sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Ajudar sem constranger

Muitas vezes os ouvintes acreditam que estão ajudando, mas estão constrangendo.
Lembro que estávamos numa mesa de bar, somente eu surdo, com amigos, bebendo cerveja. Todos contavam um ou outro caso. Às vezes ficava sem saber alguns assuntos, mas a maioria o pessoal ia passando, na normalidade que é um deficiente no meio de normais. Nem sempre toda a conversação é repassada. Minha amiga sabia datilologia (escreve todas as frases com o alfabeto-manual dos surdos) e estava me passando uma ou outra conversa. Outro colega também me passava a conversação, pois tinha movimento labial muito bom. Eis que, em um momento, o pessoal estava rindo um pouco mais que o normal de alguma coisa que um dos presentes à mesa contava. Então perguntei à minha amiga:
- O que ele está contando?
E o que ela fez? Interrompeu o colega que falava e disse:
- O Jairo quer saber o que você está falando.
Meu colega ficou vermelho, a conversação foi interrompida, os risos cessaram, mas ele voltou ao início e relatou o assunto novamente, desta vez falando pausadamente para minha compreensão. Mas, foi visível todo o constrangimento da situação e a percepção de que os risos já não eram mais tão verdadeiros. Depois eu chamei a atenção da minha amiga:
- Não se interrompe a pessoa que já está no meio de uma explanação pedindo para ela falar tudo de novo para mim.
- Mas, eu só quis ajudar, ora. Você não queria saber o que ele estava falando?
- Sim, mas eu perguntei foi para você. Se você acha que eu deveria ter perguntado diretamente a ele, então, você deveria ter respondido para mim: “Pergunte para ele!”. Aí, caberia exclusivamente a mim perguntar ou não a ele.
- Vocês surdos são muito complicados. A gente vai ajudar e acaba “levando ferro”.
- Desculpe, agradeço toda sua ajuda, todas as vezes que você traduziu para mim as conversações de muitas outras pessoas. Porém, se você acha que devo agir de um modo diferente, como por exemplo, perguntar à pessoa que está falando, o que ela está falando, então, você tem que dizer isto para mim, mas nunca agir do modo que você acha que eu devo agir. Ao interromper nosso amigo no meio do que ele já estava contando, você agiu por si, mas como se fosse para mim. Tem momentos que sei não ser ideal a interrupção de uma pessoa que está falando. Vai prejudicar o encadeamento de idéias, ela vai ter que mudar o modo de falar, etc e tal.
Ela ficou um pouco chateada, mas compreendeu e perguntou:
- Qual seria a solução então?
- Todos aptos a falar em Libras. Mas, sabemos que isso não é possível, ainda. Quem sabe, no futuro, né? Porque quem sabe Libras consegue falar ao mesmo tempo que gesticula.

Uma vez, participando de uma palestra, também ocorreu algo parecido. Havia deficientes presentes na palestra, eu, surdo e alguns cegos. Meu intérprete pessoal, J.S., quando recebeu o telefonema dos organizadores do evento, informou que eu era surdo e que eu necessitava de intérprete. Os organizadores responderam que surdo seria somente eu e que eles arrumariam uma credencial para meu intérprete participar junto comigo. No meio da palestra foram exibidas algumas imagens e no decorrer de um pequeno filme, a acompanhante dos cegos (três cegos presentes) reclamou com o palestrante:
- Ora, o J. L. é cego e as imagens não têm significado para ele. Deveriam ter um auxiliar, profissional, que detalhasse o conteúdo das imagens.
Foi errado, ainda que a reivindicação dela fosse justa. A acompanhante interrompeu a palestra, reclamou com o palestrante e deixou todos bastante constrangidos. O palestrante então, que sequer tinha culpa sobre os fatos, pois ele era apenas o convidado para a palestra e não o responsável pela organização do evento. Um dos organizadores pediu desculpas, dizendo que era uma falha que não se repetiria em palestras futuras.
O palestrante tentou retomar o que estava dizendo antes, mas era perceptível que ele não estava mais à vontade. Tanto que J.S. traduziu literalmente o que ele dizia:
- Como vocês podem.... – parou, arranhando a garganta – O que é possível deduzir das... – de novo parou, arranhando a garganta – dos dados exibidos é que o crescimento da mão-de-obra terceirizada...
Eu olhei para meu intérprete e comecei a rir. Disse em tom baixo:
- Ele não quer usar mais a palavra VER – “como podem ver...” – nem IMAGEM – “possível deduzir das imagens...” – Que coisa, o pessoal cego deixou ele sem graça mesmo...
- Se eu falar com ele que você é surdo é capaz de ele não falar mais "como ouvimos no filme..." 
Rimos, mas nós dois sabíamos que o palestrante (que não tinha culpa se os organizadores falharam) estava totalmente incomodado com os deficientes presentes, mas devido à interrupção abrupta. Antes, ele estava bastante à vontade.
É importante reclamar com as pessoas certas. Não prejudicar o andamento de um evento porque os organizadores falharam. Eu já me retirei de eventos em que não tinha intérprete, mas discretamente. E, claro, depois reclamei com os organizadores, através de e-mail ou telefonando (o intérprete pessoal fala o que eu quero seja dito). No caso, muitas vezes eu reclamei: “como vocês me convidam para um evento em que ocorrem diversas palestras e, sabendo que sou surdo, não contratam um intérprete?”
Exigir os nossos direitos, como deficientes, sim, mas jamais abusar desta condição.