quinta-feira, 15 de julho de 2010

Candidato surdo não pode...

Naqueles tempos (princípio dos anos 80), as empresas não se preocupavam nem um pouco com os deficientes. Em Formiga eu tinha trabalhado num escritório contábil. Vim para BH e comecei trabalhando numa fabriqueta de puxador de tampa de panela, feitos a base de baquelite, um pó preto que enegrecia minha garganta também. Cuspia um pó preto. Claro, não usava máscara protetora. Só luvas. O trabalho horrível, junto a uma prensa, dez horas diárias. Logo larguei e fui buscar outro emprego. Lembro quando fui até um escritório, num dos andares do Edifício Acaiaca, respondendo a um anúncio de jornal, para auxiliar de escritório. Quando cheguei, havia mais de 10 candidatos à vaga. Fui no balcão, onde uma morena bonita atendia a todos com um sorriso nos lábios:
- Vim a respeito do anúncio para vaga de auxiliar de escritório.
- Basta preencher este questionário. - me entregou um questionário padronizado, de duas folhas. - Ao terminar, me devolva.
Ela não perguntou sobre deficiência e como eu estava lendo perfeitamente nos lábios dela, não informei que era surdo. Também acreditei que não era o momento, uma vez que ainda iria preencher o questionário.
Preenchi, respondi as questões pessoais, sobre os trabalhos anteriores e ôba, algo que eu sou bom, escrevi uma pequena redação sobre o trabalho de auxiliar de escritório e a convivência com os colegas.
Terminei e entreguei para a morena bonita e ela disse:
- Aguarde um instante por favor.
Fiquei lá, sentado, olhando para a moça, com receio de que ela me chamasse e eu não percebesse. Eu sei que ela estava chamando pelos nomes porque ela pegava o questionário, lia em voz alta o nome e a pessoa ia até o balcão. A primeira que ela chamou foi uma moça, depois um rapaz e eu fui o terceiro!
- Jairo Fernando.
Fui para o balcão e então ela falou alguma coisa comigo, só que desta vez com a cabeça um pouco baixa, olhando para o formulário, o que impossibilitou que eu fizesse a leitura labial. Como eu não respondi, ela levantou os olhos e me encarou:
- E então?
- Desculpe, moça, eu sou surdo. Poderia repetir a pergunta?
Mas, ela não repetiu a pergunta. Ela pegou o próximo formulário e chamou o quarto nome. E, sem ao menos me dar qualquer satisfação, pegou outro formulário e chamou o quinto nome. E eu aguardando. Mas, ela reuniu o meu formulário junto aos demais que sobraram e informou, enquanto se levantava:
- As vagas já foram preenchidas.
- Mas, moça, você chegou a chamar o meu nome antes! - eu ainda reclamei.
- Pois é, mas você é surdo, não vai dar.
E não esperou que eu retrucasse ou reclamasse de novo, levantou-se de vez, dirigiu-se para uma porta aos fundos e desapareceu.
Eram tempos difíceis, quando os surdos não tinham nenhum direito e sua capacidade era totalmente colocada à prova. Bastava falar "eu sou surdo" e pronto! Era a senha para ser dispensado.

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