domingo, 27 de outubro de 2013

É nóis na roça... I

Naqueles tempos, e já se vão 31 anos, ir para a roça era ir para a roça mesmo. Enfrentar casarões antigos, sem energia elétrica. Mesmo quando havia energia elétrica, era restrita a iluminação ou rádio. Uma televisão na roça naquela época era raríssimo.
Quando cheguei em Formiga para passar o feriado de 1º de Maio (que caiu numa sexta-feira), encontrei o Ivan meio incomodado:
- Pô, você devia ter avisado que vinha. O pessoal está todo indo para a roça.
- Resolvi de última hora... Prá roça de quem vocês estão indo?
- Do vô do Edson. Só que o vô dele não mora lá não. A roça fica mais é fechada mesmo.
O Tonho se aproxima, dá o toque:
- Vamos falar com o Edson e você vai com eles. Eu vou namorar e já tenho as noites todas preenchidas com a Janete (com quem ele viria a se casar). Senão você vai acabar ficando aqui sem nenhum companheiro.
Claro que o Edson aprovou minha companhia. Disse que eu deveria comprar uma garrafa de vinho; ajudar a comprar o arroz, não esquecer de levar cobertor e blusa que lá estaria frio. Despedi do Tonho dizendo que nos veríamos novamente no domingo à tarde.
Fui em casa com o Ivan, peguei as coisas. Passamos no armazém (ah, sim, ainda existem armazéns em Formiga) e compramos vinho e arroz. Fomos para a casa do Edson, onde ele estava arrumando as coisas necessárias na bicicleta. Pegou uma galinha (viva) também. Foi lembrando de um monte de coisas, eu e o Ivan mais atrapalhando que ajudando, fazendo piada com tudo. Faca, colher, garfos e umas panelas. Ele tinha uma espingarda de chumbinho, que estava levando para caçar passarinho, codornas ou rolinhas, para a gente assar. Eu disse que iria aproveitar para atirar com uma arma pela primeira vez na vida (que pena que lá eu esqueci completamente disso!). Arrumamos muita coisa na bicicleta, tomamos café e ficamos fumando do lado de fora da casa do Edson, aguardando os demais companheiros.
- Quem mais?
- O Amarildo e o Walter.
Não conhecia o Walter. O Edson que era mais amigo dele, disse que era boa gente.
Eles chegaram juntos e o Amarildo foi logo falando:
- Você conhece a Enizinha (único nome fictício em todo este relato)? – riu e sem esperar resposta complementou – É mais uma da minha lista.
Todos rimos. O Amarildo tinha e fazia a fama de pegador. Ele tinha 19 anos à época. O Edson também. O Ivan era “de menor”, 17 anos, eu tinha 21 e o Walter era o mais velho, 22 anos. O Walter foi apresentado, o pessoal riu do espanto dele ao saber que eu era surdo. Meus três amigos sabiam o alfabeto manual dos surdos. Conversavam comigo normalmente. Companheiros bons, com quem passava horas e horas conversando amenidades. O Amarildo, a despeito de muitas conversas sobre mulher, também debatia assuntos diversos com conhecimento.
Pegamos o caminho para a Cerâmica, cruzando a ponte de madeira sobre o Rio Mata Cavalo. O Edson morava ali perto. Revezando para empurrar a bicicleta, que com toda tranqueira que o Edson inventou de levar ficou pesada. Passamos a Cerâmica, pegamos asfalto. Fui conversando com o Walter, informações de ambos, sobre trabalho, família, exército, etc. Ele tinha um excelente movimento labial e também viu como os meus amigos conversavam comigo (mesmo usando o alfabeto, eles falavam em voz alta, com vagar). Os três, Amarildo, Ivan e Edson entraram numa mata densa para ver se conseguiam matar algum passarinho que serviria de refeição. Chegaram com uma rolinha tão pequena que eu até fiquei com dó:
- Poxa, pessoal, se depenar esta rolinha não vai ficar nada...
Rimos. Jogaram fora, com dó. Para nós era importante matar os passarinhos somente para comer. Eu era totalmente contrário a matar passarinhos apenas por matar. Acho que só o Amarildo era meio contra  o que eu dizia, pois foi o único a não se manifestar a favor. Mas, conhecedor da minha defesa acirrada de algumas convicções, não polemizou. Eu fui carregando a espingarda, ela já estava descarregada, e brincando, lembrando que eu e o Walter conversamos sobre o exército. Eu expliquei que fui dispensado devido à deficiência. Pus a espingarda no ombro e alterei a voz:
- Ordinário, marche! Esquerdo, direito, esquerdo, direito...
Conversamos sobre exército, que eles serviram, menos o Ivan, claro. Disseram que, apesar de puxado, é bom, há companheirismo e aprendizado, principalmente sobre armamento. Eu falei que se não tivesse ficado surdo, provavelmente seguiria carreira nas Forças Armadas, porque eu gostava muito do Exército e da Marinha, mas não da Aeronáutica. Desde essa época eu já sabia de cor, os hinos brasileiros, o Hino Nacional e de cada uma das Forças Armadas. Gostava em especial da Canção do Exército, “Nós somos da Pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados...”, que eu ouvia sempre nos desfiles de 7 de Setembro. O bom de cidades do interior é justamente a possibilidade de participar de todas as festas cívicas. Os desfiles ocorriam no centro da cidade, era só uma caminhada de dez minutinhos e estava lá. Eu comecei a cantar a Canção do Exército e o pessoal se espanta:
- Como você sabe essa música?
-  Ouvi quando era mais novo. Minha memória auditiva é espantosa. Lembro de muitas e muitas músicas que já ouvi.

(Relato em 4 capítulos! Continua AQUI)


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