terça-feira, 11 de novembro de 2014

As diferentes Identidades Surdas, assunto sempre atual

Este texto foi publicado originalmente em 2010, mas é bastante atual em vista do aumento da inclusão da comunidade surda em programas da sociedade brasileira, como o Enem, Faculdades e Cursos Técnicos.

O que une a maioria dos surdos não é a surdez e sim sua identidade surda. São diversas identidades diferentes, grupos de surdos diferentes. Os estudiosos da cultura surda citam diversas identidades de surdos, não somente as mais comuns, que são o surdo e o surdo oralizado.
Importante ressaltar que surdo oralizado não é o surdo como eu, que fala normal, é 100% surdo e sim o surdo que nasceu surdo e aprendeu a falar (e a ler nos lábios) através do oralismo, sem ter contato com a língua de sinais (Libras).

Para entender o que é oralismo
(Clique AQUI)
São diversas identidades surdas, sendo a mais comum a Identidade Surda, a Identidade Surda Híbrida e a Identidade Surda de Transição. Em sua maioria, os surdos têm comunidades distintas, principalmente os surdos oralizados e os surdos que usam Libras.

Para um melhor entendimento do que são as Identidades Surdas clique no link para ler sobre As Identidades Surdas (Identidades Surdas (Gladis Perlin)).

O triste em relação às diversidades dos surdos é que alguns não aceitam outros surdos. Alguns surdos oralizados não aceitam surdos que usam a Libras. E alguns surdos que usam Libras não aceitam alguns oralizados. Eu convivo bem com todas estas identidades surdas. Minha identidade surda é a Híbrida, surdos que nascem ouvintes e posteriormente, por motivo de doença ou acidentes se tornam surdos (no meu caso, por causa de meningite aos 12 anos e meio). Esta é a identidade que mais pacificamente convive com todas as outras. E que também são chamados erroneamente de surdos oralizados, porque falam, leem os lábios e escrevem normalmente em português.
Os surdos oralizados, da Identidade Surda de Transição nem sempre passam do mundo auditivo para o visual. São surdos que se orgulham de seguir todos os princípios dos ouvintes e que utilizam o máximo de tecnologia que possam torná-los ouvintes (IC (implante coclear), AASI (aparelho auditivo)) e rejeitam a Libras.
É importante ressaltar que em todas as identidades há exceções. Conheço surdos oralizados que não utilizam Libras, mas que convivem em harmonia com surdos que utilizam. E conheço diversos surdos da Identidade Híbrida que detestam Libras e não aceitam este método de comunicação. Porém, os textos não vêm com um "a maioria" e eu não vou ficar retificando que nem todos os surdos de uma identidade são estritamente como especificados.
Entre tantas polêmicas há ainda sobre a denominação deficiente auditivo e surdo. Os surdos da Identidade Surda preferem ser chamados de surdos. Eu sou indiferente a isto, para mim, tanto faz surdo como deficiente auditivo. Não considero deficiente auditivo um termo pejorativo. Cientificamente eu sou surdo e alguns colegas meus, surdos que usam Libras, são na verdade, deficientes auditivos, porque eles têm algum grau de audição e eu não. Eu acho que este tipo de discussão não acrescenta nada à cultura surda. A denominação não é o que interessa. Ser chamado de surdo ou deficiente auditivo não vai modificar nada no meu viver. Como eu disse, há exceções para todos os casos. Se há oralizados intransigentes com a Libras, também há surdos que ironizam os surdos que utilizam a expressão deficiente auditivo. Tanto que criaram as iniciais DA, forma zombeteira para Deficiente Auditivo.

