domingo, 24 de julho de 2016

A lista negra

A convivência com os surdos possibilitou a percepção de que alguns ficavam marcados por toda a vida devido a algum ato errado. Mesmo após anos, o fato marcante envolvendo o surdo era a referência dele. Ainda que ele tivesse mudado, dificilmente conseguia modificar sua referência. Quando trabalhei como um dos responsáveis pelos encaminhamentos ao trabalho de diversos surdos, descobri que meu colega era adepto de uma “lista negra”. Nesta lista estavam todos os surdos que haviam causado problemas no serviço em anos anteriores. Mesmo eu falando que eram novos tempos, que teríamos as portas abertas para todos, ele se apegava a esta lista. Às vezes sequer aceitava receber os surdos desta lista. Ele era o “linha dura” e, estando no trabalho de encaminhamento há mais tempo que eu, eu preferia não polemizar.
Não sei como ocorreu, mas, de alguma forma, os surdos descobriram que eu era bem mais aberto e conciliador. Assim, quando chegavam à empresa para solicitar trabalho, a secretária Renée perguntava:
- Você quer conversar com o Guarnieri?
Espertamente, eles respondiam:
- Quero conversar com o Jairo, primeiro.
Assim, tinham a oportunidade de expor os fatos, explicar que já tinham solicitado trabalho ao Guarnieri, mas que ele não os encaminhava.
Um dos primeiros foi o Wendell. Ele disse que já tinha vindo ali quatro vezes, sabendo que havia uma vaga de trabalho.
- O Guarnieri anotou meu telefone, mas não me chamou. Ele colocou meu nome no fim da fila, por quê? Agora eu soube que a vaga ainda está aberta!! – ele explicou, em Libras.
Como eu não imaginei que ele estivesse na “lista negra”, chamei o Guarnieri.
- Vamos encaminhar o Wendell para esta vaga...
- É muito arriscado. O Wendell já trabalhou aqui antes. Ele falta muito.
Mas, o Wendell disse algo concreto:
- Isto tem mais de cinco anos!!
- Mas, você ainda vende adesivos. – disse o Guarnieri. Ele realmente conhecia muito bem os surdos. – Viaja muito. Por isso, vai faltar muito no serviço. Não vai dar certo.
- Se eu começar a trabalhar, só vou viajar nos fins de semana.
Muitos surdos viviam da venda de adesivos, viajando para diversas cidades do interior mineiro. Corriam atrás do sucesso de um dos primeiros surdos a mexer com isso: a venda de adesivos, com uma rede de vendedores particular (também surdos). Sendo ele um dos primeiros, quando a competitividade não existia, ele conseguiu lucrar bastante. Só que muitos e muitos outros surdos começaram a trabalhar com o mesmo objetivo, acarretando o excesso de demanda e a consequente queda de rendimento neste tipo de trabalho.
Como o Guarnieri disse que a vaga não foi preenchida, falei que ele poderia encaminhar o Wendell.
Mas, disse para o Wendell:
- Estamos te dando uma nova chance. Porém, se você começar a faltar para vender adesivos, as portas estarão fechadas de novo.

