sexta-feira, 10 de abril de 2015

Meia-noite

Naqueles tempos... sim, eu utilizo em demasia esta expressão, mas é verdade, porque os tempos idos são outros.
E naqueles tempos, ter conta em banco era um privilégio e não existia o cartão de débito/crédito. O pagamento era feito em dinheiro ou cheque (uma raridade!).  Quando ocorria o pagamento do salário numa sexta-feira, saíamos do serviço e íamos para os bares da região do Riacho, em Contagem, próximo de onde se localizava a gráfica em que eu trabalhava. Hoje imagino os riscos que corríamos, um tanto bêbados e com uma boa grana no bolso. Eu, ainda mais, porque convivia com diversos grupos de amigos e muitas vezes acabava entre estranhos. Numa sexta-feira de pagamento, saí com o Meia-noite, amigo dos jogos, de palitinho, baralho e sinuca. Fomos jogar sinuca. Meia-noite era um negro alto, mais de 2 metros, musculoso, de riso largo, que associava seu apelido à hora e não à escuridão. Dizia gostar da noite, em especial, da meia-noite. Ele tinha muita paciência para conversar comigo, nunca conseguiu aprender o alfabeto manual dos surdos. Falava devagar ou gesticulava. Gostava da minha companhia, principalmente nos jogos de sinuca, cuja disputa era bastante equilibrada. Ele ria muito das minhas caretas alegres quando eu fazia alguma boa jogada e mais ainda pelos palavrões em voz alta, quando eu errava bolas fáceis.
Quando adentramos o boteco, os dois amigos dele já estavam lá. Apresentações feitas, os dois ficaram espantados por eu ser surdo, acontecimento que já era banal para mim. Minha surdez, associada à minha facilidade de compreensão dos fatos, a fala perfeita e espontaneidade, sempre foi um espanto. Minha alegria, risos e brincadeiras eram garantias de bons momentos. O magro e alto era o Marcos. O de dentes saltados era o Ratinho. Acredito que disse o nome também, mas minha memória só gravou o apelido.
Como sempre ocorre em encontros deste tipo, em volta de mesas de sinuca, a aposta era: quem perder paga uma cerveja. E assim foi, por diversas rodadas. Das oito cervejas na mesa, três eram do Ratinho, duas do Marcos, duas minha e uma do Meia-noite. O Meia-noite aproveitava para fazer graça:
- O Meia-noite está numa boa noite! 
O tal Ratinho estava um pouco nervoso, porque não conseguiu ganhar nenhuma partida.
Houve uma pausa, quando sentamos, bebemos e comemos porção de carne com batatas fritas. Neste ambiente, com apenas um conhecido, eu tinha que ficar perguntando o que estavam falando. Não sei o que causou o imbróglio, mas o racismo entrou na conversa e percebi o quanto o Meia-noite ficou indignado. E ele me explica, falando até mais rápido que o normal:
- O Ratinho disse que, em sua maioria, os negros não têm a mesma capacidade dos brancos.
Eu percebi a tentativa de amenizar o racismo aliviando com “em sua maioria”.
- Capacidade de que? – perguntei.
- De aprendizagem.
Naqueles tempos, sim, naqueles tempos isso não era bem uma discussão sobre racismo. Era comum alguns brancos se considerarem superiores aos negros. Normalmente, brancos de classe alta, com as devidas exceções, claro. O Ratinho era branco, mas o cabelo crespo indicava ancestrais negros.
- Isso é bobagem. Tanto negros como brancos aprendem da mesma forma. Na gráfica onde trabalhamos temos negros em todos os setores, da faxina à contabilidade.
Eu não disse que a maioria estava nas atividades mais baixas, como faxina e segurança. Não daria corda para o tal Ratinho. O Meia-noite era faxineiro. 
- Se der as mesmas condições de aprendizagem, negro e branco aprendem da mesma forma. A característica de algumas pessoas serem mais inteligentes que outras independe da cor da pele.
A discussão era até um pouco estranha porque, normalmente, os deficientes é que são considerados “burros”. Surdos, então, nem se fala, porque alguns não escrevem o português corretamente (a primeira língua destes surdos é a Libras e a Libras não é português nas mãos). Na gráfica éramos três surdos e o nível intelectual do José era realmente muito baixo, enquanto eu e o Celso éramos considerados “normais”. 
Voltamos para o jogo de sinuca, o Meia-noite um pouco chateado. Ele ganhou do Marcos, que teria que pagar três. Na sequencia, perdeu para mim e eu que aproveitei para fazer graça:
- Lá se foi a boa noite do Meia-noite!
- Que nada, ainda estou pagando somente duas.
O meu adversário era o Ratinho. Quase ao final, eu já estava para matar a bola 1 (final) e para ele ainda faltava uma, antes de também poder tentar matar a bola 1. O Marcos assistia à partida em pé, em volta da mesa. O Meia-noite estava no banheiro. Percebi a animosidade do Ratinho, tanto que ele se esforçava ao máximo para me prejudicar no jogo, ficando diante da caçapa onde eu iria derrubar a bola ou fazendo sombra na mesa, com o corpo. Houve um momento em que me virei para olhar o dono do boteco, mas apoiado na mesa. E nesse momento senti o barulho. O Marcos havia mexido na bola 1, encostando a mesma na lateral da mesa, o que dificulta a tacada para derrubá-la em uma das caçapas. O que ele não sabia é que, apesar de ser 100% surdo, eu sinto as vibrações, desde que encostado com qualquer parte do corpo no objeto. É o caso de encostar a mão (ou qualquer outra parte do corpo) no rádio e dizer se ele está ligado ou não. Fitei o Ratinho; mas ele não esboçou nenhuma reação. O Marcos já tinha se afastado da mesa.
- Sua vez! – disse o Ratinho, com um sorriso zombeteiro.
A tensão do momento era visível. Sou surdo e sei a dificuldade que é convencer alguém da capacidade de sentir sons. Não podia acusa-los de nada. O Meia-noite voltou do banheiro e parou do meu lado, percebendo que alguma coisa não estava legal. Eu apenas falei:
- Na verdade, o que vale realmente numa pessoa, independente da cor da pele, não é a sua inteligência, mas o seu caráter. O Meia-noite pode não ser o cara mais inteligente que eu conheço, mas tem um coração aberto, que sabe valorizar uma amizade. O Meia-noite sabe que eu, às vezes, preciso de ajuda, para usar o telefone, para conversar com algumas pessoas ou mesmo contra os engraçadinhos que me xingam pelas costas. O Meia-noite uma vez quebrou os dentes de um espertinho que estava tentando se aproveitar da minha surdez para me passar a perna... – neste momento o Meia-noite me fitou, espantando, pois ele nunca tinha feito  nada disso – É por isso que nunca me incomodou a amizade com esse cara. Sei que se eu precisar, ele estará do meu lado.
O Meia-noite era esperto o suficiente para entender! Ele passou o braço pelo meu ombro e disse:
- É isso mesmo, Jairo. Sou feliz de ter você como amigo. Quebro qualquer um que tente lhe enganar!
A mensagem foi absorvida pelos outros dois. O Ratinho perdeu a partida. Estava tão nervoso que errou uma tacada fácil.
A noite terminou ali. Fechamos a conta e fomos embora.
A hora? Era meia-noite!

O Meia-noite foi um bom amigo. A vida nos levou para caminhos diversos. Ele casou primeiro, mudou-se e nunca mais tive notícias dele. Mas, lembro sempre do braço em meu ombro, numa noite de anos atrás, da amizade que emanava daquele pequeno gesto e das poucas palavras que ele disse.