sábado, 11 de fevereiro de 2017

Surdos e piadas

Os amigos insistiam em fazer brincadeiras com palavras, principalmente porque eu, não tendo dificuldades com o português, muitas vezes parecia ser a vítima ideal. O Amarildo adorava estas brincadeiras de palavras e vez ou outra estava tentando me pregar peças:
- Aquele nosso amigo tem o apelido de Bibi Xixi... Chama ele pra você ver...
Eu percebia o duplo sentido na palavra “bibi”, mas como ele escreveu com o alfabeto manual fui em frente e chamei:
- Ô, Bibi Xixi...
O Amarildo começa a gargalhar feito louco, me apontando:
- Hahahahaha, você bebeu xixi???
Eu explico:
- Meu amigo, você escreveu (com o alfabeto manual) BIBI e não BEBI. Há uma grande diferença entre estas duas palavras, mesmo que o som seja parecido...
- Ah, nada disso. Você caiu na pegadinha e não aceita.
- Como caí na pegadinha, Amarildo? Se você está tentando uma pegadinha de palavras comigo, você não pode usar o alfabeto manual. Você escreveu o apelido Bibi e não o verbo da palavra beber. No momento que você fez isso, a pegadinha morreu.
Meu amigo não aceitou muito bem essa explicação. Para ele, eu caí na pegadinha.
Na roda de amigos, eles perguntaram então, como os surdos fariam esta brincadeira:
- É muito raro brincadeiras dos surdos com duplo sentido das palavras.
- Por quê?
- Porque ao utilizar Libras cada palavra terá seu sinal próprio. Assim, embora no português você possa dizer “galo” para a ave e para um calombo na testa; em Libras vão ser utilizados dois sinais específicos. Não tem como confundir um com o outro. Você pode dizer “você quer um galo?”, mas vai ter que especificar que “galo” é esse.
Lembro-me de outro amigo me perguntando (era carnaval):
- Você está com a barriga cheia de beber (bebê)?
- Heim?
É outro ponto a ressaltar. Dificilmente eu respondo algumas perguntas sem perguntar “o que?” ou “heim?”. É outro fator que “quebra” muitas brincadeiras de palavras.
- Você está com a barriga cheia de beber?
- Cheia o que?
- De beber! – e ele fez o sinal de beber, movimentando o polegar diante da boca.
- Ah, sim, bebi bastantinho...
- Hahahahaha, você está com a barriga cheia de bebê? – e fez o sinal de embalar um neném.
- Não, né? Você mesmo fez o sinal de beber e não de bebê.
Foi outro que discutiu bastante, não querendo aceitar que a brincadeira não funcionou comigo.
Os surdos utilizam muito mais as brincadeiras visuais. As piadas envolvem surpresas com a própria surdez, com os sinais e as pegadinhas muitas vezes precisam de um colega para combinar. Assim como há pessoas que sabem contar uma piada e outros não, também há surdos que são excelentes para interpretar uma piada e outros não. As piadas dos surdos são engraçadas em Libras. Em texto, perdem muito do seu potencial, que é a dramatização, a mimetização dos personagens, as expressões faciais. Grande parte das piadas envolve a questão da surdez e características da comunidade surda.
São piadas famosas a do soldado surdo e o soldado ouvinte, o pássaro surdo, o lenhador, o barbeiro.
Uma piada comum entre os surdos é a do leão. Inclusive, é uma piada quase universal, pois surdos de outros países também a contam, com algumas variantes. Há vídeos no youtube possibilitando ver esta piada contada por surdos brasileiros, americanos, portugueses e franceses.

“O leão.
Um violinista realiza seu sonho e compra um violino Stradivarius. Procura um local para tocar o violino, mas a sala está cheia de empregadas varrendo e conversando. Vai para uma montanha, mas a montanha estava cheia de alpinistas contando das escaladas. Então, ele vai para o deserto africano e enfim, sozinho, começa a tocar seu violino. Aparece um leãozinho, novo, mas forte e faminto. O violinista mais que depressa toca seu violino, uma canção lenta e tranquila. O leãozinho dorme. Que alívio! Mas quando o violinista vai sair do local aparece a mãe do leãozinho, uma leoa grande e feroz. Com calma, ele volta a tocar seu violino, outra canção lenta e tranquila. A leoa adormece também. Quando ele pensa que poderá ir embora, aparece o leão. O violinista volta a tocar outra música tranquila, mas o leão continua avançando. Ele toca mais rápido, mas o leão continua avançando. Passo a passo o leão se aproxima e devora o violinista. Que azar! Era um leão surdo!”

