quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O ébrio

Eu sou muito paciente com os bêbados. Às vezes, no ponto do ônibus, tarde da noite, percebo bêbados esperando o ônibus como eu, e fico triste, pois sei que na casa deles, mãe ou esposa, ficarão tristes ao vê-los chegar daquela maneira. Houve uma vez que um estava recostado na parede, do meu lado. Começou a deslizar para o lado, quase caindo. Resolveu sentar. Falou alguma coisa comigo, provavelmente sobre o ônibus que ele ia pegar. Eu disse o número do meu ônibus e perguntei se ele ia pegar este também. Ele negou e falou o número do ônibus dele, que infelizmente, eu não entendi. O meu ônibus veio e ele ficou lá, já dormindo, caído de lado. São situações complicadas do nosso viver.

Quando solteiro, eu gostava de tomar um chope nos botecos do centro. Claro que conversava, com dificuldade, com alguns dos frequentadores do bar. Principalmente os que "pegavam o jeito" de conversar comigo, que é um pouco mais devagar, mas quase normal e movimentando bem os lábios. Ocorre que, às vezes, nem adianta eu falar que sou surdo. Tem alguns bêbados que "não ouvem" o que eu digo.
Estou tomando meu chope, o cara chega e me dá um abraço:
- Zé Luiz, como vai? - a voz arrastada, está muito bêbado mesmo. Porém, eu leio perfeitamente o que ele disse e respondo:
- Colega, eu não sou o Zé Luiz.
- Como não? Brincamos muito lá em Venda Nova, quando sua falecida mãe ia visitar a minha.
- Minha mãe ainda está viva.
- Caramba! Me disseram que ela tinha morrido no ano passado! Que boa notícia, Zé Luiz! - grita para o garçom - Traz mais um chope para o Zé Luiz e uma pinga para mim.
- Colega, eu não te conheço, você está me confundindo. Meu nome é Jairo.
- Deixa disso, Zé Luiz! - ele parecia não ter escutado nem metade do que eu disse - Você ainda é o bamba no pandeiro?
Eu não consegui deixar de rir. E informei ao "colega":
- Eu?? Cara, eu sou deficiente auditivo. Sou 100% surdo.
Ele colocou as mãos na cintura e ficou me olhando; aqueles olhos de bêbado, vermelhos, que não conseguem fixar bem a imagem. Já tinha uns vinte minutos que a gente estava conversando "normal" e só agora eu dizia que era surdo. Pela cara dele eu percebi que ele ia acabar chorando. Como eu também estava bebendo (mas não estava bêbado) demorei a achar a melhor solução, que era até simples:
- Cara, vou te mostrar minha identidade, para provar que você está me confundindo.
Mostrei minha identidade e também a carteira da Associação dos Surdos.
- Porque você não falou logo, rapaz!!
- Mas eu falei, você é que não me deu ouvidos.
- Você é muito parecido com o Zé Luiz! Você tem irmãos em Venda Nova?
Eu ri, novamente:
- Só tenho irmãs!
Ele não desistiu:
- Como você está conversando normal comigo? Você não é surdo coisa nenhuma.
- Você tem um movimento labial bom, fala um pouco devagar e está "de fogo", nem percebe quando eu não entendo alguma coisa.
Ficamos amigos. O nome dele era Elias. Outras vezes bebeu comigo ali naquele mesmo bar, e uma vez, sóbrio, disse:
- Quando você disse que era 100% surdo, eu quase chorei. Porque o Zé Luiz adorava uma roda de samba, tocava pandeiro como ninguém... Uma tristeza muito grande me abateu naquele momento. Jairo, deve ser uma dureza ser surdo, né?
- Dureza, é, Elias, mas eu sou um cara muito feliz. Principalmente porque neste mundo existe pessoas como você.

(tradução:saúde!viva!felicidades!)
(Publicado originalmente em 22 de dezembro de 2009)

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