sexta-feira, 31 de maio de 2013

Eu, a ditadura militar e a epidemia de meningite - V

Saí do hospital e reiniciei meu viver, agora surdo. Com o apoio familiar fui superando todas as adversidades que se apresentavam. Em 1974 entrei definitivamente no seio da comunidade surda ao continuar os estudos no Instituto Santa Inês, especializado no ensino para surdos.
Com o conhecimento dos fatos envolvendo a epidemia de meningite, jamais aceitaria o retorno da ditadura militar no país. Não nego a importância dos militares na defesa da Pátria. Mas, politicamente, os militares tinham apenas uma visão: o país primeiro, a população depois. Se para o crescimento do país fosse necessário a morte de milhares de inocentes, os militares assim o fariam. Assim o fizeram ao não tomar as providências necessárias quando ocorreu a epidemia de meningite. Ainda hoje leio absurdos do tipo “no tempo dos militares é que era bom”. É difícil contestar, porque estas pessoas têm um conhecimento da história do Brasil vista através dos olhos dos militares. Aos poucos, e põe pouco nisso, historiadores estão contando as verdades sobre a desumanidade da ditadura militar. E a epidemia de meningite é um fato pouco conhecido da população brasileira, um crime militar contra seus próprios cidadãos. Durante longos 4 anos o governo militar permitiu a disseminação criminosa da epidemia de meningite sem alertar a população. Eu poderia fazer uma enorme lista de pessoas surdas que conheço e que perderam a audição devido à meningite, naquele período. É fácil constatar, porque não há casos de surdez na família. E as datas em que perderam a audição só confirmam que a ditadura militar foi realmente criminosa. Tenho amigos que perderam a audição com 9, 10 ou 11 anos. E amigos que nasceram nos anos 70 e perderam a audição ainda crianças, com 3 ou 4 anos. Todos contam a mesma história. Em um momento da vida passaram pelo que passei, contraíram meningite, demoraram a ser atendidos e como sequela, a surdez. Lembro de meu colega A., contando para minha mãe o que ocorreu com ele, a interrupção de seus sonhos aos 15 anos. Ele queria ser médico e da mesma forma que eu, entrou no hospital ouvindo e saiu surdo. Ele ainda sofreu mais que eu, pois demorou a ter contato com os surdos, continuou o estudo numa escola regular e só veio a conhecer outros surdos quando já estava com mais de 20 anos. Hoje, lembro com tristeza dos momentos em que conhecia um novo colega surdo e consequentemente a conversa fluía para o “como você ficou surdo?” e a resposta “por causa de meningite” e o mais incrível, a resposta ao “quando?”. A resposta era, invariavelmente, 1972, 1973, 1974 ou 1975. Anos que a ditadura militar optou em não esclarecer à população sobre a epidemia de meningite.

Eu tenho admiração e um amor incondicional aos meus familiares, que lutaram pela minha transferência de Formiga para Belo Horizonte, luta essa que possibilitou estar aqui descrevendo todo o drama.
Lembro com carinho dos médicos e enfermeiros; em especial de uma enfermeira que realmente demonstrou felicidade ao chegar e me avistar de olhos abertos; a alegria de saber que eu sobreviveria. Algumas realmente se apegavam aos pacientes, sabiam do que a meningite era capaz e as maiores vítimas eram crianças. Esta enfermeira me arrumava a faca para descascar a laranja, me arrumava revistas em quadrinhos, quando percebeu que eu sempre estava lendo uma e vez ou outra fazia um carinho na minha cabeleira enorme. Nunca soube o nome de nenhum dos que me atenderam lá, pois a surdez me tornou ainda mais tímido e eu não perguntava nomes. E mesmo nomes que a gente sabe porque ouve os outros chamando as pessoas pelo nome; isso para mim já não era mais possível.

Hoje sou feliz junto à comunidade surda e adaptado satisfatoriamente à comunidade ouvinte. Alguns amigos não compreendem quando digo que, se os militares tentarem novamente um golpe, serei um dos primeiros a pegar em armas para lutar contra eles. Acreditar que os militares lutaram em defesa da democracia é muita ingenuidade. É preciso conhecer muito mais da história brasileira e entender que, para os militares, o que importa é o país, não a população. 

Três crianças estavam naquele quarto do Hospital Cícero Ferreira, isoladas devido a uma doença contagiosa. Eu, com 12 anos e meio, outro menino, com 8 ou 9 anos e uma menininha de mais ou menos 8 meses.
A menininha não voltou para casa.

(Fim do post)

3 comentários:

  1. Jairo, parabéns pelo blog e obrigada por compartilhar conosco essa história.
    Não conhecia esse surto de meningite dos anos 70, graças à essa publicação fui procurar.
    Obrigada por lembrar. É lembrando que resistimos.
    Abraços!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pelo seu comentário.
      Realmente, o surto de meningite nos anos 70 só passou a ser conhecido em anos mais recentes.

      Excluir
  2. Fantástica a sua história, precisamos destrinchar a ditadura para que se lembrem e nunca mais esqueçam.

    ResponderExcluir

Os comentários não passam por aprovação, mas serão apagados caso contenham termos ofensivos, palavrões, preconceitos, spam. Seja coerente ao comentar.