quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Intérpretes de Libras

Nos meus primeiros anos ambientado no universo dos surdos, fiquei muito alegre ao conhecer a língua de sinais que, naqueles tempos, ainda não era chamada de Libras. Eu perdi a audição em Formiga, estive em tratamento em Belo Horizonte, mas voltei para Formiga meses depois. Meu contato com os surdos só ocorreu no ano seguinte, quando fui continuar os estudos no Instituto Santa Inês. Minhas conversações se davam através de leitura labial e, minha mãe e meu tio tinham muita paciência para conversar comigo dessa forma; escrevendo. Quando comecei a estudar no ISI e a conhecer diversos surdos, percebi que eu não era assim tão diferente dos demais. Embora minha fala fosse perfeita, minha surdez era até mais profunda que muitos dos meus colegas, pois sou 100% surdo. Era engraçado alguns colegas com dificuldade para falar, mas ouvindo parcialmente e eu, com facilidade para falar e não ouvindo nada. Mas, o que me deixou muito alegre foi a descoberta da língua de sinais e a possibilidade de “conversar” sem esforço de leitura labial ou escrevendo. Apesar de muitos especialistas em educação discordarem da língua de sinais, esta é uma forma de comunicação muito importante na vida dos surdos.
Só vim a tomar conhecimento dos intérpretes de sinais muito tempo depois, quando já estava trabalhando e participei de algumas palestras. Considerei muito importante o trabalho do profissional que traduzia em sinais o que o palestrante falava.
Em dezembro de 2005, o Presidente Lula assinou o Decreto 5.626, que regulamentou as leis que dispõem sobre a Língua Brasileira de Sinais- Libras, tornando oficial a Libras como língua dos surdos.
Mais recentemente, trabalhando junto com os surdos e com o CMPPD (Conselho Municipal da Pessoa Portadora de Deficiência), tive contato com diversos intérpretes. Alguns deles trabalharam especificamente comigo (tradutor pessoal).
Em convenções ou eventos longos, que têm a presença de muitos surdos, diversos intérpretes se revezam na tarefa de tradução.