Eu já fiz palestras no Dia dos Surdos e utilizei a expressão deficiente auditivo. Apesar de que, em Libras eu utilizei o sinal de surdo. Eu falo e faço os sinais ao mesmo tempo. Qual não foi minha surpresa quando no outro dia um colega surdo me cumprimentou rindo:
- "Você DA" - em Libras, o sinal de "você" e as letras DA, usando o alfabeto manual.
Não entendi de primeira, devido ao contexto da frase em português "Você da" e perguntei o que? Ele repetiu, e percebendo que eu não estava entendendo escreveu o significado de DA, "Você Deficiente Auditivo". O riso era de deboche. Mas, é o que ocorre com a comunidade surda. Como eu sou surdo e falo normal, como eu falo português e Libras fluentemente, fui convidado para a palestra e ele não. O que ele faz? Procura desmerecer minha participação nas festividades do Dia do Surdo porque ele me conhecia e sabia que eu falava muito deficiente auditivo e não surdo (eu uso as duas expressões sem traumas). Apesar de ficar muito chateado com a ironia, respondi sorrindo:
- Eu surdo profundo. Escuto nada, nada. Zero. Eu DA não. Você escuta pouquinho? Você DA. - em Libras e nem precisa da tradução em português porque dá para entender.
Apesar de estar sorrindo, meu olhar era sério e ele percebeu. É uma característica muito boa de nós surdos, a capacidade de interpretar as expressões faciais. Ele riu descontraidamente e fez o sinal de "brincadeira".
Mas, são estes pequenos entreveros entre surdos que tornam a comunidade surda uma das mais desunidas. Minha palestra foi pela inclusão dos surdos no trabalho, nas escolas e nas faculdades (na época desta palestra (2004), ainda não era tão comum como hoje). Também falei da necessidade de intérpretes de Libras profissionais em órgãos públicos, hospitais, consultórios. E o que o meu colega surdo vem questionar comigo? Eu ter falado (embora em Libras eu tenha feito o sinal de "surdo") algumas vezes "deficiente auditivo".
Os surdos oralizados, infelizmente, em sua maioria não aceitam a Libras e não aceitam os surdos que se expressam mal em português. Consideram a Libras um retrocesso, um estereótipo do surdo ignorante. Têm um preconceito muito grande em relação aos surdos não oralizados. Esquecem que nem todos tiveram a oportunidade deles, a estrutura familiar e as condições para aprenderem o oralismo. Ora, um surdo pobre, com pais que mal sabem ler e escrever, dificilmente terá oportunidade de aprender português corretamente e de praticar oralismo. A influência familiar para o aprendizado do português e oralismo é muito importante. Porque é ali, desde a infância que o surdo oralizado vai aprender a escrever corretamente, principalmente com a mãe corrigindo todas as vezes que ele escrever ou pronunciar uma palavra errada.
Esta questão se reflete também nos textos. Um surdo oralizado, um surdo como eu (híbrido), tem preferência por traduções em texto e não Libras. Se for uma entrevista, um filme, novela ou jornal, o texto é muito mais prático que a Libras. Mas, diferentemente dos surdos oralizados, numa palestra em auditório eu solicito o serviço de um intérprete. O oralizado não; ele prefere ler diretamente nos lábios do palestrante ou solicitar um intérprete orofacial. Há diferenças também em relação ao intérprete. Eu prefiro o intérprete que fala ao mesmo tempo em que traduz em Libras. Porque eu vou complementando com uma e outra língua. O que não pego em Libras, leio nos lábios do intérprete e vice-versa.
Quando digo que a comunidade surda é a mais desunida, dou como exemplo eleições de deficientes. São eleitos, com votos maciços de sua própria comunidade, cegos e cadeirantes, mas não temos surdos eleitos (aqui em Belo Horizonte).
Muitas vezes, em discussões pela net, eu e alguns outros surdos tentamos apaziguar os ânimos exaltados dos que apoiam e dos que odeiam Libras. Sempre repetimos que "somos todos surdos, irmanados na mesma deficiência! Não tem porque ficarmos nos agredindo!".
Esta sim, deve ser a luta dos surdos, paz e união entre todas as diversas Identidades Surdas.

O que torna as diferentes identidades surdas desunidas é tão somente a barreira da comunicação. A mesma que muitas vezes exclui os surdos (quase todos)  da convivência harmoniosa com os ouvintes. Um surdo oralizado e um surdo que só entende Libras não conseguem vencer a barreira da comunicação. Normalmente, um se irrita com o outro.
Turma da Mônica com
histórias inclusivas
Este problema não se aplica às demais deficiências. Há diferenças entre os cegos, os cadeirantes, os deficientes físicos, deficientes mentais, etc. Cegos que utilizam braile e cegos que, sabem braile, mas preferem ouvir o texto. Todos os demais deficientes têm um grau de deficiência, da mesma forma que os surdos. Mas, a comunicação entre eles é facilitada, não há barreiras. A desunião dos surdos envolve muitos problemas e a impaciência é um dos maiores. Surdos oralizados que tentam conversar com surdos que só utilizam Libras se irritam, quando não entendem e não são entendidos. O oralizado ainda tenta escrever, mas o surdo que só usa Libras não entende o português formal. É muito complicado. Surdos oralizados lutam mais por melhorias em seu viver, solicitando legendas, textos, avisos visuais ou luminosos. Os surdos que não têm interesse nestes quesitos lutam por escolas não inclusivas, por intérpretes de Libras em todos os ambientes, por benefícios governamentais mais abrangentes. Devido justamente às características e causas da surdez, um grupo de surdos luta pela inclusão da legenda em todos os programas televisivos e outro grupo luta pela exibição do intérprete de Libras. Eu concordo com ambas as lutas. É, realmente, uma característica muito positiva da Identidade Surda Híbrida. A capacidade de conviver bem com todas as outras identidades. Minha convivência com todos os diferentes tipos de surdos proporcionou conhecimento suficiente para respeitar e colaborar com todos. Colaborar com a luta dos grupos de surdos, suas diferenças. Fico em desacordo com algumas ideias, principalmente as que procuram excluir os próprios surdos, só porque suas identidades (e costumes) são bastante diferentes, mas, na maior parte, incentivo todas lutas.
Como eu já disse, a maior luta é pela paz e união entre todas as diversas Identidades Surdas.