quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Eu e as religiões - Final

Levítico 19:14
Com 21/22 anos, parava diante do antigo Cine Art Palácio, na R. Curitiba, aqui em BH, onde os amigos surdos se encontravam. Na década de 80, a Associação dos Surdos ficava ali, algumas salas do lado direito. Atualmente o cine não existe mais. O local é uma grande loja.
Ali eu ficava conversando com os amigos surdos, às vezes combinando ir jogar bola, ir tomar uma cerveja em algum bar próximo ou simplesmente conversar fiado. Quase todos os dias uma garota parava um pouco distante e ficava nos observando. Um dia eu mostrei ao Márcio a garota nos fitando e ele, avacalhado como era, foi até ela e "disse" com sinais:
- Aquele rapaz lá quer falar com você. - e apontou para mim.
Sem esperar resposta, gesticulou "vem, vem", conduzindo a garota.
Ela nos espantou, porque sabia a língua de sinais:
- Eu sou de uma igreja pentecostal. Acho interessante como vocês conversam.
Luciane se tornou presença constante ali junto a nós, surdos. Mas, foi comigo que ela debateu longamente sobre religião. Como ela citava muitos livros bíblicos e um dia citou Levítico várias vezes, fiquei curioso. À noite chegava em casa e e ia ler a Bíblia, em especial Levítico. Ali estava a base da condenação que ainda hoje se faz às imagens (Lv. 26:1). Quando ela citou o livro novamente, tivemos um longo debate:
- Luciane, esse livro é complexo, uma vez que fala de decretos e ordenanças. Ao pé da letra podemos comprar escravos, negociá-los, vendê-los ou deixá-los como herança aos filhos. Você concorda com estas passagens também?
- Era uma coisa aceitável na época em que o livro foi escrito. Hoje a escravidão é inaceitável.
- Você está concordando, então, que muita coisa da Bíblia não é mais aceitável nos dias de hoje. Mas, que naquela época Deus concordava com a escravidão.
- Mas, em relação às imagens, isso não mudou.
- E em relação ao olho por olho, dente por dente? - está em Lv 24:20 - Se matar, terá que ser morto. Se deixar alguém com alguma deficiência, receberá como pena a mesma deficiência.
Ela não respondeu e eu continuei:
- Tanta coisa mudou, este livro está cheio de ordenanças que não podem mais ser praticadas.
- Mas, muita coisa deve ser considerada.
- E quais? A impureza da mulher devido à sua menstruação? Você se considera impura diante de Deus quando está menstruando?
Ela ficou muito vermelha com a pergunta.
Tive receio que ela ficasse com raiva e mudei para uma coisa mais leve:
- Há diversas passagens deste livro que fala sobre sacrifícios de animais. Dependendo do seu pecado, você mata um carneiro e estará perdoado.
- Como eu já disse, nos dias de hoje, isso não é  mais aceito.
- Tem um capítulo que diz quais animais os homens podem comer, os peixes e até os insetos. Por isso repito, nem tudo que está na Bíblia assim deve ser feito.
- A maioria das coisas estão corretas e devemos seguir sim, o que a Bíblia diz.
- Há uma condenação geral ao sexo. Se um homem cometer adultério deverá pagar com a vida.
- Também os homossexuais.
- Mas, você não percebe que há uma falha grave aí, Luciane?
- Porque?
- Deus condena os homossexuais: o homem que dormir com outro homem, deixando claro que ambos deverão ser mortos. Mas, não fala nada de uma mulher dormir com outra mulher.
- Ficou subentendido que mulheres também não poderiam dormir com mulheres.
- Mas, se o livro é tão detalhista sobre como fazer os sacrifícios, sobre os pecados de se dormir com mãe, irmãs, tias, etc, cita um por um, até os animais, não especificar o homossexualismo também para as mulheres? Literalmente consta que ""Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a morte." - Lv 20:13. - Mas, não há uma linha sequer sobre o homossexualismo feminino. Então, seria aceito?
Ela preferiu não polemizar mais:
- Vou conversar com meu Pastor. Não sei te responder sobre isso.

