quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Entrevistas

Eu fazia a entrevista dos candidatos ouvintes que iriam trabalhar conosco.

Uma das primeiras candidatas era jovem, sabia Libras razoavelmente e estava bastante disposta a aprender. Respondeu todas questões com naturalidade, informou que fazia curso de Libras em uma entidade de surdos.
Porém, ela era evangélica e acreditava que os surdos precisavam ser salvos.
Trabalhou conosco apenas os três meses de experiência. Porque um dia, quando estávamos em reunião, a portas fechadas, ela adentrou a sala e diante dos diretores atônitos, colocou um papelzinho para todos. Era um convite para o culto evangélico. E ainda cobrou:
- Não deixem de comparecer, tá?
Mais tarde, fui eu quem teve que lhe repreender:
- Você não pode entrar na sala quando estamos em reunião, a não ser que seja algo extremamente importante!
- Você não gosta de Jesus, Sr. Jairo?
- Não tem nada a ver com Jesus. São regras que se seguem no ambiente de trabalho.
- Está bem. Mas eu espero que o senhor compareça no culto hoje.
- Jesus!! – mas eu disse baixo o suficiente para ela não ouvir.
Como ela não parava de falar no salvamento dos “pobres surdos”, insistindo todos os dias que deveríamos participar dos cultos, foi dispensada ao término da experiência.

Um jovem, bastante humilde, se apresenta. Inicio a entrevista:
- Como é seu nome?
- Marcelo.
- Marcelo, você já trabalhou com surdos?
- Não.
- Tem contato com surdos?
- Eu conheço o mudinho lá do bairro. E ajudo muito ele para conseguir uns bicos. Limpar quintal, ajudar em mudanças, bater laje.
- Mudinho?
- É, ele não fala nada. Não escuta nada também. O senhor não é mudo?
- Não... – percebi o intérprete segurando o riso na mesa mais afastada – Estou aqui falando com você, não é mesmo? Mas, eu sou totalmente surdo.
- O mudinho lá do bairro também é surdo como uma porta. A gente grita e ele não escuta nada. O senhor escuta um pouco, né? Eu estou falando e o senhor está escutando tudo!
- Não, não. Não estou escutando. Estou lendo seus lábios.
- Nossa! Como o senhor faz isso?
- É uma característica de alguns surdos. – eu estava sorrindo – Você sabe como trabalhará conosco aqui?
- Não sei não, senhor! A moça – a secretária que ia sair - falou que aqui tem muitos mudinhos. Atender o telefone, ajudar o senhor e os outros mudinhos.
- Você sabe alguma coisa de Libras? – e diante da expressão de confusão dele, acresci – A língua de sinais dos surdos.
- Só o básico. Igual eu falo com o mudinho lá do bairro.
- O básico? Qual é o básico que você sabe?
- “Comer”, “beber”, “trabalhar” – retirou o suor da testa com o indicador – “fumar”, “certo” – fez o sinal de positivo – “errado” – sinal de negativo – e “levar ferro” – e fez o tradicional “top-top-top” (a mão aberta batendo na outra em forma de “o”)
- Está bom, Marcelo. Vou conversar com os outros colegas e qualquer coisa, “a moça” liga para você, está bem?
- Está, Sr. Jairo. Quando eu começo a trabalhar?
- Tem outras pessoas para entrevistar ainda. Agradeço sua boa vontade em comparecer aqui.

Importante: os sinais utilizados pelo jovem não são sinais básicos de Libras. Alguns são considerados mímica. Outros são considerados classificadores. Muitos dos sinais de Libras são oriundos da mímica referente ao ato, como beber, comer e fumar. Mas, o sinal de trabalhar já é bem diferente do classificador utilizado pelo jovem. O gesto obsceno é gesto obsceno, independente se utilizado por surdos ou não.

Uma candidata de mais idade. Ao contrário dos demais candidatos, desta vez eu que a tratava com deferência.
- Sra. Matilde, a carteira de trabalho da senhora indica que trabalhou muitos anos como secretária – e numa grande empresa mineira. – A senhora já trabalhou com surdos?
- Não, mas nos últimos dois anos trabalhei em uma APAE, lidando com deficientes.
- Não consta na sua carteira de trabalho.
- Foi um trabalho mais para voluntário que contratual. Recebi pagamentos como autônoma.
- Lidou com surdos?
- Alguns...
- Sabe alguma coisa de Libras? Porque eu leio nos lábios e tenho facilidade de conversação, mas a maioria com quem a senhora lidará, não.
- Não sei, não. Mas aprendo fácil. – e no momento seguinte eu não percebi a mudança de quem entrevistava quem – Você tem filhos, jovem?
- Sim, tenho dois meninos.
- Que bom. Os filhos são uma coisa muito importante na vida, não é mesmo? Porque você ficou surdo?
- Eu tive meningite com 12,5 anos. A sequela foi a surdez bilateral profunda.
- Os outros também são surdos?
- Sim. Alguns em menor ou maior grau de surdez.
- Essa é sua sala?
- Sim! – respondi, estranhando a pergunta.
- É que aqui tem uma corrente de ar frio. Você deveria fechar a janela ou usar um agasalho.
- Obrigado. – percebendo o desvio da conversação, voltei à entrevista – A senhora nos auxiliará, principalmente, com telefonemas, atendimento ao público e a diversos outros surdos.
- Pode ficar tranquilo. Tenho grande experiência. Saberei cuidar de todos vocês.
- Está bem... – mas eu não fiquei tranquilo. Aquele “saberei cuidar de todos vocês” parecia muito mais a frase de uma mãe.
Observando a Sra. Matilde, com sua face rechonchuda, sorriso agradável, óculos na ponta do nariz, o cabelo grisalho adornado com um caprichado coque, parecia estar diante de uma mãezona, que realmente cuidaria de nós. Senti vontade de rir. Já imaginava eu chegando gripado e a Sra. Matilde indo preparar um chazinho de limão.

Tanto o Marcelo como a Sra. Matilde, não foram contratados.

Os nomes foram trocados, por motivos óbvios.


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