Devido aos direitos autorais dos colegas surdos que gravam os vídeos com essas piadas, não estou colocando nenhum aqui. Sugestão: procurar no google “piadas em Libras”, que retornará inúmeros vídeos.


domingo, 29 de janeiro de 2017

Meus tempos de jornaleiro - O Lavador de Carros

Meu trabalho na banca de revistas era complicado; eu tinha que ler nos lábios das pessoas o nome da revista solicitada. Dificilmente eu não entendia, por um motivo muito simples: sabendo o nome de todas as revistas e jornais que eu tinha à venda, era fácil comprrender o que estavam pedindo. Já relatei que o marinheiro Cláudio se tornou um bom amigo e me auxiliava de vez em quando. Outro que aprendeu a conversar comigo foi o lavador de carros, que lavava os carros dos associados do clube próximo à banca. O nome dele era Ricardo. Eu vendia cigarro "picado" (expressão para venda de cada um dos 20 cigarros de um maço) e o Ricardo pedia um, dois, cinco, dez cigarros por dia. Eu ficava no prejuízo e então eu combinei com ele:
- Ricardo, não posso lhe dar cigarros sem cobrar. Vou lhe dar dois por dia, mas o resto você paga, certo?
Ele riu e concordou. Pedia um cigarro de manhã e um de tarde. Eu lhe dava muitas gorjetas, pois ele me ajudava bastante. Buscava almoço, quando eu não levava marmita. Telefonava para mim, quando o jornal não era entregue (apesar do pouco estudo, ele era esperto, conversava ao telefone com segurança, entendendo o que eu solicitava). Algumas vezes eu lhe dava cigarros, outras, dinheiro mesmo. Eu preferia lhe dar cigarros, pois sabia que muitas vezes o dinheiro que ele pedia era para beber. Ele bebia muito e o mais triste era quando ele chegava de manhã, bebâdo, cambaleando. Muitas vezes eu dizia para ele:
- Ricardo, ninguém vai lhe entregar chave de carro hoje. Você bebeu muito!! Melhor você voltar mais tarde. - eu lhe dava um cigarro, ele ia embora e voltava mais tarde, um pouco melhor.
Ele sumiu uns tempos e eu comentei com o Cláudio:
- Tem quase um mês que não vejo o Ricardo.
- O Sérgio (filho de um morador local) disse que ele foi atropelado.
A família do Sérgio ajudava bastante o Ricardo. Davam alimento, roupas e permitiam que ele pegasse água no quintal da casa deles para lavar os carros, para evitar ficar pegando água no clube direto.
Dias depois o Ricardo apareceu, dizendo que ia ganhar um bom dinheiro por causa do atropelamento. Conversando ali na banca, eu, ele e o Cláudio, eu pedi para ver o Boletim de Ocorrência. Depois que ele se foi eu disse para o Cláudio:
- Infelizmente ele não vai ganhar nada!
- Porque não?
- No BO estava escrito "a vítima apresentava sintomas de embriaguez". Neste caso fica muito difícil conseguir indenização.
Realmente, ele nada ganhou. Continuou ali, lavando carros. Continuava aparecendo bêbado em alguns dias, quando era um bocado difícil manter a paciência com ele. Nestes dias, os associados não deixavam ele lavar carros e ele ficava sentado próximo à banca. Às vezes conversávamos amenidades. Ele morava na favela ali por perto. Morava sozinho. Sumia alguns dias e depois aparecia alegre, contando que trabalhou de ajudante de pedreiro e ganhou uma boa grana. Eu e o Cláudio até sugerimos que ele deveria trabalhar como ajudante de pedreiro com carteira assinada, na construção civil. Mas, embora ele tenha tentado, a bebida era um problema sério. Ele acabava ficando apenas 30 ou 45 dias trabalhando fixo.
Uma vez alguns pivetes pararam diante da banca e ameaçaram pegar os jornais. Eu fiquei de pé e os encarei (a banca está acima do nível do chão e quando eu ficava de pé, parecia ser mais alto do que sou). Mesmo assim eles não desistiram e começaram a socar a banca pela parte de trás. Eu "senti" o barulho, saí da banca e disse:
- Podem esperar! Vou chamar o Ricardo; ele mora lá no morro também e é meu amigo.
Era um blefe, pois o Ricardo era pacífico. Porém, eles não arriscaram e não mexeram mais comigo.
O Ricardo sumiu novamente e o Cláudio apareceu com o semblante sério:
- Você sabe do Ricardo?
- Não, ele sumiu, já tem muitos dias! Que aconteceu?
- Ele morreu! O Sérgio me contou agora mesmo!
- Que coisa! O que aconteceu?
- Parece que foi problema com a bebida mesmo. Ele morreu no barraco dele, não tinha marcas de violência. O pessoal do Sérgio que foi lá, trataram do enterro dele.
Fiquei muito triste; ele era novo, tinha trinta e poucos anos. Mas, a morte não escolhe idade. Morreu lá no barraco dele, sozinho, bebendo. Mais uma das pessoas que a sociedade não consegue absorver, tornar cidadão.

