segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Meus tempos de jornaleiro - O Marinheiro

Cláudio apareceu na banca apoiado em muletas, para comprar o jornal de domingo. Ele tinha uma amputação na perna direita, logo abaixo do joelho. Posteriormente, aparecia para comprar cigarro picado. Ficou espantando quando soube que eu era surdo. E tempos depois disse que ficou satisfeito por eu ter perguntado logo:
- O que houve com sua perna?
- Eu tive um ferimento e como sou fumante inveterado, ele não cicatrizou. Gangrenou e teve que amputar. Por causa do cigarro mesmo!
- E você continua fumando.
- Agora também não importa mais.
Ele era marinheiro. Morava em Campos, RJ, e vivia em navios e no mar. Essa era a vida dele. Contava casos da marinha, dos navios petroleiros, com entusiasmo. Como o navio demorava para fazer uma curva. Ele contava, rindo, que era tranqüilo, uma tempestade em alto mar, devido a segurança do navio.
Mas, ele demonstrava uma amargura muito grande pelo revés causado com a amputação. Talvez por isso se tornou um bom amigo. Ele percebeu que em épocas diferentes, enfrentamos quase o mesmo dilema. Eu lhe contei que houve uma mudança muito brusca no meu viver, a partir do momento em que acordei surdo no hospital. Mas, que graças a Deus, eu consegui superar todas as dificuldades e... foi com esta frase que iniciamos longos debates sobre religião. Porque ele disse que não acreditava mais em Deus, não tinha como. Que ele era muito religioso, mas considerava a religião uma enganação mesmo!
- Você pediu a Deus que não amputassem sua perna, certo?
Ele me olhou surpreso e riu:
- Eu não disse isso...
- Mas, chego a esta conclusão devido ao fato de que, quando estamos em situação de extrema dificuldade, costumamos buscar a Deus, ao contrário dos momentos em que estamos bem, que sequer lembramos de agradecer. Aí vem o problema, que é o fato de Deus não atender o que pedimos. Para muitos é assim mesmo, se somos atendidos, estamos com Deus, mas se Ele não nos atende, então Ele é o culpado.
- Sim, eu pedi muito a Deus que não me amputassem a perna. Minha vida era a marinha. Mas, Deus não existe, é apenas uma ilusão vendida pelas igrejas, todas as igrejas.
Foram muitos e muitos debates sobre religião, Deus, Cristo. Ele estava na casa da irmã dele, próximo à banca. E quase todos os dias aparecia na banca, comprava cigarro picado e conversava muito comigo. Aprendeu o alfabeto manual; e eu, como bom “ouvinte”, era uma espécie de terapia para ele. Me contava quase tudo que o envolvia: o benefício do INSS pela invalidez, a possibilidade de usar uma prótese, o filho que tinha em Campos (era separado); familiares de Goiás, que ele visitava de vez em quando, entre tantos outros fatos relevantes.
Um dia apareceu com a prótese; ainda de muletas. Explicou que estava se adaptando, que ainda tinha muito medo de cair. Mas, que iria largar as muletas em breve. Já não era mais o marinheiro carrancudo, que mal sorria. Ria de nossos debates e lembro da vez que estávamos, novamente, discutindo religião:
- Bom, você diz que Deus não existe. Vamos retrocedendo, para termos idéia de onde viemos, de como tudo surgiu.
- Voltamos para a pré história, para o homídio, para os dinossauros, para a terra sem nada, vazia, para o mundo sem os planetas, antes do Big Bang, que é a teoria que acho mais plausível.
- E como ocorreu o Big Bang, Cláudio?
- Não havia nada... e a explosão de uma poeira cósmica deu início a tudo isso.
- Para causas e efeitos é necessário uma reação, certo?
- Sim, e daí?
- Daí que eu pergunto: quem jogou esta poeira cósmica que começou tudo? – e fiz o gesto de quem joga algo para o alto.
Ele riu, ficou sem resposta. Reconheceu que eu era um bom debatedor. Eu disse que tinha a vantagem de estar ali na banca, cercado de revistas que forneciam muitos ensinamentos, temas, teorias e opiniões.
Uns três meses antes de eu vender a banca, ele não aparecia mais frequentemente. Estava voltando a viver, outros interesses, mulheres. Planejava alguma coisa, para Goiás ou mesmo voltar para Campos, embora ele reconhecesse que voltar para Campos seria um martírio, ficar perto do mar, dos navios, daquilo que ele mais amou na vida.
Foram mais ou menos três anos que ele passou a conviver comigo ali na banca. E depois destes três anos ele estava seguindo outros caminhos. Somos todos passageiros... e um dia, o meu amigo marinheiro, também passou.

Publicado originalmente em 05/12/2010

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