terça-feira, 21 de julho de 2015

Das vantagens de ser surdo...

Eu trabalhava na Secretaria Municipal de Educação, como digitador, era um dos cinco surdos que lá trabalhavam. Foi quando me tornei amigo do William, que não tinha perda total auditiva podendo, portanto, atender ao telefone. Ele conversava, muitas vezes normalmente com diversas pessoas. Mas, de costas e um pouco mais longe, se alguém o chamasse, ele não se voltava. Minha perda auditiva é bilateral de 100% e a dele era 60% em um ouvido e 40% no outro, mais ou menos. A nossa chefe, Dione, tinha um apreço especial por mim e gostava muito do William. Mas também era rigorosa. Um dia chegamos os dois juntos, um mais atrasado que o outro, quase correndo, na esperança de que a Dione ainda não tivesse chegado. Doce engano, ela já estava ao telefone, serviço de responsabilidade do William e a expressão era de muita irritação.
Ao terminar a ligação, ela se dirige ao William:
- William, você sabe que necessito de sua presença no setor no horário correto, principalmente para atender ao telefone! Então, é inadmissível que você chegue antes de 9 horas, pois muitas pessoas ligam pedindo informações neste horário. Sem contar os momentos que outros diretores ligam, solicitando informações. – o William tentou um “mas”, prontamente interrompido com a mão direita levantada – A sua presença no setor é justamente para suprir esta necessidade na parte da manhã. Espero que você tenha mais responsabilidade, Não faça mais isso, por favor!
Ela ainda falou por mais uns 2 minutos.
Sem poder questionar nada, o William concordou e me fitou, aguardando o momento em que a Dione fosse me repreender. Ela percebeu os olhares do William em minha direção e resolveu que eu também merecia uma reprimenda.
- Jairo, muitas vezes preciso que os relatórios estejam na minha mesa em...
- Precisa do quê? – é muita gente que esquece que sou 100% surdo e desanda a falar depressa demais!
- Relatórios! – falou mais devagar, mas mesmo assim eu não entendi – Re-la-tó-ri-os!
- Ah, os relatórios! – sorri
- Isso! Então... – com as interrupções ela perdeu o contexto do que estava falando e fez uma prolongada pausa. - ... é inadmissível que você chegue...
- É o quê? – sinceramente, inadmissível é uma palavra rara e de difícil leitura labial. A junção de “mis-sí”, é quase um simples sibilar.
- Inadmissível! – a Dione insistiu, ao invés de mudar o contexto para algo mais simples, como “é importante que...” – I-nad-mis-sí-vel!!
Repetiu mais duas vezes e desistiu:
- Jairo, procure não chegar mais atrasado.
E deu por finda a conversa, com o William se descabelando. Saímos os dois para a sala dos computadores, ele para digitar e eu para tirar relatórios.
- Ah, não acredito! A Dione me passa um sermão de meia hora e para você é só um “ Jairo, não chegue atrasado!”. – reclamou o William, imitando os trejeitos da chefe.
- Mas, se eu não escuto mesmo, como você quer que ela me passe um sabão se ela não sabe a Língua de Sinais? – na época ainda não existia a denominação Libras. – E ela ainda usa umas palavras difíceis pra complicar.
Como o William era bastante ativo junto aos funcionários na Secretaria e como eu era outro surdo que falava normalmente, muitos acreditavam que eu tinha surdez nas mesmas condições que ele.
Um dia a Supervisora nos chama à sala dela. Entramos receosos, já sabendo que, se ela nos chamava, era para reclamar de alguma coisa. Só aparecíamos na sala dela para entregar documentos e eu, para entregar relatórios com nome, idade e filiação dos alunos das escolas municipais e mesmo assim, era a recepcionista que nos atendia. Ela chama o William primeiro e eu aguardei, na antessala. Quase meia hora depois o William sai, a cara vermelha, com expressão irritadiça.
- Me xingou até, por causa do atendimento telefônico aos pais. Uma mãe reclamou!
A recepcionista diz que eu posso entrar. Sentado diante da Supervisora, aguardo enquanto ela termina uma conversação ao telefone e percebo que o movimento labial dela é horrível. Já sei que não entenderei nem metade do que ela falar.
- Você é o responsável pelos relatórios? – eu digo “ah?”, ela repete a pergunta e eu, entendendo, respondo:
- Sim.
- Bom, os relatórios precisam estar atualizados ao fim do semestre e...
- Sinto muito, não estou entendendo o que a senhora está falando.
- Como o William entende tudo e você não? – ela teve que repetir a frase, mas essa era uma pergunta que eu já esperava.
- O William tem perda auditiva leve, coisa de 50%. Eu tenho perda auditiva total, 100%. Ele escuta o que a senhora fala, eu não. Eu leio nos lábios.
Ela fica meio desconcertada. Fica me fitando, sem saber o que fazer. Pega um papel, rabisca algumas palavras. Eu ri comigo mesmo, pensando: “não é possível que ela vá escrever uma reprimenda de trinta linhas”. Devolve-me o papel e diz, sorrindo:
- Pode ir.
O William me aguardava e ficou mais irritado ainda, ao perceber que não demorei nem 10 minutos.
- Já?
- Ela me deu este papel.
Mostrei o papel onde estava escrito: “Preciso dos relatórios consolidados até 30/06”
O William só faltou arrancar os cabelos de tanta raiva.
- Só eu que levo ferro mesmo!