Os problemas que notei junto aos intérpretes são relacionados à justiça. Contratados para trabalhar como intérpretes em audiência, alguns mostraram grande despreparo para a função. O problema não era tanto deles, mas sim dos próprios juízes, que os contratavam, ou simplesmente pediam a “ajuda” deles. Eles eram supervisores de trabalho dos surdos no tribunal, mas isto não quer dizer que eram intérpretes qualificados para trabalhar em uma audiência. Infelizmente, são muitos os que acreditam que se uma pessoa sabe Libras, ela pode ser intérprete. Não pode. O trabalho de intérprete envolve muito mais do que simplesmente traduzir uma conversa informal. Numa audiência, muitas vezes ocorre de alguns questionamentos serem rápidos demais e o intérprete deve estar bastante atento para não deixar escapar o que é realmente relevante. Lembro de um intérprete tão tranquilo, refastelado numa cadeira ao lado do Juiz, excessivamente tranquilo, que não traduzia para a escrivã o que o surdo estava depondo. Lembro que levei uma reprimenda do Juiz, quando falei em alto e bom som, que o surdo tinha “falado” uma coisa e o intérprete tinha traduzido outra. Aliás, esta é uma das grandes dificuldades que enfrentam os intérpretes novatos: traduzir a fala de uma pessoa para Libras é bem mais fácil que traduzir Libras para o português, principalmente se a língua do surdo for somente Libras. É necessário muita atenção com sinais idênticos para diversas palavras, tipo “sábado” e “laranja”. “Eu paguei sábado”, um desatento traduz como “Eu paguei as laranjas”. Eram tantos os intérpretes ruins que surgiam nas audiências que tenho quase certeza que eles não eram intérpretes profissionais e sim os supervisores de trabalho dos surdos nos setores. A pior tradução ocorreu com um surdo fazendo sinal de “carteira de trabalho” e a intérprete traduzindo como “multa” (mas, falando “carteira de trabalho”). O próprio surdo estranhou que a intérprete fizesse tanto o sinal de “multa” e ele mesmo questionou o porque disso. Ela ficou muito constrangida quando o próprio surdo a corrigiu, com sinais, “Multa errado, errado! Sinal certo “carteira de trabalho”". Ora, como é possível isto em uma audiência que está decidindo coisas importantes para diversas pessoas? O despreparo é jurídico, mas os próprios intérpretes jamais deveriam aceitar trabalhar em audiências sabendo que isto representa uma enorme responsabilidade, se ainda não estiverem plenamente capacitados. O problema é que alguns juízes e alguns intérpretes consideram os surdos “coitadinhos” que não têm conhecimento do que sejam as leis e acreditam que eles, juízes e intérpretes, vão ajudar os surdos da melhor forma. É um erro crasso. Tanto réus quanto requerentes só querem uma boa interpretação do que dizem e que a justiça seja imparcial. Pior ainda foi a intérprete que era amiga do requerente, ambos prestavam serviço para a mesma empresa (ela, como supervisora de trabalho dos surdos e o requerente como prestador de serviço). O advogado do réu interpelou o juiz sobre isso, mas ele considerou normal. No decorrer dos testemunhos lembro de como a intérprete ficou envergonhada e parou de interpretar, quando a testemunha disse, com riqueza de detalhes, como o requerente ameaçou uma pessoa. Era perceptível a decepção da intérprete com este fato. Ela gaguejou “a-ameaçou?” e parou de traduzir. Como a testemunha falava e gesticulava ao mesmo tempo (surdez parcial), a escrivã não perdeu os fatos e os transcreve integralmente.
Relato estes acontecimentos, que eu presenciei pessoalmente, para demonstrar o quanto é necessário estar capacitado para o trabalho de intérprete. Saber Libras é o requisito essencial, mas não é o suficiente. É necessário conhecer os diversos tipos de surdos, conviver com eles e ter discernimento para não se envolver com o que está em julgado. Muitas vezes os intérpretes, por conviverem com os surdos, acabam tomando partido na contenda. E isto não deve ocorrer. A imparcialidade é essencial.
A sociedade também não sabe, até hoje, como lidar com os surdos. A diversidade dos surdos causa uma grande confusão. Uma das piores confusões ocorrem quando as pessoas que lidam com um ou dois surdos, se fiam neste padrão. Estas pessoas acabam acreditando que todos os surdos serão como os que com ela convive. Já houve momentos em que tive que explicar a algum chefe de setor por onde trabalhei, que o outro surdo não iria entender o texto com as instruções sobre algum serviço. E o espanto do chefe de setor:
- Como assim, não vai entender? Está muito bem explicado.
E eu, pacientemente, esclarecendo que nem todos os surdos entendem o português como eu entendo. Que para alguns a explicação tem que ser pessoal, ao lado dele, mostrando como se faz. O intérprete também deve saber disso, conhecer o surdo suficientemente para utilizar Libras sem apoio da língua portuguesa ou, como no meu caso, podendo usar datilologia para uma ou outra palavra sem correspondente em Libras.
Ainda na questão jurídica, um juiz questionou o fato de na audiência constar a presença de três intérpretes. O intérprete do réu, o do requerente e o do tribunal. Mas não permitiu explicações. Seria ótimo se tivesse a oportunidade de esclarecer ao Sr. Juiz que os surdos necessitam que seja desta forma. O intérprete do tribunal está à disposição do juiz, não dos surdos presentes. O intérprete do tribunal vai traduzir a Libras para o português. E as perguntas do juiz ao reu ou requerente. Mas, não vai traduzir se o juiz e o advogado começarem algum embate técnico. Por isso requerente e réu levam seus próprios intérpretes. Eles vão traduzir tudo, até mesmo conversações dos advogados.
Estes meus relatos são sobre pendências simples, audiências preliminares, consideradas de conciliação, envolvendo causas trabalhistas ou cíveis. Não sei como funciona em causas criminais, muito mais complexas. Mas, acredito que sim, mesmo em causas criminais, acusador e réu devem ter seu próprio intérprete. Lembro do advogado perguntando porque eu insistia em ter minha intérprete do lado. Eu respondi, sinceramente:
- Porque eu me sinto mais seguro. Minha intérprete não deixará passar nada importante sem traduzir para mim. A confiança que tenho na minha intérprete pessoal é praticamente a mesma que tenho na sua defesa da minha causa.
Os intérpretes que têm alguns problemas com os surdos são alguns intérpretes religiosos. Devido a questão religiosa, eles modificam os sinais referentes a Jesus, Maria, entre outros. Os surdos que sempre lutaram por sua língua oficial não concordam que intérpretes religiosos modifiquem sinais tradicionais. Como é possível que uma religião faça o sinal de Jesus de uma forma, outra diferente, só porque não seguem os mesmos credos? Uma das coisas que os surdos identificam logo como sinal oriundo de religião é o sinal utilizar a primeira letra da palavra como base. O surdo cria o sinal de forma espontânea, observando o que mais se aproxima do mesmo. A origem do sinal “sapato” tem a ver com sapato, embora um ouvinte dificilmente associaria o sinal a sapato. Diria que não tem nada a ver. Mas, o sinal tem sua origem nas antigas calçadeiras de sapatos, que eram bastante comuns antigamente. Na época em que eu estava mais partícipe da comunidade surda, o fato de alguns intérpretes religiosos estarem usurpando a criatividade dos surdos para criação de sinais, era uma questão discutida constantemente.

O trabalho dos intérpretes é de extrema importância para a socialização/participação dos surdos.

Intérprete não é somente interpretar em Libras. Devem também saber interpretação oralista (repete o que a pessoa/palestrante/professor está falando com vagar, para os surdos oralizados). Os surdos oralizados que não conhecem Libras necessitam de ajuda à deficiência da mesma forma que os demais surdos. Porém, o surdo oralizado não bilingue precisa de um intérprete oralista. E nos casos de vídeos, a legenda. Os surdos oralizados não têm interesse em aprender ou divulgar a Libras, pois para eles a língua principal é o português. Os intérpretes devem estar capacitados a fazer a interpretação oralista e a respeitar o desejo do surdo oralizado de ter um intérprete exclusivamente para isto.

