quarta-feira, 10 de junho de 2015

Um amor terminal

Percebo entre as contas de luz, telefone e cartão de crédito uma carta. Carta escrita a mão, com meu nome em destaque. Curioso, pego logo o envelope para ver o remetente. Embora tremida, a letra era caprichosa e bonita. Kátia M, Hospital Municipal. Que estranho! O endereço era do hospital, não da residência. Lembrei da moreninha Kátia, do amor quase infantil que nos envolveu. Abri o envelope e li a carta. Kátia explicava que sua doença já estava avançada e que seu estado era terminal. Informava que não tinha mais ninguém no mundo e que os familiares mais próximos faleceram alguns anos atrás. Lembrei os momentos tristes que passamos juntos, ela chorando a morte de uma tia. E nos anos seguintes a mesma doença levando a mãe e a irmã mais nova. Formamos e nos separamos, indo cada um para um lado. Na carta ela informava que até pouco tempo atrás ainda tinha forças para ir ao saguão do hospital assistir a tv. Um dia ela percebeu que o palestrante era eu e que ao final da palestra informava o telefone da minha assessoria. Ela anotou este telefone e com muito custo conseguiu ligar. Tudo que conseguiu com o assessor foi meu endereço para correspondência. Kátia lembrava que fomos namorados e pedia que eu fosse vê-la. Sabia que eu estava casado e tinha filhos; não queria causar nenhum problema matrimonial para mim, mas eu era a única pessoa que ela gostaria de ver, nestas circunstâncias. Eu ri, pois ela não sabia que eu estava separado há mais de três anos. Resolvi ligar para o hospital. Já era tarde e eu disse apenas que no sábado estaria lá para visitar a Kátia. A recepcionista anotou o meu nome e desdobrou-se em elogios: "estaremos honrados com sua presença"; "estamos ao seu inteiro dispor" e por aí vai. Sábado de manhã viajo para o interior, para a cidade onde Kátia estava internada. Com problemas no carro, só chego à noite, rebocado. Passo a noite no hotel e domingo de manhã vou ao Hospital Municipal. Vou direto ao quarto de Kátia, onde uma enfermeira arrumava a única cama.
- A paciente que estava internada aqui?
- Kátia?
- Sim! Onde ela está?
- Ela faleceu esta madrugada, senhor. - a enfermeira me encarou e me reconhecendo acrescentou de imediato - Sou a enfermeira Jucilene. Se o senhor desejar, posso levá-lo até o necrotério.
- Não! - respondi, quase chorando. - Não há necessidade. Diga-me como foi o dia dela ontem, por favor.
- O senhor está colhendo dados para suas palestras?
- Sim. - menti, recostado na cama limpa e arrumada, fitando a enfermeira.
- Ah, o senhor nem imagina a mudança de ânimo dela, ontem. Kátia acordou cedo, com o rosto brilhante, sorrindo e informando a quase todas as pessoas que entravam no quarto que ela estava para receber a visita de um antigo amor. Eu mesma lhe ministrei os remédios do dia, tomei-lhe o pulso e temperatura. O pulso estava mais acelerado que o normal, mas associei isto à empolgação dela com a visita do antigo amor. As enfermeiras não lhe deram muito crédito, mas ninguém disse nada, sabemos como são os doentes terminais quando criam estas ilusões. Ela pediu um lenço para cobrir o que restava dos cabelos. Mais tarde pediu um espelhinho e um batom. Passou o dia todo praticamente se arrumando.
Então a enfermeira percebeu meus olhos, minha face molhada. Minha expressão angustiada.
- O o o o.. senhor... Ah, meu Deus, não!... o senhor era quem ela esperava?
- Sim.  Meu carro quebrou e só cheguei à noite, infelizmente.
- Ah, não! - a enfermeira retorcia as mãos, contendo o choro.
- Entregue meu cartão para a direção do hospital e informe que todas as despesas serão pagas; que ela tenha um enterro digno. Estarei presente, mas afastado o suficiente para não ser notado. Adeus, Jucilene, não nos veremos mais.
- Adeus, senhor!

Esta crônica eu publiquei originalmente em 07/07/2011

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