quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

A dinâmica

Nunca devemos desprezar os que hoje nos são subalternos. A vida dá muitas voltas e quem está por baixo hoje, poderá estar por cima amanhã. É necessário tratarmos a todos com o devido respeito. E em se tratando de nós, surdos, com conhecimento de causa.
A psicóloga que trabalhava na empresa não tinha uma convivência de anos e anos com os surdos. Eu não a conhecia muito bem. Houve uma dinâmica convocada pela diretoria. Eu participei e cheguei avacalhando e rindo com os velhos amigos surdos. Nosso intérprete também estava participando. Ao iniciar a dinâmica ela falou algo sobre “nome” e apontou para a caixa com os nomes de todos os participantes. O problema de surdos que fazem leitura labial, como eu, é que muitas vezes entendemos parcialmente o que foi dito e para evitar pedir que a pessoa repita o que disse, vamos com a cara e a coragem, confiantes de que entendemos corretamente. Eu li nos lábios dela:
- Aqui está a caixa com os nomes. Peguem um nome e coloquem na camisa, com um alfinete.
Eu, pensando que já era a dinâmica, peguei um papelzinho com nome (era o nome do intérprete) e afixei na camisa. E já estava novamente rindo e conversando com colegas do lado. Fui um dos primeiros a pegar o bendito papelzinho, o intérprete rindo, perguntando o que eu estava fazendo. Mas, ele me conhecia por alegre e brincalhão e num primeiro momento pensou que eu estivesse zoando com a psicóloga. A psicóloga não me conhecia muito bem mas, claro, sabia o nome do intérprete e como foi ela quem elaborou os papeizinhos, sabia também que não havia homônimos no grupo. O problema é que ela não me corrigiu imediatamente. Sabedora do meu erro ela simplesmente perguntou:
- Você chama Jurandir? – e apontou para o papel que eu afixara na camisa.
- Não, meu nome é Jairo. – eu estava sorrindo.
- Então porque você está colocando o nome de outra pessoa?
Aquele momento em que você percebe que a pessoa está satisfeita com seu desconforto. Meu sorriso se tornou um esgar envergonhado, a alegria de participar do evento se esvaindo totalmente. O Jurandir veio em meu socorro:
- A Dra. Selena pediu que pegasse o seu nome na caixa.
Aff! Ela disse “peguem o seu nome” e não “peguem um nome”.
- Entendi errado. – justifiquei.
Mas o olhar da psicóloga dizia tudo: burro!! Muitos não acreditam quando digo que o sexto sentido dos surdos é a percepção extraordinária que temos em analisar os semblantes das pessoas. Quando um surdo diz que uma pessoa está com raiva, pode ter certeza, a pessoa está mesmo com raiva. Quando percebemos alguma zombaria não é devido ao que “ouvimos” e sim ao que vemos. O olhar, o sorriso no canto dos lábios. As pessoas que escutam nem sempre percebem estes pormenores faciais, pois o som das palavras os suplantam. O surdo não se “distrai” com os sons e percebe mudanças sutis nos olhos, nos lábios, no movimento da cabeça...
Isto marcou toda a dinâmica. Minha participação foi totalmente ofuscada pelo meu erro inicial. Não tinha como apagar o início desastroso. Não tinha como voltar o tempo e retirar o “meu nome” e não “um nome” qualquer.
Como eu disse no início do texto, jamais destrate um subalterno. Jamais despreze alguém em posição inferior à sua. Houve uma reviravolta inesperada em menos de um ano. Houve um convite da Diretoria para que eu participasse de decisões da empresa. Devido ao encaminhamento de surdos para o mercado de trabalho, eu e mais dois colegas surdos também passamos a avaliar os candidatos. Foram apresentados os trabalhos da psicóloga com os surdos e as avaliações que ela fazia dos candidatos. No momento que os relatórios que ela fazia das entrevistas com os candidatos a emprego foram apresentados à nossa avaliação, houve certo descontentamento. Não somente de minha parte, mas principalmente dos outros dois colegas, que lidavam com surdos há anos. Eu era justamente o novato ali.
A psicóloga era extremamente crítica aos surdos profundos, que não tinham leitura labial e que não escreviam o português corretamente. E os surdos oralizados, com português correto recebiam uma avaliação alta, positivista. Quem convive com surdos sabe que não é por aí que se avaliam as qualificações de um surdo. A não ser que ele vá lidar com elaboração de textos, o português não é o quesito principal. Muitos trabalhos de digitação envolviam principalmente números. E mesmo alguns trabalhos com português, a maioria era copiar textos. Infelizmente, ainda hoje há a consideração de que se você não sabe escrever em bom português, você não é suficientemente inteligente. O problema é que, para os surdos, isso ainda é pior. E a associação de português ruim com capacidade ruim ainda persiste.
Meus outros dois colegas surdos se espantaram que a psicóloga conhecesse tão pouco dos surdos e ainda assim fosse responsável por avaliações dos mesmos. Foram eles que sugeriram o encaminhamento de um pedido à diretoria para substituição da psicóloga. E como os dois já tinham votado sim pela substituição, eu fui voto vencido. Como o Jurandir tinha participado da reunião conosco e depois junto com a diretoria, é óbvio que ele comentaria com a psicóloga o que ali foi decidido. Ela saberia que eu fui voto vencido, mas que eu poderia ter falado a favor dela se não tivesse ocorrido aquele imbróglio da dinâmica. O tratamento que ela me dispensou na dinâmica não me possibilitava falar a favor dela. E pensar que na dinâmica, sendo eu o primeiro a pegar o papelzinho com nome, ela simplesmente se aproximaria e pegaria o nome errado, corrigindo de imediato o meu erro, sem criar o desconforto que ela tornou ainda maior com a reprimenda. Assim é a vida! Não subestime a capacidade de reviravoltas que a vida proporciona.
A psicóloga foi demitida.
Tempos depois, verificando todos os documentos da psicóloga, encontramos também as observações da dinâmica. Eu procurei meu nome. A psicóloga declarou parte de minha personalidade como: autoconfiante, afoito, sem compreensão correta das orientações declaradas; tem bom português, boa noção dos regulamentos.
Como eu disse; a leitura da expressão facial e dos olhos da psicóloga naquela dinâmica demonstravam claramente que ela me considerou “burro”.  A anotação “sem compreensão das instruções declaradas” era só uma maneira cordial de dizer que eu não entendia o que solicitavam. Considerar dessa forma porque eu não entendi UMA instrução, era muito mais um atestado de que ela não conhecia os surdos e tinha uma visão pré-concebida erroneamente sobre nós.
Não tivemos mais contato com essa psicóloga. Ela nunca se tornou parte da comunidade surda.

Até os dias de hoje é muito comum pessoas me considerarem pouco inteligente se num primeiro momento demoro a entender o que estão explicando. É a consideração de que o surdo não é capaz de entender as coisas facilmente, quando na verdade estou com dificuldade de leitura labial, diante de uma pessoa que está conversando comigo pela primeira vez e utilizando palavras raras no dia a dia.


Os nomes foram trocados, por motivos óbvios.