Para mim, o intérprete que utiliza Libras e oralismo não incomoda, uma vez que sou bilingue. Normalmente este intérprete também não incomoda os surdos que só utilizam Libras, pois ele se fixa apenas aos sinais. Eu aproveito as duas linguagens que o intérprete utiliza (Libras e oralismo) para compreensão da mensagem. Mas, o surdo somente oralizado não se sente confortável diante do intérprete que utiliza oralismo e Libras.

É imprescindível que todos os tipos de deficiência auditiva sejam respeitados (surdos com Libras, oralizados e surdos com IC (Implante Coclear)). Muitos dos surdos com IC preferem o intérprete oralista, pois aproveitam as duas possibilidades (ouvindo com o IC e fazendo leitura labial) para compreensão da mensagem.

Meu agradecimento a estes profissionais que executaram o seu trabalho com grande profissionalismo.

Foram meus intérpretes pessoais em diversas situações: R.A.R. e J.S.O.

Trabalharam comigo, em palestras, reuniões, assembléias, audiências, campanhas, eventos, escola: S.M.O., D.G.M., R.L., F.G., T.P.P., M.

Vídeo sobre Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Com legendas e intérprete de Libras.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A arte de fazer arte - III

- Professor O. a Irmã A. está chamando o senhor.
- Nessa eu não caio, Jairo! – respondeu o professor rindo.
Era 1º de Abril e eu estava pregando peças em todos. Disse à Doralice que a Professora Dona R. estava chamando na sala da 6ª série. Enquanto ela se dirigia para a sala da 6ª série, eu falei, todo sério, com nosso professor de Geografia:
- Professor L., a Irmã A. está chamando o senhor.
- Onde ela está?
- Na hora que ela me falou ela estava entrando na Diretoria.
Ele se dirigiu para lá e eu entrei na minha sala. Sentamos e o Professor O. começou a aula de Ciências, fazendo a chamada.
- A Doralice não veio? – ele perguntou.
- Veio. – respondi rindo. – É que ela está com a Professora Dona R.
A Doralice entra na sala, gesticulando nervosa “mentiroso, mentiroso!”.
- A Dona R. não estava me chamando. Mentiroso!!
Todos riram e ela perguntou:
- Porque ele está falando mentira?
- Hoje é 1º de Abril, dia da mentira. Pode falar mentira  à vontade.
Quando o recreio estava terminando, duas alunas da 6ª série voltavam do pátio e eu disse, com sinais:
- “Hoje confissão Padre Vicente. Esperar na capela. Vocês atrasadas já”.
Elas deram meia volta e foram para a capela. Eu voltei para minha sala. O Professor O. estava ministrando a aula de Matemática (ele lecionava as duas matérias, Ciências e Matemática).  A Irmã A. entra na sala e começa a conversar com o professor. Sempre prestávamos atenção quando a Irmã A. entrava, porque era alguma informação ou modificação nos horários de aula. E li direto nos lábios dela:
- Professor O. não teve aula de Geografia para ninguém hoje. Não sei o que aconteceu, mas o Professor L. foi embora, após perguntar onde eu estava.
- Isso é o Jairo e as brincadeiras de 1º de Abril. – dedurou o professor, rindo, sabendo que eu tinha falando com todos os professores que a Irmã A. estava chamando.
- Ê, menino! O Professor L. estava pedindo alguns dias de licença e quando você disse que eu estava chamando, ele pensou que era para dispensá-lo e foi embora.
- Não sabia disso não, Irmã. Eu falei de brincadeira.
Neste momento entra a Irmã G., Professora de História, preocupada:
- Duas alunas da 6ª série não voltaram do recreio, procuramos e não encontramos em lugar nenhum.
As Irmãs A. e G. saíram da sala e o Professor O. ia continuar a aula, mas o Adão escutou o que a Irmã G. disse e me informou, já sabendo o que eu tinha aprontado:
- Professor, manda as Irmãs buscarem as duas na capela.
- Capela? Como você sabe que elas... Jairo, o que você aprontou agora?
- Eu disse que hoje tinha confissão do Padre Vicente e falei para as duas irem para a capela.
O Professor O. foi até as Irmãs e informou onde estavam. As duas estavam na capela, sentadas no primeiro banco, caladinhas, esperando o Padre Vicente. O Padre Vicente era uma grande figura. Referência para todos os surdos, devido à sua luta para se tornar padre. Ele foi o primeiro padre surdo do Brasil. Era muito amigo de todos os surdos, principalmente por usar a língua de sinais. Era também bastante enérgico conosco.
O Padre Vicente não estava lá, claro.
O Professor O. voltou e contou o que tinha ocorrido.
- Professor, a Irmã A. vai me dar uma advertência depois dessa? – perguntei, meio temeroso.
- Não, Jairo. – e se aproximou de nós, segredando – Não contem para ninguém, mas quando eu disse para a Irmã A. o que você aprontou, ela soltou uma gargalhada.
E o Professor O. acrescentou, ele mesmo rindo muito:
- Nunca tinha visto a Irmã A. gargalhar antes.