia que estava ocupado. E uma semana depois, após eu recusar encontrá-la mais de cinco vezes, terminamos tudo por telefone mesmo.
- Tenho que concordar com você... foi a melhor coisa a fazer mesmo. Mas, eu não esperava isso da Patrícia! Parecia ser uma garota cem por cento! E eu sei o quanto você foi apaixonado por ela.
- E o quanto me magoei com isso. Tanto que não quis saber de namorar sério mais. Ela estava me usando para fazer ciúmes no ex-noivo. O tempo todo.
- Você já se encontrou com ela depois disso?
- Não. Se encontrar, vou perguntar: Deus já te ajudou a casar com o seu ex?
Nós dois rimos e fomos tomar uma cerveja.

"Saudade é solidão acompanhada, 
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas o amado já..." Pablo Neruda

Os nomes foram alterados por motivos óbvios.
Meu amigo “William” casou-se anos depois e, atualmente, é gerente de banco aqui em BH.