segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O violão

Corporação Musical S. Vicente Férrer - Formiga-MG
Sede da Banda
(imagem: Google Maps)
Ouvi durante 12 anos e meio, tempo mais que suficiente para boas lembranças de quase todo tipo de música. Embora vagamente, também lembro de orquestras tocando clássicos. Ouvi a maioria dos músicos da MPB e da Jovem Guarda. De músicas sacras e do som magnífico do órgão da Igreja Matriz de São Vicente Férrer, que as freiras tocavam, somente em ocasiões especiais, Páscoa e Natal, por exemplo. Gostava muito da Banda, da Corporação Musical de São Vicente Férrer. Horas e horas lá na “sede da Banda”, ouvindo os músicos ensaiando. Eles deixavam a porta principal aberta, a molecada entrava, porém, ficavam todos quietos, usufruindo o prazer das músicas. Eles tocavam em eventos da cidade, carnaval, festas. Lembro-me da Banda passando pelas ruas às 5 horas da manhã, era a Alvorada. Outra lembrança forte é a Banda acompanhando e tocando a Marcha Fúnebre na procissão da Sexta-feira da Paixão. 
Depois de surdo, a música continuou fazendo parte do meu viver, pois em Formiga eu só convivia com ouvintes. Assim, com meu amigo Antônio, vez ou outra estávamos cantando. Ele era um grande incentivador de que eu cantasse junto, músicas antigas.
Ele aprendeu a tocar violão. A maioria dos amigos sabia tocar, participavam do Grupo Jovem e a música fazia parte. Quando visitávamos o asilo, cantavam acompanhados de violão em visita a cada quarto. Era bom ver os velhinhos animados, acompanhando os amigos cantantes. Eu não cantava. Era figurante mesmo. Às vezes os velhinhos percebiam e falavam:
- Canta também, filho!
Os amigos explicavam que eu era surdo, não tinha como acompanhar a música. Discorriam sobre minha surdez, como fiquei surdo. Era uma história que agradava muito os velhinhos e eu brincava com meus amigos:
- Acho que vocês gostam que eu vá junto para ficar contando minha história para os velhinhos.
Via o violão na minha casa, da minha irmã mais nova, na casa do meu primo, na casa do Antônio e demais amigos. Era um instrumento comum aos jovens. Mas notei, ao sentir os sons com o tato, que era quase imperceptível a diferença das notas (a sensação das notas mais fortes suplanta as notas mais suaves).
Quando eu cantava a “Canção do Exílio”, na estrofe sobre o violão, ficava matutando como seria cantar com o violão realmente junto ao corpo. Um dia, adentrando a casa do meu amigo Antônio na hora do almoço, vi o violão sobre a cama. Nós já trabalhávamos aos 18 anos e na hora do almoço eu ia à casa dele conversar fiado e, como era “de casa”, entrava e aguardava no quarto. Normalmente só a avó dele estava em casa, no quarto dela.
Pego o violão, encaixo no corpo, vou apenas dedilhando e solto a voz:

 “Você sabe de onde eu venho
É de uma pátria que eu tenho
No bojo do meu violão
Que de viver no meu peito
Foi até tomando jeito
De um enorme coração”

Meu amigo invade o quarto rindo:
- Primeiro, não é seu, não, esse violão é meu. Segundo, você está cantando alto! Lá da rua deu para te escutar.
Um dos problemas de ser surdo e falar normalmente é o descontrole sobre o tom de voz. Quando penso que estou falando baixo é justamente o contrário.
Nós dois rimos muito. Conversamos sobre o ocorrido.
- Os soldados ficavam longe de casa, dando origem a essas músicas que falavam do amor à terra distante. Nessa estrofe o cantador percebe que o violão é o coração saudoso da terra.
- E você quis ter o violão junto ao corpo por quê?
- Para entender a sensação do poeta. – rimos. – Será que ele compôs a estrofe enquanto estava com o violão ou somente depois, relembrando a imagem?


Muitos surdos gostam da música em Libras. A não ser que seja interpretação literal da música, eu não gosto. Provavelmente por saber exatamente como é a música e seu acompanhamento instrumental.
A música em Libras, na maioria das vezes, não se preocupa com a letra da música. Para alguns, não há problemas nesta desconexão, mas eu, particularmente, considero a letra importante também.

Mas, junto com amigos surdos e ouvintes, se há uma real animação, dançamos e nos alegramos, mesmo sem ouvir a música.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Entrevistas

Eu fazia a entrevista dos candidatos ouvintes que iriam trabalhar conosco.

Uma das primeiras candidatas era jovem, sabia Libras razoavelmente e estava bastante disposta a aprender. Respondeu todas questões com naturalidade, informou que fazia curso de Libras em uma entidade de surdos.
Porém, ela era evangélica e acreditava que os surdos precisavam ser salvos.
Trabalhou conosco apenas os três meses de experiência. Porque um dia, quando estávamos em reunião, a portas fechadas, ela adentrou a sala e diante dos diretores atônitos, colocou um papelzinho para todos. Era um convite para o culto evangélico. E ainda cobrou:
- Não deixem de comparecer, tá?
Mais tarde, fui eu quem teve que lhe repreender:
- Você não pode entrar na sala quando estamos em reunião, a não ser que seja algo extremamente importante!
- Você não gosta de Jesus, Sr. Jairo?
- Não tem nada a ver com Jesus. São regras que se seguem no ambiente de trabalho.
- Está bem. Mas eu espero que o senhor compareça no culto hoje.
- Jesus!! – mas eu disse baixo o suficiente para ela não ouvir.
Como ela não parava de falar no salvamento dos “pobres surdos”, insistindo todos os dias que deveríamos participar dos cultos, foi dispensada ao término da experiência.