Antonella também utilizou o mesmo subterfúgio do Wendell para falar comigo primeiro. Nesta época, porém, eu já tinha sido alertado pelo intérprete que alguns surdos estavam confiantes que poderiam voltar a trabalhar na empresa, mesmo após os sérios problemas que causaram. E todos os que processaram a empresa, brigaram fisicamente, desrespeitaram os chefes, entre outros fatos desagradáveis, também não eram recebidos por mim. Ou seja, parte da “lista negra” era realmente de surdos que não poderiam ser aceitos.
Antonella estava na lista dos inaceitáveis. Era surda profunda, pronunciava algumas palavras, mas a conversação só era possível através da Libras.
- Jairo, o Guarnieri não me chama nunca. Mas, eu sei porque...
- O que você aprontou?
- Foi muitos anos atrás, eu tinha dezoito anos. Na escola, junto com umas colegas, fui acusada de roubar outra.
- E você roubou?
Ela ficou triste. Respondeu, com os olhos lacrimejando:
- Mas, foi uma bagunça com as colegas. Nós pegamos dez reais para comprar cigarro... Hoje tenho mais de trinta anos, tenho uma filha, preciso trabalhar...
Pedi à secretária que trouxesse a ficha de Antonella. Ela não estaria na lista por causa de fatos escolares. Na ficha, encontrei algo relacionado ao trabalho. Acusação de furto.
- Aqui diz, Antonella, que você furtou sua colega de trabalho.
- Não, não. O que aconteceu... na sala de trabalho esta colega deixou a bolsa na mesa. A mesa dela era perto da minha. Mas eu não mexi na bolsa dela não. No outro dia que ela disse que eu roubei o dinheiro dela. Só que eu não roubei...
- As outras colegas também disseram que foi você.
- Porque todas lembravam o que aconteceu na escola. E duas colegas estudaram lá comigo. Por isso todos apontaram o dedo para mim. Mas, eu não roubei.
- Onde você trabalhou depois que saiu daqui?
- Trabalhei em empresa particular. Fui mandada embora tem cinco meses...
- Por que foi mandada embora?
- Não sei...
Pedi à secretária que ligasse para a empresa. Solicitasse informações sobre a Antonella e o motivo da dispensa.
- Nenhuma reclamação contra a Antonella. Foi dispensada devido à dificuldade com o português, não conseguindo redigir cartas para as filiais. Os outros serviços da empresa não poderiam ser feitos por ela, carregador era para homens, e faxina, o salário seria menor, o que é proibido.
Antonella fitava assustada a secretária discorrendo sobre sua dispensa. A secretária conversava comigo utilizando Libras também.
- Então, está tudo certo. Você sabe, Antonella, que se você for encaminhada e fizer alguma coisa errada, eu serei responsabilizado? E não vai ter como eu falar nada a seu favor?
Ela respondeu que compreendia.
Guarnieri, já na sala, preparando um encaminhamento, observou:
- As colegas não vão aceitar trabalhar com ela neste setor. Elas estudaram juntas.
- Então, arrume uma vaga em que ela trabalhe sozinha.
- Você sabe o que ela fez? – perguntou o Guarnieri.
- Sim. Mas também conversei com o David – o intérprete que fazia os relatórios dos problemas nos locais de trabalho – e ele explicou que a colega acusou o furto no outro dia, sem muita certeza. De todo jeito, a Antonella vai trabalhar sabendo que, qualquer coisa ela será responsabilizada e sem chance de voltar a trabalhar com a gente.
Antonella ficou muito feliz com a oportunidade e me agradeceu efusivamente.

O Enzo não estava na lista. É um caso diferente. Recebemos ligação do setor onde o Enzo trabalhava. O chefe do setor informa:
- O Enzo não vem trabalhar a dois dias! Podem mandar outra pessoa para o lugar dele.
O Guarnieri já estava providenciando a substituição e o novato seria enviado na tarde daquele dia. Mandamos a secretária pedir notícias do Enzo. Ela ligou para a casa dele, a esposa do Enzo atendeu, disse que estava tudo bem. Não sabia por que ele não foi trabalhar. Pedimos que ele viesse conversar conosco. O Enzo era um surdo atleta, participava de maratonas em Belo Horizonte. Sempre o via com a camisa do Cruzeiro.
Ele chega assustado. Eu, Guarnieri e o terceiro diretor na sala, junto com a secretária.
- Você faltou dois dias e não avisou ninguém, Enzo!! Como você faz uma coisa dessas?? – o Guarnieri foi direto ao assunto, sem rodeios.
Antes que ele falasse alguma coisa, eu acrescentei:
- Agora a gente vai mandar um substituto lá para o seu serviço. Você vai ter que esperar aparecer outra vaga.
- Não! Não pode! Como eu vou fazer? Preciso do trabalho. Telefona para meu chefe, diz que eu vou trabalhar hoje!!
- Por que você faltou sem avisar??
- Minha esposa caiu na escada. Não podia nem andar. Machucou muito a perna. Por isso que eu faltei. Eu estava ajudando ela lá em casa...
- Caiu na escada??
- É, caiu!! – e levantou-se e dramatizou a queda – Ela foi andando assim e a escada pequena, três degraus, ela pisou em falso, caiu de mau jeito em cima da perna... Ficou muito ruim. Não conseguia andar...
Nós três diretores nos entreolhamos, com vontade de rir. A secretária baixou a cabeça. O Enzo suplica:
- Por favor, Jairo. Liga lá para o Santiago – o chefe dele – diz que eu vou hoje, trabalhar. Não vou faltar mais não.
- O Guarnieri já mandou outra pessoa... Se o seu chefe gostar desse novato, não podemos fazer nada...
- Que dia o novato vai começar? – perguntou o Enzo, desesperado.
- Hoje, às 13 horas. Daqui a quarenta minutos.
- Liga para o Santiago... vou hoje, agora!!
A secretária liga. Diz que os diretores estão pedindo para ele reconsiderar a substituição do Enzo e aceita-lo de volta. O Santiago reluta, mas acaba aceitando.
Falei com o Enzo:
- Vá para seu serviço rápido. Você tem que chegar lá antes do novato começar a trabalhar. Fale para o novato vir aqui conversar com o Guarnieri.
- Você tem que chegar lá no seu serviço em meia hora – brincou o Guarnieri. - 
É melhor correr.

