sexta-feira, 29 de junho de 2012

Nossos sensores extras

Falo com as mãos, escuto com os olhos.
Eu falo normalmente também. Não sou mudo. A maioria das pessoas não compreende que somos muito diferentes, que nossa compreensão não se resume à leitura labial ou aos sinais. O rosto do comunicador, todo o rosto, é importante para transmitir a mensagem.
Lembro do meu colega chegando num dia de verão, com óculos escuros e falando comigo:
- O Atlético ontem jogou...
- Tire o óculos escuros.
- Por que? - ele pergunta, espantado - Você lê os meus lábios, ora.
- Mas, os olhos ajudam na compreensão do que você está falando.
Mais ou menos 30% da mensagem é transmitida pelos olhos. A leitura labial envia a mensagem, mas o complemento emocional está nos olhos. A tristeza, raiva, alegria, rancor ou desdém está nos olhos, não nos lábios. Devido a todo momento estarmos lendo expressões faciais, nós surdos temos uma grande capacidade de percepção. Lemos nos olhos quando uma pessoa está triste, alegre, magoada, feliz. Só o jeito do chefe me encarar eu já sei se tem um problema com o serviço ou se está tudo tranquilo. É um sensor extraordinário, esta capacidade de ler os olhos. Vemos fundo n'alma de uma pessoa através de seus olhos. Lembro de meus amigos espantados, quando eu informava quem não gostava de mim, numa turma de  dez companheiros, por exemplo. Isso não é um privilégio dos surdos, claro, mas são os surdos que têm mais facilidade para esta percepção. O meu amigo Tonho uma vez se espantou com isso:
- Porque você está falando que o D. não gosta de  você?
- Pelos olhos dele. - eu ri - Não gosta mesmo...
- Estranho... Ele disse que você é meio invocado.
Na época praticávamos taekwondo, de forma amadora, mas vivíamos falando disso e fazendo demonstrações da luta (como os competidores olímpicos, que tentam acertar cabeça e tronco. Nós só tentávamos acertar o tronco). O D. praticava karatê em academia e não aceitava muito como a gente lutava.
Meu outro sensor é corporal. As pessoas se espantam quando eu me assusto com o bater da porta, com trovões mais fortes ou com estouro de foguetes. Acreditam que surdo não ouve nada e confundem ouvir com sentir. No caso da porta, eu sinto a vibração (quanto mais próximo eu estiver da porta, mais forte será a vibração e maior será meu susto). No caso de trovões e foguetes (rojão), os decibéis são elevadíssimos (um tiro ou um rojão chega a 140 dB). Por isso é errôneo pensar que vivemos em silêncio total. Alguma coisa pesada que cai, porta ou janela batendo, estouro de escapamento de carro, foguete ou bombinha, farão com que eu me assuste com o ruído, mas nem sempre saberei identificá-lo. Digo que o barulhão foi um foguete (rojão) quando na realidade foi um estouro de escapamento, ou vice-versa. Mas, não sentiremos o barulho de prato, moeda, copo ou garrafa caindo. Estes objetos não produzirão a vibração necessária para sentirmos alguma coisa, pois eles se quebram.
Foto: Jornal O Tempo
Quando novo minha surdez era realmente uma curiosidade para todos. Numa festa, na casa do meu amigo e vizinho, a criançada estava na sala brincando e eu estava na copa conversando com um jovem de uns 20 anos (na época eu tinha 15 anos) sobre a minha surdez. Justamente por eu ter me assustado com o barulho de alguém derrubando uma cadeira foi que ele perguntou como eu "ouvi" o barulho. Já tinha explicado como eu lia os lábios dele com facilidade (movimento labial muito bom) e passei a explicar o que era sentir as vibrações. No meio da conversa ele pegou umas moedas e soltou, perguntando se eu sentia esse barulho também. Eu respondi que não (na época ainda não sabia explicar porque não sentia o som das moedas caindo). Nisto, a meninada que estava na festa surge correndo na copa. Eu e o jovem rimos muito, ainda mais que eu falei:
- Eu não senti nada do barulho das moedas, mas a meninada, ó, estão escutando perfeitamente...
Eu convivi e convivo com ouvintes no seio familiar. Meus familiares são ouvintes, bem como minha esposa e filhos. Isto faz com que eu tenha uma referência para os barulhos que eu sinto. Se estou no quarto com minha esposa e sinto um barulho, mas ela não move um músculo, então eu sei que o barulho é insignificante. Quando eu  me assusto com alguma vibração mais forte, já me informa:
- Uma porta bateu.
- Alguém está soltando foguete.
O único problema é quando estou sozinho, sem alguém ouvinte para servir de referência, muitas vezes eu tenho que verificar o que foi o barulho. Quando estou sozinho é quando eu "escuto" a barulhada toda em derredor. É porque estando sozinho, o sensor que responde às vibrações fica mais alerta.
Também somos sensíveis a qualquer batidinha no móvel em que estivermos encostados. Também podemos sentir os sons tocando os objetos que fazem barulho (rádio, tv, computador). Podemos sentir a música, mas sentimos principalmente os instrumentos de percussão (tambores). O som produzido por instrumentos de sopro já não são sentidos, ou são sentidos, mas muito levemente.
Uma noite minha esposa pára de ler e se concentra em algum som. Eu pergunto, curioso:
- O que você está ouvindo?
- Uma ambulância ao longe...
- Porque ambulância? Pode ser um carro de polícia ou de bombeiros.
- Não. Cada um tem uma sirene diferente.
Legal! Minha memória auditiva lembra de sirene. Mas, em Formiga, na minha infância, o que eu ouvia era a sirene de polícia, pois lá não tinha bombeiros e não me lembro de nenhuma ambulância.
Ah, sim, eu só sei que está chovendo quando eu vejo a chuva.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Esclarecendo o Auxílio-reclusão