Como ela estava desconfortável com o rumo que a conversa tomou, citei algo curioso, que consta do Levítico:
- Neste livro também há uma ordenança para que não xinguem os surdos, nem façam os cegos tropeçarem. - em Lv 19:14 - Acredito então que, naqueles tempos, os surdos deviam ser muito amaldiçoados.
Ela riu muito disso. E reconheceu que não conhecia esta passagem.
- Não sabia disso, não. - e compreendeu, claro, que eu deveria ter lido o livro em quase toda sua totalidade - Jairo, você leu o livro recentemente?
- Sim, andei dando uma olhada. Fiquei curioso, pois em muitas discussões com crentes, eles citam este livro.
- E como você está lembrando de tantas passagens?
- Eu tenho uma memória excelente. - disse, rindo  - Em relação a essa parte, tenho muitos conhecidos que serão lançados ao inferno, porque o que os ouvintes mais gostam é de xingar um surdo aos gritos. O que tenho de conhecidos que adoram berrar comigo um "ô, viado!", não está no gibi.

Carrilhão
A Fundição de Formiga ficava no fim da Rua 13 de Maio e eu tinha muito medo do local. Havia toda uma lógica de informações contraditórias na cabecinha da criança com 7 anos. Eu ia à missa, sentava nos primeiros bancos da Igreja Matriz, gostava daquela luzinha vermelha no altar e acompanhava com atenção o coroinha, nos momentos em que ele ajudava o Padre e, principalmente quando ele tocava os sinos (carrilhão). Sou surdo, mas minha memória auditiva lembra até hoje como eram interessantes aqueles momentos, devido à magia dos sons do carrilhão.
Ouvia o Padre Clemente com sua voz trovejante, esbravejar:
- Os pecadores queimarão no fogo do inferno. Não haverá salvação para suas almas. - e discorria a falar dos sofrimentos das almas no inferno.
Eu encolhia no banco, os olhos arregalados, imaginando ser queimado pelo fogo do inferno.
Numa época de calor extenuante, minha mãe comenta com minha madrinha:
- Aquele rapaz que passou trabalha lá na Fundição?
Imagem de fundição
- Sim, é o filho da Dona C.
- Nossa Senhora, aquilo lá é um inferno!
Um inferno devido ao calor, claro, mas eu associei a fundição ao inferno, literalmente. Porque quando passava diante da fundição era possível ver as altas labaredas, o chiar do ferro sendo fundido, algumas explosões, o fogo alto e a luminosidade intensa. Ali era o inferno mesmo! A casa do capeta, igualzinho o Padre Clemente falava. Os enterros passavam em direção ao Cemitério do Santíssimo Sacramento (direção contrária à da Fundição) e eu acreditava que os mortos estavam indo para o céu e não para o inferno.
Todas as vezes que eu passava diante da Fundição mudava de passeio, pelo canto dos olhos fitava assustado todo aquele fogaréu e se ocorria alguma explosão de vapor, eu saía em desabalada carreira.


quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Eu e a religião II

A Irmã G., era séria demais, não me lembro dela sorrindo. Fazia parte do Corpo Diretor do Instituto, o que afastava ainda mais o seu convívio com os alunos. Adentrava a sala com passadas firmes, postava-se diante da mesa dos professores e como um padre celebrando missa, ordenava:
- Levantem-se... - entrelaçava as mãos pouco abaixo do queixo, fechava os olhos e iniciava a oração - Pai Nosso, que estais no céu...
Era estranho que ela rezasse e não se preocupasse com os colegas que não faziam leitura labial e não falavam. 
Terminada a oração, abria o livro de História na página já demarcada e mandava a gente ler:
- Leiam o capítulo e façam os exercícios correspondentes.
E só. Ela nunca explicava nada. Nunca deu uma verdadeira aula de história. Sequer escrevia alguma coisa no quadro. Nunca perguntava se entendemos, se tínhamos alguma dúvida. Se queríamos algum esclarecimento. Permitia que fizéssemos as provas com o auxílio do livro de História. Permitia que eu e o Adão ajudássemos os colegas que não sabiam as respostas. Durante a aula ela ficava lendo um outro livro qualquer, algumas vezes um livro de orações.
A aula de História era essa lerdeza, até que um dia...
- Leiam o capítulo XV e façam os exercícios de 1 a 20.
Era um capítulo que falava de Martinho Lutero, da Reforma Protestante. De como ele divergiu da Igreja Católica, acabando por criar a Igreja Protestante ou Luterana. Eu já estava terminando de ler a maior parte do texto quando a Doralice foi até a Irmã G. com o livro de História aberto. Apontou para uma ilustração de Martinho Lutero e perguntou:
- Quem é ele?
- Ele foi um homem muito ruim! Ele dividiu a Igreja Católica. Ele brigou com o Papa e foi excomungado.  - respondeu a Irmã G., fazendo o sinal de negativo repetidas vezes.
Mas, eu já tinha lido o texto e compreendido algumas partes. E acreditei que, enfim, teríamos aula de verdade.
- Mas, Irmã, Lutero estava certo em não concordar com as indulgências. Um absurdo que a Igreja Católica vendesse um papel dizendo que os pecados estavam perdoados.
Eu não percebi o olhar da Irmã G. e continuei:
- Lutero estava certo ao afirmar que a salvação é pela fé em Jesus Cristo e que Deus nos oferece essa salvação gratuitamente. Discordo que ele não valorize as boas ações. Mas, ele estava certo em ser contra a venda de indulgências e...
- Jairo! - a face da Irmã G. estava rubra.
A sensação foi de que "escutei" o grito da Irmã. Mal conseguia encará-la nos olhos.
O Adão, que sempre me satirizava quando um professor me chamava a atenção, dessa vez estava caladinho, tão assustado quanto eu.
- Termine o seu dever em silêncio.
Martinho Lutero
Nunca mais questionei a Irmã G. Na verdade, se fosse uma boa professora, teria argumentos fortíssimos para contrariar o meu entusiasmo com Lutero. Apesar de grande parte das propostas de Martinho Lutero serem positivas, ele não deseja a divisão da Igreja, somente a reforma. Foi contra a rebelião, foi contra, inclusive, como a insurreição modificou as missas. Sim, ele deu motivos para a divisão, mas não era a favor. E era antissemita, escreveu que a Alemanha deveria ficar livre dos judeus, expulsá-los, despojá-los de dinheiro, jóias, prata e ouro. Ora, isto é justamente o que fizeram os nazistas. A Igreja Luterana não concorda com todos os escritos de Martinho Lutero, principalmente os que ele escreveu sobre os judeus. A Irmã G. poderia ter esclarecido muita coisa naquele momento. Eu era um adolescente, sobre antissemitismo sequer tinha ideia do que fosse.

Só muitos anos depois, já com a idade mais avançada e estudando na E.E. José Bonifácio, com intérprete em sala de aula e excelentes professores, vim a debater novamente sobre História; e a religião na história. O Professor E., professor de História com quem tive bons debates relacionados à matéria.
- A Igreja Católica foi muito importante na formação da sociedade como a vemos hoje.
- O senhor realmente acredita nisso, Professor?
- Porque não, Jairo?
- As fogueiras da Inquisição, as Cruzadas, a Reforma Protestante... matou-se muito em nome de Deus.
- Com o tempo a sociedade passou a separar Religião de Estado. A maioria dos países vive sob regime de estado laico.
Mais informalmente, eu perguntei:
- O senhor acredita que Deus deixou o povo passar por tudo isso para melhorar o mundo?
- Não, Jairo! Dou os créditos para a Igreja Católica e seu papel na História. Mas, eu sou ateu.
Nem a intérprete entendeu, mas eu e o Professor E. gargalhamos muito.