Às 13:05 h a secretária nos reúne e informa:
- O Santiago acabou de ligar. Informou que o Enzo chegou todo suado. Parece que foi correndo, daqui até lá. O Enzo agradeceu ao Santiago. Está trabalhando normalmente...
Nós rimos muito. Soubemos depois que ele, realmente, foi correndo da nossa sede até o local de serviço em trinta e dois minutos. Provavelmente a esposa nunca caiu da escada. Logicamente, ela teria comunicado isso, quando a secretária ligou pedindo informações sobre a ausência do Enzo no trabalho.

Dos surdos da “lista negra” do Guarnieri, que eu insisti em dar uma nova chance, apenas dois deram problemas novamente.

Wendell, Antonella e Enzo nunca deram mais problemas.


Exceto o meu, todos os demais nomes estão trocados, por motivos óbvios.


sábado, 9 de julho de 2016

Filmes em Libras

A minha preferência pessoal é por legendas nos filmes. Mas, sei que parte da comunidade surda gostaria que houvesse filmes com Libras. Para beneficiar todas as camadas diferentes da comunidade surda, existe um site que colocou acessibilidade audiovisual em alguns filmes, As diferentes identidades surdas complicam a acessibilidade para todos. Lembro que chegando na casa do meu colega, intérprete, percebo o pai dele, surdo profundo, assistindo o canal de tv de uma rede evangélica.
- Mas, ele é católico!! - eu disse. - Mostre para ele o canal de uma rede católica.
- Ele conhece o outro canal, Jairo, mas não gosta, porque só tem a legenda. Ele prefere esse, porque tem a intérprete de Libras.

Muito importante a iniciativa do site Filmes que Voam, em legendar e ao mesmo tempo incluir também a Libras. Parte da comunidade surda que não desfruta de filmes, nem mesmo os legendados, será beneficiada com a iniciativa.

Para assistir os filmes, basta ir ao site (www.filmesquevoam.com.br) e clicar nos canais de acessibilidade: Canal FQV - Acessibilidade ou Canal FQV Kids - Acessibilidade.

As diferenças de acessibilidade para os surdos é um grande complicador, pois há desinformação na forma de tratar os surdos.
- Surdos que preferem Libras em todos os momentos - sua língua mãe é a Libras. 
- Surdos que preferem a escrita (português) e a Libras - normalmente sua língua mãe é o português, mas utilizam também a Libras. Portanto, para escrita, legendas, informações em quadros ou painéis, preferem o português, mas em uma palestra, conversação ou apresentação, preferem a Libras ou o intérprete de Libras.
- Surdos que preferem somente a escrita (português) e a leitura labial - são os surdos oralizados que não conhecem e não se interessam pela Libras. Toda comunicação para eles deve ser em português.

Por isto, muitas vezes nos deparamos com conteúdo que beneficia somente uma parte da comunidade surda, pois só contém legendas ou somente Libras. Esclarecemos sempre para os que produzem vídeos de acessibilidade que é necessário legendas e Libras, para não excluírem parte da comunidade surda.