Um  dos fatores que  mais prejudicam a população é a divulgação errada das leis. Principalmente uma lei que beneficia o preso. Há anos circula e-mail e charges com a falácia de que o Auxílio-reclusão é um "benefício" concedido aos presos. É muito triste e constrangedor ler coisas do tipo: "prêmio por estar preso"; "vale a pena ser criminoso"; "se o criminoso tiver 5 filhos vai receber R$ 4.575,25" e por aí vai.
Não se deixe enganar. Presos perigosos
nunca trabalharam, nem pagaram INSS na vida.
A razão de tanta informação errada remonta à campanha presidencial de 2006, quando o governo Lula estava tentando a reeleição e o PSDB acreditava (acredita ainda) que o Bolsa Família renderia muitos votos. Consequentemente disseminou um e-mail apócrifo com as informações distorcidas e colocando a alcunha de "bolsa reclusão" ou "bolsa bandido" no Auxílio-reclusão tentando desta forma associar negativamente o Auxílio-reclusão ao Bolsa Família. Os e-mails se disseminaram de norte a sul do país, com as informações erradas e até os dias de hoje circulam, dando a entender que vale a pena ser delinquente. Não deixe que seu filho acredite nisso. Não divulgue estes e-mails. E quando receber um, responda com os devidos esclarecimentos. Também no facebook circula a charge acima. Não compartilhe. E se possível, esclareça que a charge está errada e deixe o link da Previdência Social.
O Auxílio-reclusão existe há mais de 50 anos. Não foi criação do Lula. Nunca foi chamado de "bolsa" reclusão (a palavra "bolsa" foi colada ao Auxílio-reclusão porque o PSDB tem em suas fileiras os maiores críticos do Bolsa Família e dessa forma tinham um mote para colocar todas as "bolsas" como algo negativo).
Leis específicas do Auxílio-reclusão (Lei nº 8.213, de 24/07/1991 e alterações posteriores,  Decreto nº 3.048, de 06/05/1999  e alterações posteriores,  Instrução Normativa INSS/PRES nº 45, de 06 de agosto de 2010  e alterações posteriores)

Vamos deixar bem claro:
- O Auxílio-reclusão NÃO é um benefício. É um seguro devido a todos os contribuintes do INSS, igual ao Auxílio Doença. Em sendo um seguro previdenciário, o preso não está recebendo nada além do que ele já pagou/contribuiu.
- O Auxílio-reclusão NÃO é pago ao preso. É pago à família do preso.
- O Auxílio-reclusão NÃO é pago por dependente. É um valor fixo.
- O valor de R$ 915,05 (atual de 2012) não é o valor a receber e sim o teto máximo.
Somente quem está contribuindo com o INSS (trabalhador com carteira assinada ou autônomo que paga INSS em dia) e que foi preso tem direito a este auxílio. Lembrando ainda que. para ser considerado beneficiário é preciso ter contribuído ao INSS por, no mínimo, 12 meses.