Domingo era dia de descanso. Depois virou dia de visita dos evangélicos. Quando morei em Contagem, o prédio não tinha portaria, o que permitia que entrassem e tocassem a campainha de todos os apartamentos. Minha esposa levantava irritada e abria a porta para as senhoras bem vestidas. Elas começavam a falar e ela não tinha como interrompê-las. Acabava recebendo os folhetos e livretos da igreja, prometendo que iria participar de algum culto, proximamente. Voltava para a cama irritada, não conseguia dormir novamente. Lá se ia a manhã de domingo para um sono mais prolongado.
Um domingo, tocam a campainha e ela vai atender. Pelo olho mágico percebe logo que são outras senhoras evangélicas. Com a insistência (sim, elas não desistem, apertam a campainha até alguém vir atender), minha esposa não tem dúvidas: me acorda e manda eu atender a porta. Eu, quase sempre acordo cedo e portanto, já estava meio acordado.
- Mas, o que... - pergunto.
- As donas evangélicas estão batendo a campainha. Você vai lá e conversa com elas...
- Eu???
- É, é, é... anda, vai logo.
Atendo as senhoras evangélicas, com seus folhetos e convites para culto. Uma delas inicia a palestra de sempre, mas eu a interrompo:
- Sinto muito, senhora, mas eu sou surdo.
Um pequeno momento de silêncio entre todas, mas elas não desistem:
- Você não gostaria de participar de um culto - pergunta uma delas, mostrando o endereço no folheto - na nossa igreja?
- Não, não...
- Ora, você deve receber Jesus em seu coração e...
Eu a interrompo, levantando a mão, num sinal de espere:
- Senhora, sou católico e estou feliz com minha religião. Não pretendo mudar de religião. Não pretendo participar de culto de nenhuma Igreja. - as senhoras ficam mudas e sem graça - Tenham um bom domingo.
Minha esposa, que escutou a conversa do outro lado da porta, riu muito.
E em todos os lugares que moramos, todas as vezes que ela percebia que quem tocava a campainha eram evangélicos, ela dizia, rindo:
- Vá lá falar que você não que participar de culto ....

Certa vez, passando diante de uma igreja evangélica, a moça na porta começa a falar comigo e eu esclareço:
- Desculpe, moça, mas eu sou completamente surdo.
- Tudo bem! - ela falou um pouco mais devagar - Você não quer entrar e conhecer a nossa igreja?
- Ah, não dá não, moça. Eu estou indo para um terreiro de candomblé.
Eu falei brincando, mas a expressão horrorizada da moça, que recuou dois passos, eu nunca esqueci.

Um réveillon eu e alguns colegas surdos fomos em uma igreja evangélica, em um bairro afastado de BH. Fomos por causa de uma amiga ouvinte de um dos colegas, que queria ser intérprete. Eu estava com 22/23 anos. Éramos quatro surdos. Rimos quando percebemos que havia um líquido vermelho numa mesa ao fundo, com alguns salgadinhos. Ficamos nos perguntando se era vinho. O culto foi rápido (Aleluia! Glória a Deus!) e a amiga do nosso colega conversou bastante conosco. O "vinho" era suco de groselha. Horrível. Sem açúcar. O Pastor se aproximou, curioso e mais curioso ainda ficou quando percebeu que eu falava normalmente e que entendia de preceitos religiosos. Os outros colegas estavam concordando em mudar de religião, mas eu não.
- Ora, a Igreja Católica tem o meu maior respeito, - disse o Pastor - mas comete um grande erro com sua adoração aos santos
Falou por alguns minutos, citando passagens bíblicas, com boa argumentação.
Eu disse:
- Eu considero errado adoração a santos, mas em sua maioria, os católicos compreendem muito bem que as imagens apenas representam pessoas que demonstraram uma fé incrível em Jesus e por isso a Igreja Católico considera estas pessoas, os santos, como especiais.
- Mas, a salvação só se dá através do Senhor Jesus.
- Nenhum católico nega isso. Todos sabem que a salvação não se dará crendo em santos e sim, crendo em Jesus. Os santos são exemplos de vida que devemos imitar. O Sr. pode não considerar São Francisco de Assis um santo, mas há de concordar que o amor que ele tinha pelos animais e o seu despojamento da riqueza em favor dos pobres é sim, um exemplo de vida.
A intérprete traduzia a conversação com entusiasmo e chegou a sorrir, ouvindo minha argumentação.
- Numa conversa sem atributos religiosos, Sr. Pastor, o senhor concordaria que Francisco de Assis foi um exemplo admirável de um coração bastante próximo de Jesus?
O Pastor me fitou sorrindo:
- Sim, mas eu não o adoraria.
- Nem eu o adoro, Pastor. Apenas admiro o que ele fez em vida.
O Pastor me abraçou, sorrindo e disse:
- Jairo, você não gostaria mesmo de participar de minha igreja?
- Não, Sr. Pastor. Mas, não vou esquecer a acolhida carinhosa que eu e meus amigos tivemos. Também não vou esquecer o respeito com que o Sr. me tratou.
E acrescentei:
- O senhor não acha que é justamente Jesus que nos une neste momento tão descontraído, independente da igreja que seguimos?

