quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Adrenalina na infância

Outro dia vi o filho do meu sobrinho, todo paramentado, com capacete, cotoveleiras e joelheiras, no momento de aprender a andar de bicicleta. E a bicicleta ainda tinha as rodinhas laterais. Lembrei quando aprendi a andar de bicicleta, na rua da casa do meu primo, na época ainda sem calçamento que, em Formiga, era quase todo a base de paralelepípedos. Eu ainda tive a sorte do aprendizado ser feito com uma bicicleta tamanho médio, pois muitas vezes, aprendíamos nas bicicletas grandes mesmo. Para cima e para baixo na rua, pedalando com o resto da turma, meu primo e alguns vizinhos, segurando a bicicleta pela garupeira, ouvindo (na época, eu ouvia) as instruções sendo berradas por um ou outro:
- Não olha pra roda...
- Segura o guidom com firmeza...
- Olha pra freeente!!
A trupe traseira vez ou outra soltava a bicicleta e quando eu começava a desequilibrar, seguravam de novo. Assim foi que por um momento me senti confiante o bastante para ordenar:
- Podem soltar.
E ao não escutar nenhuma manifestação dos amigos, olhei para trás e os vi ao longe, bem longe, rindo, acenando e pulando feito doidos. No instante em que percebi que não tinha ninguém segurando a bicicleta, perdi o controle do guidom, perdi o equilíbrio e caí cinematograficamente, rolando o corpo umas três vezes.
Enquanto limpava a poeira e passava saliva no braço ralado, meu primo gritou lá do princípio da rua:
- Volta, volta! Você já aprendeu.
Com a cara e a coragem, subi novamente na bicicleta e, embora ainda meio inseguro, voltei pedalando até eles. Todos gritando, eu inclusive:
- Hurra!! Eheheheheh
- Conseguiu! Conseguiu!
Eram os tempos em que os pais não participavam tanto assim destes momentos. A alegria era compartilhada ali com os amigos, com o primo, com a rua de terra, com a liberdade, com a felicidade de ser criança.

Imagem Google
Meu tio tinha uma bicicleta Phillips, que ele cuidava com carinho. Andei muito nessa bicicleta, principalmente depois que já estava mais velho (rsrs, 17 anos) e mais alto, porque com menos idade eu não alcançava os pedais. Eu tive uma Phillips também, só que tamanho médio. A bicicleta do meu tio tinha o São Jorge no para-lama dianteiro, garupeira, campainha. No para-lama traseiro, ao invés das costumeiras flâmulas de clubes, meu tio colocou uma própria, com a mensagem: "pra quis tantis orgujos se el future es la muerte?" - ele dizia que era espanhol, mas isto é portunhol! "Para que tanto orgulho se o futuro é a morte?". Meu tio me levava com ele, na garupa da bicicleta, quando ia fazer alguns serviços, tipo assentar uma porta, janela ou portão. Muitos dos conceitos de marcenaria, aprendi com ele. Mas, ele era pau para toda obra e sabia bastante de energia elétrica e serviços de pedreiro. Hoje em dia vejo os jovens com conhecimento de internet a mil, mas que não sabem muito bem como fazer uma ligação de chuveiro, trocar uma tomada, ou simplesmente cimentar um buraco no chão. 

Raras vezes informávamos aonde íamos. Eu e meu primo sumíamos por horas, vagando pelos matagais que ainda dominavam extensa área na parte de trás da rua. Se os pais de hoje nos vissem, ficariam malucos. Íamos até o areal onde o rio Mata Cavalo e o rio Formiga se encontravam, brincando ali com as pedras brilhantes que os rios traziam. Nas áreas verdes que havia na parte de trás da rua, subíamos em bezerros, que nos derrubavam na corrida. Provocávamos as mamães porcas ou galinhas, correndo atrás de suas crias. Elas avançavam loucamente contra nós, quando pegávamos um leitãozinho ou pintinho. Saíamos em desabalada carreira, fazendo ziguezagues e soltando a cria somente na iminência de sermos alcançados. Tudo isso em meio a muito riso. Somente uma vez o risco foi maior, pois ao correr com o leitãozinho nos braços e ao me aproximar da cerca de arame farpado, que meu primo mantinha suspensa para eu passar agachado, a porca não parou nem mesmo quando eu larguei o leitãozinho. Na tentativa de passar rapidamente pelo espaço na cerca, meu calção ficou preso no arame farpado. Meu primo assustou-se com a porca tão próxima e soltou o arame, mas eu já estava do lado dele. Sem o calção, pelado! Esperamos a porca se afastar, tirei meu calção do arame farpado e fomos embora, rindo a não poder mais.

Onde hoje é a Praça Rubens Dalariva, ficavam os carroceiros, sob duas árvores, que ainda se encontram no local. Mas, ali não era praça, a área era de terra e mato rasteiro. Ao entardecer os carroceiros já não estavam mais ali e brincávamos de pique (pegador), nas duas árvores. Como assim?, brincar de pique em árvores? É que as árvores eram próximas o suficiente possibilitando pular de uma para a outra. Embora próximas, o salto era no ar, indo dos galhos de uma árvore para a outra, necessitando agarrar-se bem nos galhos da outra árvore (como os atletas olímpicos que pulam de uma barra para outra). De baixo era possível ver o voo que fazíamos para ir de uma à outra árvore. Assim, se o pegador vinha de uma árvore, passávamos para a outra e vice-versa. No chão, o espaço de fuga era delimitado, tornando as árvores o melhor meio de escapar do pegador. Era uma brincadeira arriscada, a altura era superior a uns 4 metros.

Era uma coisa natural, os riscos, a adrenalina a mil. Caminhões passavam em baixa velocidade pela Rua 13 de Maio, onde eu morava e eu corria e me dependurava no para-choque traseiro (com as pernas bem dobradas). E ia dependurado até o caminhão passar pelo desnível natural da rua, por onde escorria a água da chuva. Após o solavanco, que era o auge da travessura, soltava o para-choque e voltava para casa. Hoje em dia a maioria dos para-choques de caminhões são rebaixados, impossibilitando praticar esta travessura, pois o traseiro seria arrastado na pavimentação da rua.

Atravessar as ruas era tranquilo e não havia nenhum risco à segurança. Os carros transitavam devagar e era possível ouvir a aproximação dos mesmos à distância. Eu atravessava as ruas sem olhar, era natural na época, Formiga ainda era uma cidade pequena. Poucos meses depois que eu fiquei surdo, voltando do Armazém do Sr. Olinto, comendo um doce tranquilamente, atravesso a rua sem olhar e um carro freia às minhas costas. O motorista abre os braços, como quem pergunta: “que isso, maluco?”. Vou para casa, assustado. Logo mais minha mãe fica sabendo que o carro quase me atropelou (cidade pequena, vizinhos atentos...).
- Ê, menino, você atravessando a rua sem olhar, o carro quase te pegou!!
- É, mãe. Esqueci.
- Esqueceu o que???
- Esqueci que sou surdo!