Perguntas e respostas esclarecedoras sobre o Auxílio-reclusão na página da Previdência Social (clique). Leia, os esclarecimentos são oficiais e muito importantes.

Eu sempre respondo aos e-mails que recebo com as indignações de sempre contra o Auxílio-reclusão esclarecendo que não são verdadeiras as informações contidas no texto. E termino com a frase: ESCLAREÇA CORRETAMENTE O QUE É O AUXÍLIO-RECLUSÃO. NÃO PERMITA QUE OS JOVENS CRESÇAM ACREDITANDO QUE VALE A PENA SER DELINQUENTE.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Moedas sociais do Brasil

Eu nem sabia que existiam outras moedas no país. Nós conhecemos o vale-refeição, vale-alimentação, vale-transporte, que também são um tipo de moeda, mas, dinheiro mesmo, impresso com papel moeda, não conhecia.
Existe no Brasil mais de 80 tipos de moedas diferentes. São as moedas sociais, emitidas por Bancos Sociais com circulação restrita. Em grandes cidades, normalmente estão restritas a um bairro ou comunidade. Em pequenas cidades, é a moeda corrente. A função das moedas sociais é garantir o crescimento da economia local. Muitas vezes as pessoas recebem altas somas de dinheiro, mas ele não é gasto na comunidade local. As pessoas procuram grandes redes de supermercados, shoppings centers. Com a moeda social restrita a uma comunidade, o ganho é da comunidade, gerando crescimento. Em alguns locais a moeda social é mais vantajosa que o real; os comerciantes dão desconto para pagamentos com moeda social.
A moeda social é paritária com o real. Um maracanã, sabiá, tupi ou palmas equivale a um real.
O Banco Palmas é um dos bancos sociais que trabalham com estas moedas. Também fazem empréstimos, garantindo vantagens para quem solicita valores em moeda social, com juros zero. Emprestam também reais, mas com juros.
Se deseja ler mais, clique AQUI - a reportagem é de 2008.



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terça-feira, 12 de junho de 2012

Flagrantes de BH...

Meio-dia e meia, Praça da Estação.
O mendigo resolve descansar, que ninguém é de ferro.
Mas, o legal mesmo é que os dois cães que o acompanham, também resolvem descansar. E dormem ao lado dele, indiferentes ao barulho dos passantes, que saem do túnel do metrô. Um dos cães dorme de patas para o ar bem ao lado do dono.
Essa é a nossa BH.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