Tenho o maior respeito por todas as religiões. Acredito que, não importa qual religião; todas procuram levá-lo para Deus.

- x.x.x.x.x.x.x.x.x.-

Eu e as religiões III

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Eu e a religião I

Minha religião é a católica. Fui batizado, fiz Catecismo e Primeira Comunhão. Ia à missa todo domingo, quando pequeno, na missa das 8 horas, que era a Missa das Crianças. Mais tarde, na Missa dos Jovens, aos sábados. Depois que fiquei surdo, continuei frequentando a Igreja, indo às missas, participando de Grupo Jovem. Mas, quando houve a grande repercussão dos casos de pedofilia, e o pouco combate a esse problema, eu me distanciei da Igreja.

Cortador de hóstias manual
Estava fazendo Catecismo e foi interessante quando uma Irmã de Caridade, do Colégio Santa Terezinha, nos levou até o colégio e nos mostrou como eram feitas as hóstias. Ela nos mostrou a massa de pão, praticamente farinha de trigo e água, sem qualquer outro ingrediente. E como eram recortadas manualmente, com um cortador de metal, de formato circular. Ela colocou uma massa já pronta na mesa e nos deixou recortar algumas hóstias. E nos entregou para experimentar. E um dos colegas, assustado:
- Mas, eu ainda não confessei!!! - já se denunciando como um pequeno pecador.
A Irmã sorriu e explicou:
- Estas hóstias ainda não foram consagradas, então, elas são somente pão mesmo.

Igreja Matriz de S. Vicente Férrer
Formiga - MG
Quando as missas eram mais concorridas (Natal, Páscoa, etc), a Igreja Matriz abria também as portas de acesso ao segundo pavimento. Com os amigos, era mais interessante assistir à missa do segundo pavimento. Muitas vezes, ao término da missa, eu e os amigos Tonho e Emílio explorávamos algumas salas ali do alto. Como a iluminação era fraca, com as antigas lâmpadas incandescentes de poucos volts, era um pouco assustador. Lembro que uma vez passávamos por um corredor escuro e havia luz por entre as frestas de uma porta trancada. Olhamos pela pequena abertura da porta e como fui o último, eles riram do meu susto. Havia uma imagem de um Santo ou Papa, não sei qual, sentado em um trono postado de frente para a porta. Havia um amontoado de outras imagens mais atrás, mas quem olhava pela fresta fixava justamente esta imagem, a expressão e o olhar muito sérios.
- Dizem que um dia ele piscou - disse meu amigo Emílio.
Eu e o Tonho rimos:
- E quem garantiu isso? A própria pessoa que olhou?
Nunca soube que santo era aquele.