Um jovem, bastante humilde, se apresenta. Inicio a entrevista:
- Como é seu nome?
- Marcelo.
- Marcelo, você já trabalhou com surdos?
- Não.
- Tem contato com surdos?
- Eu conheço o mudinho lá do bairro. E ajudo muito ele para conseguir uns bicos. Limpar quintal, ajudar em mudanças, bater laje.
- Mudinho?
- É, ele não fala nada. Não escuta nada também. O senhor não é mudo?
- Não... – percebi o intérprete segurando o riso na mesa mais afastada – Estou aqui falando com você, não é mesmo? Mas, eu sou totalmente surdo.
- O mudinho lá do bairro também é surdo como uma porta. A gente grita e ele não escuta nada. O senhor escuta um pouco, né? Eu estou falando e o senhor está escutando tudo!
- Não, não. Não estou escutando. Estou lendo seus lábios.
- Nossa! Como o senhor faz isso?
- É uma característica de alguns surdos. – eu estava sorrindo – Você sabe como trabalhará conosco aqui?
- Não sei não, senhor! A moça – a secretária que ia sair - falou que aqui tem muitos mudinhos. Atender o telefone, ajudar o senhor e os outros mudinhos.
- Você sabe alguma coisa de Libras? – e diante da expressão de confusão dele, acresci – A língua de sinais dos surdos.
- Só o básico. Igual eu falo com o mudinho lá do bairro.
- O básico? Qual é o básico que você sabe?
- “Comer”, “beber”, “trabalhar” – retirou o suor da testa com o indicador – “fumar”, “certo” – fez o sinal de positivo – “errado” – sinal de negativo – e “levar ferro” – e fez o tradicional “top-top-top” (a mão aberta batendo na outra em forma de “o”)
- Está bom, Marcelo. Vou conversar com os outros colegas e qualquer coisa, “a moça” liga para você, está bem?
- Está, Sr. Jairo. Quando eu começo a trabalhar?
- Tem outras pessoas para entrevistar ainda. Agradeço sua boa vontade em comparecer aqui.

Importante: os sinais utilizados pelo jovem não são sinais básicos de Libras. Alguns são considerados mímica. Outros são considerados classificadores. Muitos dos sinais de Libras são oriundos da mímica referente ao ato, como beber, comer e fumar. Mas, o sinal de trabalhar já é bem diferente do classificador utilizado pelo jovem. O gesto obsceno é gesto obsceno, independente se utilizado por surdos ou não.

Uma candidata de mais idade. Ao contrário dos demais candidatos, desta vez eu que a tratava com deferência.
- Sra. Matilde, a carteira de trabalho da senhora indica que trabalhou muitos anos como secretária – e numa grande empresa mineira. – A senhora já trabalhou com surdos?
- Não, mas nos últimos dois anos trabalhei em uma APAE, lidando com deficientes.
- Não consta na sua carteira de trabalho.
- Foi um trabalho mais para voluntário que contratual. Recebi pagamentos como autônoma.
- Lidou com surdos?
- Alguns...
- Sabe alguma coisa de Libras? Porque eu leio nos lábios e tenho facilidade de conversação, mas a maioria com quem a senhora lidará, não.
- Não sei, não. Mas aprendo fácil. – e no momento seguinte eu não percebi a mudança de quem entrevistava quem – Você tem filhos, jovem?
- Sim, tenho dois meninos.
- Que bom. Os filhos são uma coisa muito importante na vida, não é mesmo? Porque você ficou surdo?
- Eu tive meningite com 12,5 anos. A sequela foi a surdez bilateral profunda.
- Os outros também são surdos?
- Sim. Alguns em menor ou maior grau de surdez.
- Essa é sua sala?
- Sim! – respondi, estranhando a pergunta.
- É que aqui tem uma corrente de ar frio. Você deveria fechar a janela ou usar um agasalho.
- Obrigado. – percebendo o desvio da conversação, voltei à entrevista – A senhora nos auxiliará, principalmente, com telefonemas, atendimento ao público e a diversos outros surdos.
- Pode ficar tranquilo. Tenho grande experiência. Saberei cuidar de todos vocês.
- Está bem... – mas eu não fiquei tranquilo. Aquele “saberei cuidar de todos vocês” parecia muito mais a frase de uma mãe.
Observando a Sra. Matilde, com sua face rechonchuda, sorriso agradável, óculos na ponta do nariz, o cabelo grisalho adornado com um caprichado coque, parecia estar diante de uma mãezona, que realmente cuidaria de nós. Senti vontade de rir. Já imaginava eu chegando gripado e a Sra. Matilde indo preparar um chazinho de limão.

Tanto o Marcelo como a Sra. Matilde, não foram contratados.

Os nomes foram trocados, por motivos óbvios.