É nóis na roça... IV

Na manhã seguinte, o Walter pegou a bicicleta e foi trabalhar. Nem vimos ele saindo. O Edson fez o café. Comemos com biscoitos. Eu e o Edson lavamos os vasilhames sujos na noite anterior. E como sempre, acabo sendo o ponto de desabafo de meus amigos. O Edson:
- O Amarildo quando bebe muito fica encrencando com tudo. Não pense que ele encrenca só com você, não. Com a gente também ele adora discordar de tudo. Não sei pra que...
Momentos depois, quando acompanho o Ivan até a entrada da mata, onde ele ia tentar matar algum pássaro para o almoço:
- Não deixa o Edson fazer o arroz de novo, não, senão vai ficar uma porcaria de novo.
- Tá, ta... eu faço junto com ele. O problema ontem é que colocamos muita água.
- O Edson não sabe cozinhar coisa nenhuma...
Ele entra mata adentro, eu volto para a casa. Eu e o Amarido resolvemos jogar baralho, do lado de fora da casa, aproveitando o sol.
- O Ivan só sabe reclamar e não faz nada para ajudar. – reclama o Amarildo.
- Ele foi ver se caça alguma coisa para o almoço.
- É, mas só foi porque o Edson disse que ele devia ajudar em alguma coisa.
Estas situações sempre me constrangeram um pouco. Porque eu, muito amigo de todos os três, tinha que “ouvir” calado cada um reclamando do outro. Por conseguinte eu jamais ampliava as reclamações de um e outro. Se algum deles pensava que eu iria repassar a reclamação ao outro, estava enganado, porque eu me mantinha neutro. Eu não reclamava de nenhum deles, aliás, na maioria das vezes, os defendia dos outros, dissimuladamente, usando a palavra “nós”. Claro, imaginava que eu também entrava na roda, com algum deles reclamando de alguma coisa minha.
O Walter chegou meio-dia e meia, trazendo pão, sardinha e um frango abatido. Eu e o Amarildo estávamos exaustos do jogo, “burro”, que ele chegou a estar ganhando de 6x3, eu fiz 6x6, empatamos mais uma e ele parou. Rimos, com o Edson, Ivan e Walter do lado, querendo o desempate, mas o Amarildo disse:
- Paramos por aqui. O empate é a paz entre os adversários.
- Só até a próxima disputa. – respondi, entre gargalhadas do pessoal.
O almoço saiu melhor, porque eu não deixei que colocassem tanta água como no dia anterior. Comemos, acompanhado do que sobrou da galinha. O Ivan reclamou que a galinha já estava meio perdida, mas comemos assim mesmo. Tanto que o mesmo Ivan colocou mais comida e pegou mais pedaço de galinha. O Edson:
- Olha a vontade do Ivan, comendo a galinha perdida...
- Galinha perdida? Nós já encontramos o melhor caminho para ela!! - eu disse, arrancando gargalhadas do pessoal.
A tarde estávamos na parte da frente da casa, conversando, bebendo e fumando. O Edson estava com o violão. São momentos complicados, pois não tem como eu participar. Até que eles começaram a cantar músicas religiosas, pois participavam do Grupo Jovem e organizavam a Missa dos Jovens. Algumas músicas eu acompanhei; “Senhor, faze de mim um instrumento de sua paz; onde houver ódio que eu leve o amor;...”, “o Senhor me chamou a trabalhar, a messe é grande a ceifar, a ceifar o Senhor me chamou, Senhor aqui estou, Senhor aqui estou”..., “pão e vinho que é o próprio Cristo, nessa mesa Senhor nós te ofertamos”, “Glória, glória, aleluia, glória, glória, aleluia, louvemos o Senhor...”.
O pessoal se espanta:
- Como você conhece estas músicas tão bem?
- Eu e meu primo íamos mais à Missa dos Jovens do que na Missa das Crianças. Essas músicas eram as mais cantadas. Como eu já disse, minha memória auditiva é excelente. E mesmo lembrando só partes da música, eu procurava a letra completa e decorava.
