domingo, 29 de janeiro de 2017

Meus tempos de jornaleiro - O Lavador de Carros

Meu trabalho na banca de revistas era complicado; eu tinha que ler nos lábios das pessoas o nome da revista solicitada. Dificilmente eu não entendia, por um motivo muito simples: sabendo o nome de todas as revistas e jornais que eu tinha à venda, era fácil comprrender o que estavam pedindo. Já relatei que o marinheiro Cláudio se tornou um bom amigo e me auxiliava de vez em quando. Outro que aprendeu a conversar comigo foi o lavador de carros, que lavava os carros dos associados do clube próximo à banca. O nome dele era Ricardo. Eu vendia cigarro "picado" (expressão para venda de cada um dos 20 cigarros de um maço) e o Ricardo pedia um, dois, cinco, dez cigarros por dia. Eu ficava no prejuízo e então eu combinei com ele:
- Ricardo, não posso lhe dar cigarros sem cobrar. Vou lhe dar dois por dia, mas o resto você paga, certo?
Ele riu e concordou. Pedia um cigarro de manhã e um de tarde. Eu lhe dava muitas gorjetas, pois ele me ajudava bastante. Buscava almoço, quando eu não levava marmita. Telefonava para mim, quando o jornal não era entregue (apesar do pouco estudo, ele era esperto, conversava ao telefone com segurança, entendendo o que eu solicitava). Algumas vezes eu lhe dava cigarros, outras, dinheiro mesmo. Eu preferia lhe dar cigarros, pois sabia que muitas vezes o dinheiro que ele pedia era para beber. Ele bebia muito e o mais triste era quando ele chegava de manhã, bebâdo, cambaleando. Muitas vezes eu dizia para ele:
- Ricardo, ninguém vai lhe entregar chave de carro hoje. Você bebeu muito!! Melhor você voltar mais tarde. - eu lhe dava um cigarro, ele ia embora e voltava mais tarde, um pouco melhor.
Ele sumiu uns tempos e eu comentei com o Cláudio:
- Tem quase um mês que não vejo o Ricardo.
- O Sérgio (filho de um morador local) disse que ele foi atropelado.
A família do Sérgio ajudava bastante o Ricardo. Davam alimento, roupas e permitiam que ele pegasse água no quintal da casa deles para lavar os carros, para evitar ficar pegando água no clube direto.
Dias depois o Ricardo apareceu, dizendo que ia ganhar um bom dinheiro por causa do atropelamento. Conversando ali na banca, eu, ele e o Cláudio, eu pedi para ver o Boletim de Ocorrência. Depois que ele se foi eu disse para o Cláudio:
- Infelizmente ele não vai ganhar nada!
- Porque não?
- No BO estava escrito "a vítima apresentava sintomas de embriaguez". Neste caso fica muito difícil conseguir indenização.
Realmente, ele nada ganhou. Continuou ali, lavando carros. Continuava aparecendo bêbado em alguns dias, quando era um bocado difícil manter a paciência com ele. Nestes dias, os associados não deixavam ele lavar carros e ele ficava sentado próximo à banca. Às vezes conversávamos amenidades. Ele morava na favela ali por perto. Morava sozinho. Sumia alguns dias e depois aparecia alegre, contando que trabalhou de ajudante de pedreiro e ganhou uma boa grana. Eu e o Cláudio até sugerimos que ele deveria trabalhar como ajudante de pedreiro com carteira assinada, na construção civil. Mas, embora ele tenha tentado, a bebida era um problema sério. Ele acabava ficando apenas 30 ou 45 dias trabalhando fixo.
Uma vez alguns pivetes pararam diante da banca e ameaçaram pegar os jornais. Eu fiquei de pé e os encarei (a banca está acima do nível do chão e quando eu ficava de pé, parecia ser mais alto do que sou). Mesmo assim eles não desistiram e começaram a socar a banca pela parte de trás. Eu "senti" o barulho, saí da banca e disse:
- Podem esperar! Vou chamar o Ricardo; ele mora lá no morro também e é meu amigo.
Era um blefe, pois o Ricardo era pacífico. Porém, eles não arriscaram e não mexeram mais comigo.
O Ricardo sumiu novamente e o Cláudio apareceu com o semblante sério:
- Você sabe do Ricardo?
- Não, ele sumiu, já tem muitos dias! Que aconteceu?
- Ele morreu! O Sérgio me contou agora mesmo!
- Que coisa! O que aconteceu?
- Parece que foi problema com a bebida mesmo. Ele morreu no barraco dele, não tinha marcas de violência. O pessoal do Sérgio que foi lá, trataram do enterro dele.
Fiquei muito triste; ele era novo, tinha trinta e poucos anos. Mas, a morte não escolhe idade. Morreu lá no barraco dele, sozinho, bebendo. Mais uma das pessoas que a sociedade não consegue absorver, tornar cidadão.

Publicado originalmente em 10/04/2011.

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