quinta-feira, 30 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - IV

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Ao ver o outro menino andar para lá e para cá no quarto, resolvi levantar também. Mas, quando levantei, quase caí. Fiquei completamente zonzo. Fraco como estava, muitos dias deitado, minhas pernas mal conseguiam sustentar o peso do corpo. E no decorrer de minha nova vida de surdo, descobriria que a audição é extremamente importante para o equilíbrio e na falta dela, em terreno irregular, eu sempre cambalearia. Escorei-me na cama e com muita dificuldade, escorando na parede, caminhei até  a porta que dava para o corredor. O corredor era enorme e eu me assustei muito. Pensava estar em Formiga, no Hospital Santa Marta, mas minha mente já estava trabalhando perfeitamente e eu tinha noção de espaço. Aquele corredor não era do Hospital Santa Marta. Então fui até à janela e vi o grande movimento de carros. E soube que não estava em Formiga. Entrei em pânico; não sabia onde estava; disse para mim mesmo que estava ou em Belo Horizonte ou em São Paulo. Mas, não ter um rosto conhecido, perceber que estava num local desconhecido era realmente assustador. Ironicamente, foi por isso que chorei. Mas, uma vez acordado e sabendo estar num hospital, acreditei que algum conhecido surgiria. Na tarde daquele mesmo dia a enfermeira me tirou da cama e me conduziu à sacada do segundo andar do hospital, de onde avistei familiares, mãe, madrinha, irmã mais velha e caçula no colo. Era um alívio a visão daqueles rostos conhecidos. Hoje sei que ali naquele quarto todos estávamos isolados, vítimas da meningite, que é contagiosa, e em recuperação. O tempo transcorreu inexoravelmente, a recuperação era satisfatória. Eram dois comprimidos de manhã, de tarde e de noite. E a aplicação de injeção de manhã e de tarde. Todos os dias. Tanto que a enfermeira ia mudando, do braço direito para o esquerdo, depois a nádega direita, depois a esquerda e por fim, a coxa direita e depois a esquerda. Para passar o tempo eu contava a quantidade de comprimidos e de injeções. Todos os dias eu era conduzido à varanda; todos os dias minha mãe lá estava, no pátio, acompanhada de um ou outro familiar. 
No passar do tempo descobri que o bebê na verdade era A bebê. O cabelo longo, os traços femininos eram perceptíveis, pois ela já tinha uns 8 meses. Eu chegava próximo ao berço, fitava a menininha, sorria para ela. Ela me fitava, vez ou outra retribuía o sorriso, mas era tão quietinha... Uma manhã os enfermeiros e médicos (eu não conseguia saber quem era o médico entre todo aquele pessoal vestido de branco) entraram correndo no quarto. Retiraram todas as agulhas de soro da menininha, os tubos de oxigênio e a levaram. Ela não voltou. Hoje, sabendo que éramos pacientes de meningite meningocócica e compreendendo a gravidade da situação, entendo que ela não voltou porque não sobreviveu. E neste momento em que escrevo, 40 anos depois destes fatos, ainda me emociono pela menininha que não sobreviveu. Eu e o garoto sairíamos do hospital em poucos dias. Voltaríamos para o seio da família e ainda que eu voltasse surdo, pelo menos eu voltava. E ambos teríamos histórias para contar. Assim como estou contando agora.
Mas, para a menininha não haveria histórias. A epidemia de meningite tinha ceifado mais uma vida ali.

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