- Seu primo canta na Missa dos Jovens até hoje.
- Nós tínhamos uns 10 anos, mais ou menos, quando ele ia à Missa dos Jovens e soltava a voz cantando “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos. – foi uma música que tocou muito nas Missas, e também, “A Montanha”. – Eu não tinha o mesmo entusiasmo do meu primo e não cantava nada.
- E da Missa das Crianças?
- Tem aquela da Primeira Comunhão: “chegou o dia da querida festa, chegou a hora em que vamos comungar, a inocência brilha em nossa testa, queremos sempre a Jesus amar...”
O Edson diz “isto!” e acompanha com o violão.
Eram os tempos em que a maioria dos jovens eram católicos. O Ivan era ex-seminarista, o Edson e Amarildo participavam ativamente do Grupo de Jovens, não só na paróquia, mas também em atividades externas, como visitas ao Orfanato, Asilo e Hospitais. Anos depois Amarildo e Ivan eram quase ateus. Eu, não gosto de muita coisa da Igreja Católica, mas ainda valorizo muito os seus dogmas.
Cantamos mais algumas músicas. Principalmente que o pessoal achou interessante eu acompanha-los na cantoria.
- A Missa das 7 horas da manhã era daqueles homens sérios, que levavam os Estandartes de Cristo.
- Lembra de alguma música deles?
Eu entoei, engrossando a voz:
- “Vamos todos a casa de Deus, do Deus que alegra a nossa vida, a Igreja é a imagem dos céus, nós somos a família reunida”. – o pessoal riu muito da minha entonação.
Só o Edson conhecia esta.
Fonte: Google
Sabendo que eles talvez quisessem cantar músicas populares e estavam sem jeito de me dispensar, eu disse que ia tomar café e fumar. Depois, enquanto eles continuavam com a cantoria, peguei a bicicleta e subi o morro, continuando a estrada além da casa da roça. Do alto, a paisagem era linda mesmo. A vista alcançava ao longe, o verde sobressaindo.
A noite foi tranqüila. O frango abatido era muito mais fácil de preparar do que a galinha. Jantamos e conversamos bastante.
O Walter ficou curioso:
- Jairo, como é que você tem esse nível de informação tão elevado?
- Ué, eu leio muito. Porque o espanto?
- Você não percebe, mas a gente fica admirado, porque você é surdo e muitas vezes sabe mais do que nós aqui, que ouvimos normalmente.
- Bom, eu fiquei surdo e como conseqüência da surdez, perdi muito o contato externo. Quando morei com minhas irmãs em BH e estudava de manhã, as tardes eu lia e escrevia muito. Aqui em Formiga, sim, eu ainda tinha mais amigos de futebol, natação, rua... Mas, não deixava de ler. Acho que minha frustração por não ter continuado os estudos me levava a devorar pilhas de livros, revistas, jornais. Só tem 2 anos que trabalho na gráfica. Mesmo assim, nos fins de semana meu maior divertimento ainda é ler.
- Tem uma memória muito boa, pra lembrar de tanta coisa. – riu o Ivan.
No domingo de manhã, arrumamos tudo e resolvemos voltar logo. Fizemos o caminho de volta avacalhando e rindo, como sempre. Paramos na casa do Edson, onde a avó dele não estava acreditando, de jeito nenhum, que eu era surdo. O Edson ficou enchendo minha bola, a tia e os avós dele passaram a me dar toda atenção. Eu tinha falado antes que queria café, porque o café que o Edson fazia lá na roça era ruim demais. Não tinha café.
- Não tem problema. Vamos indo, pessoal. Estou doido para tomar um banho... estamos parecendo os cinco porquinhos...
Nem pensar. A avó do Edson fez questão de preparar café, praticamente obrigando a gente a esperar.
O avô do Edson conta:
- O pessoal da outra roça passou aqui e disse que a minha casa da roça tinha sido invadida por um monte de jovens... armados com uma espingarda.
Nós rimos muito.