Antigamente eram chamados apenas de Missionários os hoje Pastores, que se consideram milagrosos. De um a dois anos depois que fiquei surdo, muitos Missionários passaram por Formiga. Os Missionários faziam propaganda maciça do evento que realizariam na cidade, prometendo curas milagrosas. Eu estava com 15 anos quando mais um Missionário anunciava sua presença na cidade. O Tonho insistia:
- Vamos lá? Ele diz que cura muita coisa, doenças, paralíticos, cegos.
- Não. - em debates anteriores, eu já tinha dito ao meu amigo que não duvidava da minha fé, mas que também não concordava, nem acreditava nestes missionários.
- Mas, o que que tem? Você não vai perder nada se for.
Eu respeitava sobremaneira os princípios católicos e não concordava com o método dos missionários. Conversei com minha mãe; ela não polemizou, sabia como eu pensava (ouvia as minhas conversas com o Tonho sem interferir) e só quando eu perguntei o que ela achava, ela se pronunciou:
- Você que sabe. Vão lá para vocês verem como é...
E assim eu e o Tonho fomos. O Missionário estava em um salão alugado, pouco depois da Praça Ferreira Pires. Assistimos ao evento, muitas orações e pedidos de ajuda. O Tonho conversava comigo utilizando o alfabeto dos surdos (datilologia). Ele escrevia as frases com uma rapidez incrível. Ele traduziu quase todo o evento desta forma. Ao final o Missionário disse que quem quisesse poderia se aproximar para um contato mais pessoal. O Tonho me leva até o Missionário. O Missionário já tinha "derrubado" umas cinco pessoas à minha frente. Chega minha vez e o Tonho relata brevemente o meu caso:
- Ele ficou surdo tem dois anos.
- Você acredita em Deus? - o Missionário me pergunta e o Tonho escreve rapidamente a pergunta.
- Sim. - eu respondo.
O Missionário manda que eu feche os olhos e reze com toda fé (o Tonho traduz). No que eu fecho os olhos o Missionário põe a mão espalmada na minha cabeça e começa a me empurrar para trás. Eu me apoio na perna direita, mantendo o corpo firme. O Tonho também estava me segurando. Eu era um garoto ainda, bem mais baixo que o Missionário. Naquele embate; o Missionário me empurrando e eu fazendo força contra, mal consegui rezar alguma coisa. Instantes depois o Missionário solta minha cabeça bruscamente e, como eu estava fazendo força contrária, quase trombo com ele. O Tonho me segurou.
O olhar do meu amigo era uma expressão pura de "e aí?".
- Vamos embora! - eu disse, simplesmente.
Nunca esqueci a decepção do meu amigo Tonho, visível no seu olhar triste. Ele tinha mais esperanças do que eu de que eu voltaria a ouvir. Eu, no entanto, não tinha sido abalado no meu bom humor:
- O Missionário queria me derrubar à força! Ele ficou me empurrando...
- Mas, você quase caiu foi em cima dele.
- Claro, ele me empurrava para trás e eu fazia força para a frente.

No Instituto Santa Inês, o ambiente religioso contava com as freiras professoras (uma que ministrava aula de Datilografia e outra de História) e com um padre, que dava aula de Ensino Religioso. A Irmã C., a cruzeirense que nos ensinava Datilografia era uma freira sorridente, feliz com o que fazia, nunca a vi brava, nem mesmo quando fazíamos alguma arte (eu e meu colega Adão, principalmente). Ela chamava a atenção com um sorriso nos lábios e terminava a frase da mesma maneira que outras tantas freiras do ISI:
- Mas, vocês dois são muito difíceis...

O Padre J.M. era tranquilo. Fumava (na época, o cigarro ainda não era tão combatido como hoje) e ria quando eu pedia um cigarro:
- Nada de fumar, Jairo. Você ainda está muito novo. - estudei no ISI dos 14 aos 16 anos - Quando fizer 18, você resolve.
Em uma aula ele estava andando para um lado e outro enquanto falava e toda hora tropeçava na mesa ao canto, que tinha aparelhagem para áudio (estragada). Todas as mesas eram fixas no chão. No terceiro tropeção, o Padre J.M. resolveu tirar a mesa dali. E começava a fazer um esforço descomunal para empurrar a mesa para o canto.
Eu e o Adão rindo a não poder mais.
- Do que vocês estão rindo? - pergunta o Padre J.M., meio sério e tenta empurrar a mesa novamente.
Rimos mais ainda. Nossa colega mais velha levanta-se, recriminando nós dois.
- Faz assim não, meninos. - e apontando para os pés da mesa presa ao chão, fala para o Padre - Aí, Padre. A mesa tem parafusos.
- Ah, pregada!
A expressão que o Padre fez só conseguiu arrancar mais gargalhadas.
Ele também riu e nos apontou com a famosa frase:
- Vocês dois são muito difíceis...

(continua)
Eu e a religião II