terça-feira, 23 de novembro de 2010

Meus tempos de jornaleiro (1)

Fui proprietário de uma banca de revistas durante 5 anos. Porém, sozinho, o trabalho de jornaleiro é super cansativo. Eu mesmo ia nas distribuidoras e agências dos jornais, para efetuar os pagamentos, devolver as revistas que encalhavam e pegar as novas. De segunda a sexta, todas as manhãs, eu ia nas distribuidoras e nas agências dos jornais. Mas, sábados e domingos eu também trabalhava na parte da manhã, porque eram os dias de maior venda. Minha banca ficava próxima a um clube e, naqueles tempos, domingo era o dia de melhor venda dos jornais, sem contar que os jornais de domingo também custavam mais (é assim até hoje). Almoçava ali na banca mesmo, trazia marmita em caixa térmica (isopor). Água e banheiro, no clube. O porteiro da manhã ficou amigo, principalmente porque no princípio, minha esposa trabalhou muitos dias comigo. O da tarde ficou amigo também, menos; até que um dia eu defendi o filho dele, que lavava carros dos sócios do clube, de uns moleques da vila, que o agrediram. O mais complicado eram os porteiros que pegavam o terceiro turno, a partir das 17 horas. Nesta hora eu estava indo embora e, portanto, não conseguia enturmar com eles. Um dos trabalhadores do clube, serviços gerais, que ficou meu amigo era o Nivaldir, gay assumido. Ele me contava o caso dele com o namorado, que não foi morar junto por causa do pai, que era viúvo e ele não teve coragem de deixar sozinho. Ele me ajudava bastante. O lavador de carros, o Ricardo, que morava na vila, também me ajudava muito. Eles buscavam a água para mim, evitando que eu mesmo fosse no clube. Às vezes eu solicitava que comprassem algum lanche na padaria (longe, tinha que descer o morro), ou o cigarro que eu vendia picado. Esse longo preâmbulo é só para eu contar uma história de preconceito, um preconceito estranho...
Como eu disse, os porteiros do terceiro turno só me viam fechar a banca e eu passava ali no clube, antes de ir embora, para beber água ou usar o banheiro. Um porteiro deste turno; eu nunca entendi porque, não gostou de mim. Fazia uma cara feia quando eu entrava no clube para beber água ou usar o banheiro. Será que ele se sentia dono do clube? E olhe que eu, nunca, nunca mesmo, deixava de pedir, com toda educação:
- Eu poderia usar o banheiro, por favor?
- O senhor permite que eu encha minha garrafa de água, por favor?
Isto, com todos os porteiros, independente se fossem ou não amigos, nunca deixava de pedir por favor.
Mas, este porteiro do terceiro turno fazia uma expressão de muita má vontade. E surdo lê muito bem as expressões faciais. Como eu já estava indo embora, a maioria das vezes eu solicitava:
- Posso beber água, por favor?
Ele fazia aquela expressão de quem não gostou, mas deixava eu entrar. Até que um dia, estava indo embora e parei na portaria do clube e solicitei:
- O senhor me dá licença para eu beber água, por favor?
Ele sabia que eu era surdo, pois falou fazendo o gesto de negativo:
- Acabou a água!
Eu entendi de primeira, mas solicitei também:
- Tudo bem... mas eu poderia usar o banheiro? Desde meio-dia não vou ao banheiro!
Com muita má vontade ele aquiesceu e eu entrei. O banheiro e o bebedouro ficavam logo à esquerda da portaria. Entrei no banheiro para aliviar (era realmente um martírio ficar tantas horas sem ir ao banheiro, mas eu tinha muito receio de deixar a banca sem ninguém vigiando, pois havia uns moleques que furtavam). Qual não foi minha surpresa, ao sair do banheiro, ver um dos sócios do clube bebendo água tranquilamente no bebedouro. Puxa vida, doeu! Passei pelo porteiro só o encarando, não disse o costumerio "obrigado"; minha expressão era de rancor mesmo.
No outro dia conto para o Nivaldir:
- Nivaldir, você sabe que um porteiro me negou água?
- Que isso, Jairo? Tá brincando? O Fininho?
- Não, o Fininho é gente boa. Um porteiro do terceiro turno, forte, de óculos.
- Ah, sei, qual é. Como assim, ele te negou água?
Contei o ocorrido no dia anterior. Que tive o maior espanto quando ele disse que a água acabou e eu vi os sócios bebendo água normalmente.
- Não acredito! Mas, pode deixar, Jairo, que isso não fica assim!
- Calma, Nivaldir. Talvez a água acabou mesmo e ele não sabia que já tinha voltado.
O Nivaldir riu:
- Que a água acabou daonde? O clube tem mais de três caixas-d'água. Desde que tô aqui, mesmo quando acaba a água da rua, o clube não fica sem água.
Naquele mesmo dia, soube quão valioso é um amigo. Quando fui solicitar ao mesmo porteiro, licença para beber água, ele mudou completamente o modo de agir. A forma como ele falou, que eu podia ir beber, sem expressão nenhuma de má vontade, com uma cortesia que nunca tinha visto e até mesmo um sorriso, me deixaram até mesmo constrangido.
No outro dia, conto ao Nivaldir que o porteiro mudou da água para o vinho. Então, fiquei sabendo que o meu amigo procurou o encarregado (responsável pelos porteiros e zeladores) e contou sobre mim (surdo, trabalhava na banca, pedia aos porteiros água e permissão de uso do banheiro; mesmo assim, poucas vezes ao dia) e que o porteiro do terceiro turno, sem qualquer motivo, estava me negando água. O Nivaldir me conta que na hora o encarregado não falou nada. Mas, depois ele ficou sabendo que o encarregado chamou o porteiro e deu a maior bronca. Os outros funcionários contaram para o Nivaldir que o encarregado disse que se o porteiro negasse água para "o rapaz" mais uma vez só, ele podia dar adeus ao emprego.
Agradeci ao Nivaldir, embora ele dissesse que eu não tinha nada que agradecer, era um absurdo alguém negar água, principalmente que a água nem era dele. 
Mas, eu agradeci e agradecerei sempre. As boas lembranças da época em que trabalhei na banca, são proporcionadas por estes amigos, simples e humildes, mas que respeitam e valorizam todos, deficientes ou não, diferentes ou não...

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