(Fim)

terça-feira, 5 de junho de 2012

É nóis na roça... III

Em volta do fogão de lenha, bebendo e conversando fiado, o Amarildo declama:
- Quando eu bebo Sukita, meu coração palpita.
Rimos. Mas eu quis saber o por quê da frase.
- É uma propaganda que está passando atualmente. Muito legal, bem humorada.
Era a propaganda do Tio Sukita, que ficou muito famosa e verdadeiramente fez crescer as vendas do refrigerante. Não sei se o personagem declamava o que o Amarildo citou. Na época não era fácil saber o que realmente era dito na TV se eu não tivesse uma boa alma ao lado no momento justo da propaganda. Hoje, as pesquisas na internet só retornam as propagandas do tio, que eu assisti e entendia mais ou menos (o quarentão se encantando pela menina de 18 anos, que sempre no final ela o chamava de “tio”).
Mas, eu sempre aproveitava os “ganchos” das conversações e declamei também:
- Quando eu bebo pinga, minha mãe me xinga.
O pessoal ri muito e eu e o Amarildo fomos duelando (o Amarildo primeiro, eu em seguida):
- Quando eu bebo Brahma, minha mãe reclama.
- Quando eu bebo pinga, minha mão catinga.
- Quando eu bebo Tatuzinho, nunca encontro o caminho.
- Quando eu bebo “mé”, eu não paro em pé.
- Quando bebo Coca-cola, não vou para a escola.
O pessoal ri, mas contesta:
- Uuuuu... não tem nada a ver Coca-cola e não ir para a escola.
Eu aproveito a deixa de novo:
- Minha namorada de camisola, parece uma Coca-cola...
A “torcida” contesta de novo:
- Não bebeu, não valeu...
- Vocês estão muito exigentes – eu ri – Então, corrijo: Quando eu bebo Coca-cola, vejo minha namorada de camisola.
- Quando eu bebo guaraná, minha namorada concordará. (só podia ser o Amarildo! Modificada devido à censura militar à época).
Eu consegui uma boa rima:
- Quando eu bebo Guarapan, me lembro do Ivan.
O pessoal riu muito desta.
- Quando eu bebo Mate-Couro, me torno um touro. – o Amarildo.
- Quando eu bebo Caracu....
- Parou, parou!
- Nem vem... essa não!
- Não bebe Caracu não!!
- Acabou... acabou...

