sexta-feira, 29 de junho de 2012

Nossos sensores extras

Falo com as mãos, escuto com os olhos.
Eu falo normalmente também. Não sou mudo. A maioria das pessoas não compreende que somos muito diferentes, que nossa compreensão não se resume à leitura labial ou aos sinais. O rosto do comunicador, todo o rosto, é importante para transmitir a mensagem.
Lembro do meu colega chegando num dia de verão, com óculos escuros e falando comigo:
- O Atlético ontem jogou...
- Tire o óculos escuros.
- Por que? - ele pergunta, espantado - Você lê os meus lábios, ora.
- Mas, os olhos ajudam na compreensão do que você está falando.
Mais ou menos 30% da mensagem é transmitida pelos olhos. A leitura labial envia a mensagem, mas o complemento emocional está nos olhos. A tristeza, raiva, alegria, rancor ou desdém está nos olhos, não nos lábios. Devido a todo momento estarmos lendo expressões faciais, nós surdos temos uma grande capacidade de percepção. Lemos nos olhos quando uma pessoa está triste, alegre, magoada, feliz. Só o jeito do chefe me encarar eu já sei se tem um problema com o serviço ou se está tudo tranquilo. É um sensor extraordinário, esta capacidade de ler os olhos. Vemos fundo n'alma de uma pessoa através de seus olhos. Lembro de meus amigos espantados, quando eu informava quem não gostava de mim, numa turma de  dez companheiros, por exemplo. Isso não é um privilégio dos surdos, claro, mas são os surdos que têm mais facilidade para esta percepção. O meu amigo Tonho uma vez se espantou com isso:
- Porque você está falando que o D. não gosta de  você?
- Pelos olhos dele. - eu ri - Não gosta mesmo...
- Estranho... Ele disse que você é meio invocado.
Na época praticávamos taekwondo, de forma amadora, mas vivíamos falando disso e fazendo demonstrações da luta (como os competidores olímpicos, que tentam acertar cabeça e tronco. Nós só tentávamos acertar o tronco). O D. praticava karatê em academia e não aceitava muito como a gente lutava.
Meu outro sensor é corporal. As pessoas se espantam quando eu me assusto com o bater da porta, com trovões mais fortes ou com estouro de foguetes. Acreditam que surdo não ouve nada e confundem ouvir com sentir. No caso da porta, eu sinto a vibração (quanto mais próximo eu estiver da porta, mais forte será a vibração e maior será meu susto). No caso de trovões e foguetes (rojão), os decibéis são elevadíssimos (um tiro ou um rojão chega a 140 dB). Por isso é errôneo pensar que vivemos em silêncio total. Alguma coisa pesada que cai, porta ou janela batendo, estouro de escapamento de carro, foguete ou bombinha, farão com que eu me assuste com o ruído, mas nem sempre saberei identificá-lo. Digo que o barulhão foi um foguete (rojão) quando na realidade foi um estouro de escapamento, ou vice-versa. Mas, não sentiremos o barulho de prato, moeda, copo ou garrafa caindo. Estes objetos não produzirão a vibração necessária para sentirmos alguma coisa, pois eles se quebram.
Foto: Jornal O Tempo
Quando novo minha surdez era realmente uma curiosidade para todos. Numa festa, na casa do meu amigo e vizinho, a criançada estava na sala brincando e eu estava na copa conversando com um jovem de uns 20 anos (na época eu tinha 15 anos) sobre a minha surdez. Justamente por eu ter me assustado com o barulho de alguém derrubando uma cadeira foi que ele perguntou como eu "ouvi" o barulho. Já tinha explicado como eu lia os lábios dele com facilidade (movimento labial muito bom) e passei a explicar o que era sentir as vibrações. No meio da conversa ele pegou umas moedas e soltou, perguntando se eu sentia esse barulho também. Eu respondi que não (na época ainda não sabia explicar porque não sentia o som das moedas caindo). Nisto, a meninada que estava na festa surge correndo na copa. Eu e o jovem rimos muito, ainda mais que eu falei:
- Eu não senti nada do barulho das moedas, mas a meninada, ó, estão escutando perfeitamente...
Eu convivi e convivo com ouvintes no seio familiar. Meus familiares são ouvintes, bem como minha esposa e filhos. Isto faz com que eu tenha uma referência para os barulhos que eu sinto. Se estou no quarto com minha esposa e sinto um barulho, mas ela não move um músculo, então eu sei que o barulho é insignificante. Quando eu  me assusto com alguma vibração mais forte, já me informa:
- Uma porta bateu.
- Alguém está soltando foguete.
O único problema é quando estou sozinho, sem alguém ouvinte para servir de referência, muitas vezes eu tenho que verificar o que foi o barulho. Quando estou sozinho é quando eu "escuto" a barulhada toda em derredor. É porque estando sozinho, o sensor que responde às vibrações fica mais alerta.
Também somos sensíveis a qualquer batidinha no móvel em que estivermos encostados. Também podemos sentir os sons tocando os objetos que fazem barulho (rádio, tv, computador). Podemos sentir a música, mas sentimos principalmente os instrumentos de percussão (tambores). O som produzido por instrumentos de sopro já não são sentidos, ou são sentidos, mas muito levemente.
Uma noite minha esposa pára de ler e se concentra em algum som. Eu pergunto, curioso:
- O que você está ouvindo?
- Uma ambulância ao longe...
- Porque ambulância? Pode ser um carro de polícia ou de bombeiros.
- Não. Cada um tem uma sirene diferente.
Legal! Minha memória auditiva lembra de sirene. Mas, em Formiga, na minha infância, o que eu ouvia era a sirene de polícia, pois lá não tinha bombeiros e não me lembro de nenhuma ambulância.
Ah, sim, eu só sei que está chovendo quando eu vejo a chuva.

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