Publicado originalmente em 10/04/2011.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Meus tempos de jornaleiro - O Marinheiro

Cláudio apareceu na banca apoiado em muletas, para comprar o jornal de domingo. Ele tinha uma amputação na perna direita, logo abaixo do joelho. Posteriormente, aparecia para comprar cigarro picado. Ficou espantando quando soube que eu era surdo. E tempos depois disse que ficou satisfeito por eu ter perguntado logo:
- O que houve com sua perna?
- Eu tive um ferimento e como sou fumante inveterado, ele não cicatrizou. Gangrenou e teve que amputar. Por causa do cigarro mesmo!
- E você continua fumando.
- Agora também não importa mais.
Ele era marinheiro. Morava em Campos, RJ, e vivia em navios e no mar. Essa era a vida dele. Contava casos da marinha, dos navios petroleiros, com entusiasmo. Como o navio demorava para fazer uma curva. Ele contava, rindo, que era tranqüilo, uma tempestade em alto mar, devido a segurança do navio.
Mas, ele demonstrava uma amargura muito grande pelo revés causado com a amputação. Talvez por isso se tornou um bom amigo. Ele percebeu que em épocas diferentes, enfrentamos quase o mesmo dilema. Eu lhe contei que houve uma mudança muito brusca no meu viver, a partir do momento em que acordei surdo no hospital. Mas, que graças a Deus, eu consegui superar todas as dificuldades e... foi com esta frase que iniciamos longos debates sobre religião. Porque ele disse que não acreditava mais em Deus, não tinha como. Que ele era muito religioso, mas considerava a religião uma enganação mesmo!
- Você pediu a Deus que não amputassem sua perna, certo?
Ele me olhou surpreso e riu:
- Eu não disse isso...
- Mas, chego a esta conclusão devido ao fato de que, quando estamos em situação de extrema dificuldade, costumamos buscar a Deus, ao contrário dos momentos em que estamos bem, que sequer lembramos de agradecer. Aí vem o problema, que é o fato de Deus não atender o que pedimos. Para muitos é assim mesmo, se somos atendidos, estamos com Deus, mas se Ele não nos atende, então Ele é o culpado.
- Sim, eu pedi muito a Deus que não me amputassem a perna. Minha vida era a marinha. Mas, Deus não existe, é apenas uma ilusão vendida pelas igrejas, todas as igrejas.
Foram muitos e muitos debates sobre religião, Deus, Cristo. Ele estava na casa da irmã dele, próximo à banca. E quase todos os dias aparecia na banca, comprava cigarro picado e conversava muito comigo. Aprendeu o alfabeto manual; e eu, como bom “ouvinte”, era uma espécie de terapia para ele. Me contava quase tudo que o envolvia: o benefício do INSS pela invalidez, a possibilidade de usar uma prótese, o filho que tinha em Campos (era separado); familiares de Goiás, que ele visitava de vez em quando, entre tantos outros fatos relevantes.
Um dia apareceu com a prótese; ainda de muletas. Explicou que estava se adaptando, que ainda tinha muito medo de cair. Mas, que iria largar as muletas em breve. Já não era mais o marinheiro carrancudo, que mal sorria. Ria de nossos debates e lembro da vez que estávamos, novamente, discutindo religião:
- Bom, você diz que Deus não existe. Vamos retrocedendo, para termos idéia de onde viemos, de como tudo surgiu.
- Voltamos para a pré história, para o homídio, para os dinossauros, para a terra sem nada, vazia, para o mundo sem os planetas, antes do Big Bang, que é a teoria que acho mais plausível.
- E como ocorreu o Big Bang, Cláudio?
- Não havia nada... e a explosão de uma poeira cósmica deu início a tudo isso.
- Para causas e efeitos é necessário uma reação, certo?
- Sim, e daí?
- Daí que eu pergunto: quem jogou esta poeira cósmica que começou tudo? – e fiz o gesto de quem joga algo para o alto.
Ele riu, ficou sem resposta. Reconheceu que eu era um bom debatedor. Eu disse que tinha a vantagem de estar ali na banca, cercado de revistas que forneciam muitos ensinamentos, temas, teorias e opiniões.
Uns três meses antes de eu vender a banca, ele não aparecia mais frequentemente. Estava voltando a viver, outros interesses, mulheres. Planejava alguma coisa, para Goiás ou mesmo voltar para Campos, embora ele reconhecesse que voltar para Campos seria um martírio, ficar perto do mar, dos navios, daquilo que ele mais amou na vida.
Foram mais ou menos três anos que ele passou a conviver comigo ali na banca. E depois destes três anos ele estava seguindo outros caminhos. Somos todos passageiros... e um dia, o meu amigo marinheiro, também passou.

Publicado originalmente em 05/12/2010