Jantamos alegremente. A galinha, infelizmente, ficou meio dura. Algumas partes mais macias que outras. Mas, com o apetite aberto pela bebida, comemos como se fosse um banquete. Quem foi esperto pegou as partes macias, fígado, peito, coração.
Mais tarde resolvemos ir até à mina buscar água. Levamos uma garrafa de bebida, cigarros e uns pedaços de frango. O Edson carregava uma lamparina para iluminar o caminho. Uns vinte minutos de caminhada depois, chegamos à mina, onde enchemos os vasilhames de água, sentamos, bebemos, fumamos e conversamos. Ouviram alguma coisa e o Amarildo brincou:
- É o lobo...
O Ivan discorda:
- Isso não foi uivo, foi pio de coruja.
Percebo os olhares de todos atentos, apurando os ouvidos para identificarem o som.
- Agora foi um uivo... – insiste o Amarildo.
- Amarildo, não tem lobo no Brasil.
- Tem sim, o lobo-guará! – insiste o Amarildo.
Eles me informam o teor da conversa e eu esclareço:
- Você está certo nesta questão, Amarildo. Temos o lobo-guará, mas ele não uiva.
- Ah, essa não! Você não escuta, como você sabe disso?
Todos riem, eu inclusive. A bebida já estava afetando meu amigo.
- Não escuto, mas sei que o cachorro faz “au-au”, o gato faz “miau” e a hiena emite um som estranho que parece uma gargalhada humana...
- Lá vem você com seu conhecimento chato...
- Porque chato, colega? Eu apenas leio muito.
Fonte: Google
O Edson é mais honesto:
- Essa do lobo-guará não uivar nem eu sabia, Jairo.
- Eu tinha uma enciclopédia dos animais quando morei com minhas irmãs e uma delas ganhou um monte de livros da biblioteca do padre, da igreja em que ela trabalhava. Eu lia estes livros a tarde toda, depois que chegava da escola, não tinha nada para fazer a tarde.
- Que barulho o lobo-guará faz?
- Late. – rimos todos – Mas não é o “au-au” dos cachorros, é um pouco diferente.
O Amarildo resolve encrencar comigo:
- Se você nem ouve o que estamos ouvindo, como você pode dizer o que está uivando?
- Não vem não, Amarildo. Em nenhum momento eu disse que sabia o que está uivando. Mas, sinceramente, conhecendo nossa fauna, o Ivan está certo, deve ser uma coruja.
O Edson reclama com o Amarildo, pois o mesmo estava distorcendo o que eu disse antes. Sabendo que ele já tinha bebido muito, o Walter brinca:
- Passa a garrafa prá cá, Lobo Mau.
- Vai virar um lobisomem se continuar bebendo desse jeito.
O Walter conta um caso, o Ivan traduz:
- Ele disse que uns tempos atrás, uma família na roça foi praticamente dizimada pelo pai, que atacou a mulher e os filhos. O pessoal dizia que ele se transformou em um lobisomem.
- Credo! – reclama o Edson – Vou dormir com a lamparina acesa.
- É lenda. Não existe lobisomem. – diz o Amarildo.
O Ivan traduz o que ele diz e me fita. Ao perceber que vou falar alguma coisa o Amarildo esbraveja:
- Se você falar que existe, vou brigar com você.
- Não existe! – eu ri, juntamente com o pessoal – Mas, existe uma doença, uma síndrome, chamada licantropia, em que a pessoa acredita que se transformou em lobo.
- Não acredito! – o Amarildo só faltava soltar fogo pelas ventas – Me dê essa garrafa aí, Walter.
- Você vai jogar ela na cabeça do Jairo?
Rimos, porque sabíamos que no fundo, o Amarildo jamais partiria para a violência comigo, ainda mais devido a divergências tão banais de conversas. Era uma constante, debatermos sobre muita coisa. Mas, sabíamos que a irritação dele era real, principalmente quando ele bebia.
- Como você sabe dessa, Jairo? – perguntou o Edson – Para mim, transformações em lobos sempre foram lendas.
- A maioria é lenda mesmo, meu amigo. Na realidade, a pessoa não se transforma em lobo, ela apenas acredita ter se transformado no animal, passa a rosnar e a andar de quatro.
- Ainda não disse como ficou sabendo disso...
- Vocês vão rir: lendo revistinha de faroeste. – riram mesmo. Expliquei – Coleciono Tex, e um dos números tem a história “Diablero”, sobre um mexicano que se transforma em lobo, e encurtando, um personagem é cientista, quando Tex diz que algo assim era impossível, explica que a medicina há muito já havia relatado casos de licantropia, que é justamente esta doença. Claro que eu não deixei por isso mesmo e procurei feito doido algum livro que fizesse referência ao termo.
Hoje, com o Google, você acha o que quiser na internet. Mas naqueles tempos, era muito difícil encontrar alguma coisa sobre raridades. Licantropia é uma citação muito rara. Imagine mais de 30 anos atrás, a dificuldade de pesquisa.
Quanto à revista de faroeste, eu tive mais de 200 números. Anos depois eu vendi a coleção, por um bom preço, mas me arrependi depois.
Bebemos e fumamos. Resolvemos voltar para a casa. Eu já estava um pouco “alto” e voltei com uma mão apoiada no ombro do Ivan. O pessoal fica curioso:
- Tá brincando de guiar cego?
- Não, amigos. É que audição ajuda o equilíbrio e no meu caso, a falta dela me faz andar cambaleando pior que bêbado. Quanto mais escuro e mais irregular o chão, mais complicado é manter o equilíbrio. Eu ainda bebi muito, o que piora a situação.
Foi uma das primeiras coisas que eu descobri ao perder a audição. Andava escorando nas paredes. Demorou alguns meses até parte do equilíbrio retornar. Mas, não conseguia andar de bicicleta, tive que aprender de novo. Mas, mesmo depois de estar mais equilibrado, escuridão e chão irregular me faziam cambalear muito.
Na casa, cansados e um tanto “altos”, fomos dormir. Antes de apagar a lamparina, o Walter ainda brinca com o Amarildo, ao ouvir alguma coruja piando ao longe:
- O lobo, Amarildo!!
- Falou, Chapeuzinho Vermelho.