No meu trabalho atual, uma pessoa de outro setor chega e ao perceber que na sala estamos só eu e a colega L.A., sabendo que eu sou surdo, vai até a L. E dispara a falar, apontando para o ofício que trouxe.
- Preciso que faça o remanejamento dos valores entre estes códigos orçamentários. Repassar o valor de $$ para este outro código. Para o lançamento dos valores no sistema, não esquecer de... blábláblá....
L. ouve pacientemente e ao perceber que era serviço que eu fazia, disse:
- Ah, é o Jairo que faz este serviço.
Já me mostrando o ofício, diz:
- Você sabe o que tem que ser feito?
- Sim. – explico, praticamente o mesmo que a pessoa explicou para a L. – Remanejamento de valores entre os códigos apresentados, algo que faço constantemente.
Depois que a servidora do outro setor se vai, a L. fala comigo, no seu linguajar peculiar:
- Nossa, ela ficou falando na minha cabeça toda vida. Deu vontade de interromper e dizer que não estou entendendo p* nenhuma, porque esse serviço não é meu. – rimos – E quando te mostro o ofício, você traduz em uma frase que é a transferência do valor de um para outro código orçamentário!
Já a M.H., também do meu trabalho atual, recebe uma ligação de uma outra autarquia, responsável pela publicação de dados oficiais. Ela se vira para mim, e é possível ler nos lábios o que ela diz:
- Sim, o Jairo é o responsável pelas publicações. Ele está aqui do meu lado.
Alguns ‘uh, uh, uh” e novamente leio direto nos lábios dela:
- Não, não. Ele é surdo e não atende telefone. Pode falar comigo mesmo.
Pra quê? Ela ficou ouvindo por quase cinco minutos as reclamações do rapaz. Meneando a cabeça, me fita angustiada, como quem diz: “como para essa falazada?”
- Ah, não, Jairo. Você se esqueceu de colocar a autorização da despesa junto à última publicação que você enviou para lá.
- Foi mal, M.H. Eu, realmente esqueci. Mas, eu sei que só publicam se a autorização for junto. Foi uma falha momentânea.
- Pois é! O cara estava bravo, dizendo que não podia e tal, eu tive que aguentar, falando só “é, é”, para no fim, te passar o que na verdade é o mais importante: não enviar pedido de publicação sem a autorização.
Comecei a rir:
- Bem, como muitas vezes vocês ouvem por mim, tem estes momentos complicados também, não é? Principalmente ao telefone!!

