segunda-feira, 22 de abril de 2013

Eu e o bullying

by jafeol

Antigamente dizia-se “encher o saco”, “zoar”, “azucrinar”, “zombar”, “avacalhar”... Hoje, bullying é o termo utilizado para designar estas ações. Mas, convenhamos, que tratar todas as zoações das crianças e jovens como bullying é complicado. Eu nunca liguei para os que me chamavam de quatro olhos. E na escola, não perdoávamos, havia o Gaguinho, o Vinte-e-quatro, o Rato, o Branca de Neve, entre outros. Isto no meus tempos ainda ouvindo. Talvez a diferença seja que não havia uma constante nas provocações. Provocava-se hoje, no outro dia ninguém estava lembrando mais do que foi feito. E não havia redes sociais, nem e-mails, nem youtube para azucrinar a pessoa constantemente.
Já surdo, sabia que as pessoas se aproveitavam da minha surdez para xingar ou fazer gracinhas pelas minhas costas. Não era muito no início, porque não sabiam quanto realmente eu era surdo. Mas, quando eu estava com 14∕15 anos, a maioria das pessoas que comigo conviviam, sabiam que eu era 100% surdo. Foi quando começaram a se aproveitar deste fato para me xingar, principalmente quando eu estava de costas, claro. Só que se eu soubesse que me xingaram (e alguns fiéis amigos sempre me alertavam disso) , não deixava barato. Fosse quem fosse, pequeno, grande, jovem ou adulto, eu ia tirar satisfações, na maioria das vezes, partindo para as vias de fato. Meus amigos alertavam os engraçadinhos que, eu não escutava, mas se eu percebesse que eles estavam me xingando, eu partia para a briga sem dó nem piedade. Apesar deste alerta, alguns não acreditavam: a velha história de “se é surdo, é bobo”. Um dia, após uma partida de futebol com o pessoal da rua, o jogo acabou com vitória do meu time, mas sempre tem os maus perdedores. Como eu tinha feito gol e comemorado com muita avacalhação (hoje isto é comum, no futebol, não é mesmo? As dancinhas cheias de provocações), os perdedores apelaram e quando estavam indo embora, o A.L. me xingou. Meu amigo fez uma careta ao ouvir o xingamento e eu percebi que tinha algo errado:
- O que foi?
- Nada! Vamos voltar para o campo...
- Pela sua expressão eles disseram alguma coisa que você não gostou...
- Ele te xingou de “surdo filho de uma égua”.
Os dois já iam longe, o Z.P. e o A.L. Como meu amigo não especificou quem tinha xingado, eu acertei primeiro o Z.P., jogando-o no chão. Ele caiu, mas não ficou calado:
- Não foi eu não, foi o A.L.
O A.L. já estava correndo, olhando para trás. E quando eu comecei a correr atrás dele, ele gritou. Gritou bem alto, porque os vizinhos surgiram nas janelas e eu tive que deixar prá lá. Na confusão, quem apanhou foi justamente quem não me xingou, mas eu pedi desculpas, dizendo que pensei que os dois tinham me xingado. Mas, disse também que o A.L. escapou naquele momento, mas quando eu o encontrasse de novo, ele que se preparasse.
No meu bairro em Formiga, este fato se espalhou e quem me conhecia, ainda que só de vista, nunca mais mexeu comigo. Meus amigos mais próximos me contaram que os garotos contavam como eu saí em desabalada carreira atrás dos dois que me xingaram, como um voou dois metros e como o outro correu feito um louco gritando “manhêê!”.
Anos depois o meu amigo relembra o fato e ri:
- Se você escutasse, você entenderia porque o pessoal surgiu nas janelas. O A.L. gritou tão alto, mas tão alto, que até eu pensei que você estava matando o menino. Você derrubou o Z.P. e quando começou a correr atrás do A.L. ele gritou “mãããããããããeee” tão prolongado e tão alto, que era capaz da mãe dele escutar mesmo – o A.L. morava alguns quarteirões à frente.
Não aconteceu o entrevero com o A.L. Não o vi durante muitos dias. E um dia ele tomou uma atitude muito digna. Ele me procurou e pediu desculpas. Esclareceu que foi uma coisa do momento, raiva do jogo perdido. Ele se tornou um bom amigo, sempre que eu o encontrava, conversávamos. Ele era cruzeirense também, o que facilitava sobre o que falar.
Os surdos não consideram os defeitos físicos ou estéticos como motivo de chacota. Na verdade, nós surdos, utilizamos o defeito ou algo diferente na aparência da pessoa, para criar o seu sinal particular. O meu sinal tem origem nos óculos. Muitos outros recebem o seu sinal devido a pintas na face ou em outras áreas do corpo. O tipo de cabelo, franja, tiara ou qualquer artefato mais chamativo que a pessoa usa, pode-se tornar o seu sinal pessoal. Por isso o bullying não é comum entre os surdos: eles consideram os defeitos apenas uma característica pessoal. Mas, um grupo de surdos consegue azucrinar um desafeto, o ignorando ou não permitindo sua participação nas brincadeiras do grupo.
Todo surdo, com surdez profunda ou não, lê facilmente nos lábios os xingamentos mais comuns, seja “viado”, “filho da p*” ou “vai tomar no c*”.  São xingamentos que o acompanham durante toda a vida, seriamente ou em forma de brincadeira (os ouvintes acham a maior graça quando xingam um surdo de “viado” e o surdo entende). 

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