(Relato em 4 capítulos. Continua AQUI)


sábado, 2 de junho de 2012

É nóis na roça... II

O Amarildo e o Edson foram mais à frente e eu, o Ivan e o Walter ficamos mais para trás, devido ao peso da bicicleta. Saímos da pista asfaltada e pegamos uma estradinha de terra, que levaria à roça do avô do Edson. Começou a escurecer e os dois, Amarildo e Edson sumiram de vez. Mas, o Ivan explicou que eles correram, para chegar na casa da roça antes de escurecer.
- Verificar se não tem ratazanas ou gambás dentro da casa.
Eu avacalho:
- Imagina, dormimos juntos com os gambás. Voltar para casa “cheirosinhos”....
- Você já viu gambá bravo? – perguntou o Ivan – Porque eles têm dentes afiados, quase igual de gato.
- Eu já vi, sim. E lembro de um amigo me contando que um gambá estava no muro e ele passou a mão no bicho, falando “tadinho do gatinho...”, quando o gambá virou e mostrou os dentes para ele.
- Já matamos gambá até na Praça São Vicente Férrer. – disse o Walter e me fitou, preocupado, lembrando da minha defesa dos passarinhos – Ali naquelas árvores da praça tinha até gambá, mas com o tempo, eles sumiram.
- Quem pensa que o gambá é bonitinho igual aqueles pretos com uma faixa branca está enganado. O bicho parece muito mais um rato gigante. Parecem gatos, quando estão de costas e devido ao pêlo cinza.
Chegamos na casa da roça, o Edson e Amarildo na porta, já com duas lamparinas, que eles tentavam acender.
- Vocês demoraram! – o Amarildo diz, nos alugando.
Rimos, ainda mais do Ivan soltando um “vai à merda!”.
A escuridão era demais. Acendíamos os isqueiros de um e outro, mas nada das lamparinas acenderem. O Walter que virou uma das lamparinas, molhou bastante o pavio no querosene e ela acendeu. Para mim, não tem nada pior que escuridão excessiva. É quando eu fico “surdo” mesmo, pois não tem como ver o que o pessoal está falando.
Arrumamos as coisas mais ou menos dentro da casa e começamos a preparar desde já a refeição. Arroz e frango. A coitada da galinha, que veio dependurada no guidom da bicicleta nem imaginava o fim que teria. O Edson me pergunta:
- Você sabe matar galinha?
­- Saber eu sei, raspa o pescoço, dá um corte profundo, para ela perder todo o sangue. O problema, meu amigo, é que eu detesto matar o que quer que seja e não vou fazer isso não.
Eles debatem e eu digo:
- Ali tem um machado que facilita tudo. Pega e corta o pescoço num golpe só. Não pode é errar.
O Ivan e o Amarildo declinaram do serviço. O Walter então pegou o machado, levou a galinha para o quintal e cortou o pescoço dela com uma machadada só. Nenhum de nós quis assistir ao “espetáculo”. Começamos a rir disso. O Walter, claro, aproveitou para zoar conosco:
- Uns homões destes que não conseguem nem matar uma galinha. – riu, enquanto exibia o “troféu” degolado.
A água já estava fervendo no fogão de lenha, para colocar a galinha e depená-la com facilidade. Cinco homens em volta do fogão, cada um dando um palpite, na maioria das vezes, um palpite pior que o outro. Ao limpar a galinha, nem sabíamos se alguma coisa era ou não comestível. Toda hora o Edson, que limpava a galinha, perguntava:
- Isto come?
Sim, não, sim, não, algumas partes ninguém sabia mesmo. Outras, era o coração, fígado, facilmente identificáveis e comestíveis.
- Isto come? – pergunta o Edson de novo.
- Argh, isto são as tripas, cara.
Todos riem. O Walter diz:
- Mas, tem gente que come as tripas, a moela, o baço, chamam de miúdos.
- Beleza, Walter, mas eu não vou comer isso não! – eu disse entre risos.
Cortam corretamente as asas, as coxas, o peito, os pés. O Amarildo fala, na maldade:
- Bom, comerei o que eu conheço especificamente das galinhas, o peito e as coxas.
- Gosto da asa. – diz o Ivan.
- Do fígado! – diz o Edson.
- Gosto do pescoço. – diz o Walter.
Eu declamo:
- Companheiros, mesmo sendo uma galinha, devemos saborear a parte mais importante, que é o coração!
Rimos todos.
Fonte: Google
O Ivan pergunta:
- E você já ganhou um coração de galinha?
- Não deixa de ser um coração. Já ganhei sim.
Começam a falar de galinhas no mau sentido da palavra. Citam nomes de garotas, algumas que eu conheço. Entre risos e gargalhadas. Uma é do Grupo Jovem:
- Essa não acredito! – eu contesto – Ela é muito religiosa.
O pessoal ri a não poder mais.
- Ela reza para ganhar os homens! – diz o Amarildo, que não perdoa mesmo. – Como ela reza muito, homem nunca faltou para ela...
Entre os risos do pessoal, eu também não perdôo:
- No seu caso, Amarildo, você que está sempre listando mais uma garota na sua já enorme lista, você não seria um “galinho”?
O Amarildo leva numa boa e responde:
- Pois é, Jairo! Mas, como homem, não tenho problemas com isso. Aliás, em alguns, até causo inveja.
O arroz, devido aos conhecimentos culinários de cada um dos colegas, e também ao efeito etílico das bebidas, não ficou bom. Ficou parecendo arroz de hospital, excessivamente macio, devido a água que não paravam de colocar, mais e mais.
- Está mais parecendo pasta de arroz do que arroz – reclamou o Ivan.
- Deixa no fogo mais um tempo, vai fazer “rapa” (queimar) no fundo, mas vai ficar um pouco mais consistente.
A galinha ainda estava cozinhando na panela de pressão, há um bom tempo.
- A galinha já tá boa... – disse o Amarildo.
- Negativo. – respondi – Uma galinha leva horas para cozinhar, ainda mais em fogão de lenha. Tenha paciência.

(Relato em 4 capítulos. Continua AQUI)