Houve ainda outra vez, na Secretaria de Educação, que eu e o William saímos na hora do serviço para fazer inscrição em concurso público. Eram outros tempos, a internet na velocidade atual ainda era um sonho. O setor já tinha conexão discada. Ao voltarmos demos de cara com a Dione nos aguardando.
- Onde vocês estavam? – ela nos questiona, com as mãos na cintura. – Precisando de vocês dois e vocês não estavam aqui no prédio.
- Fomos fazer inscrição no concurso público. Avisamos o Marcão.
- William, quantas vezes eu já disse que a responsabilidade do setor depende de sua presença? A Secretária telefonou diversas vezes. Nós mantemos vocês aqui em vista da demanda do serviço. – eu lembro o quanto a Dione gostava da palavra “demanda”, inserida em tantos ofícios que digitei para ela – Você tem que entender como é prejudicial a Secretária ligar e ninguém do setor atender. Temos que cumprir prazos e os pedidos devem ser respondidos sem demora...
E falou ainda por mais uns cinco minutos. O William só meneando a cabeça, furibundo. Novamente ele acreditou que, pelo menos desta vez eu também levaria uma boa reprimenda. Fez questão de aguardar ao lado da mesa da Dione, quando ela me chamou. Como estávamos no setor a mais de um ano, eu tinha mais facilidade de compreender o que a Dione falava e ela sabia como conversar comigo, falando mais pausadamente.
Ela me encarou, a expressão séria, balançando as mãos, nervosa:
- Jairo, vocês não estavam aqui e a Secretária ligou, porque ela precisa dos relatórios da E.M. Mauríc...
- Qual relatório? – interrompi – O mensal ou o consolidado?
- O.. o..
- O mensal está pronto, só falta imprimir. O consolidado demora um pouco, mas em menos de meia hora eu consigo.
- O.. 0... é o consolidado que ela precisa, mas, vocês não devem sair na hora do serviço e...
- Melhor eu ir logo para a sala de informática, para preparar o relatório, né, Dione? Em menos de meia hora estará pronto.
E fui saindo.
O William veio atrás de mim.
- A Dione deve ter uma paixão secreta por você! – ele estava deveras irritado – Ela não consegue te chamar a atenção!!
- Você é que não consegue interromper a lenga lenga dela... – eu disse, rindo. – Companheiro, se ela está cobrando por um erro, a gente conserta o erro rapidinho. É a melhor forma de resolver o problema.
Nesse dia, o Willians realmente tentou arrancar os cabelos e só não o fez, porque seu cocuruto já aparentava uma carequinha.

Obs.: Os nomes foram trocados ou não são citados, por motivos óbvios. William é o mesmo amigo de um relato anterior (Decepção Amorosa)

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Dilma sancionou o novo Estatuto da Pessoa com Deficiência

A comunidade deficiente comemorou a sanção pela Presidente Dilma, no dia 6 de julho, do novo estatuto, que amplia direitos e concede maior cidadania aos deficientes.

A reportagem publicada  no Portal Brasil (clique AQUI para ler)

Para a comunidade surda, importante item relacionado à Educação:

CAPÍTULO IV
DO DIREITO À EDUCAÇÃO
......
IV - oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas;
......
§ 2o .........
I - os tradutores e intérpretes da Libras atuantes na educação básica devem, no mínimo, possuir ensino médio completo e certificado de proficiência na Libras;

........


O respeito à Libras como primeira língua do surdo e escolas bilingues, uma batalha que se travava há anos!
A qualidade dos intérpretes ainda pode melhorar, com a exigência de Curso Superior, mas, a exigência mínima de ensino médio completo já é um bom começo.

Na área de informação, legenda oculta ou janela com intérprete de Libras. 

CAPÍTULO II
DO ACESSO À INFORMAÇÃO E À COMUNICAÇÃO
Art. 63. .........
......
Art. 67.  Os serviços de radiodifusão de sons e imagens devem permitir o uso dos seguintes recursos, entre outros:
I - subtitulação por meio de legenda oculta;
II - janela com intérprete da Libras;
III - audiodescrição.
...............

Diversas outras conquistas constam do Estatuto. Para uma procura mais ampla, clique no link abaixo, para abrir a página da Lei e depois utilize Control+F para pesquisar palavras de seu interesse ou de sua área.

Os deficientes comemoraram esta conquista. O respeito à diferença, a inserção no mercado de trabalho, a cidadania do deficiente, são conquistas que levaram anos para serem efetivadas.


A Lei, em sua íntegra, pode ser lida clicando AQUI..