terça-feira, 2 de abril de 2013

Canta comigo...


Gostava do barzinho e do seu ambiente diversificado. Na maioria das vezes eu sentava numa das mesas próximas do palco e tomava meu chopp sossegadamente. Vez ou outra mulheres se sentavam e puxavam conversa ao perceber que eu ficava mais de meia hora sem companhia. Eu era educado o suficiente para demonstrar que estava satisfeito sozinho. Satisfeito em observar as pessoas, o ambiente à meia luz, tomar meu chopp e relembrar que já tive momentos muito melhores na vida. Um dia percebi que mudaram o momento musical. Tiraram o pessoal de uma banda sem graça e colocaram uma linda morena. A morena cantava com entusiasmo. O olhar, lindo e triste. Descobri que ela cantava três vezes por semana, era a atração principal do sábado. Descobri também que a bandinha sem graça tocava nos outros dias. Passei a ir no bar principalmente nos dias que a morena cantava. E um dia, ela veio se aproximando da minha mesa, no seu vestido azul, longo, os cabelos  escorridos, o olhar triste, mas com um sorriso nos lábios. Pensei que ela se dirigia para algum lugar ao fundo, mas não, ela parou e puxou a cadeira de frente da minha mesa. Sentou-se e perguntou:
- Você gosta muito da minha música, heim? Vejo você aqui todos os dias em que canto, sempre prestando atenção...
- Não é a sua música. É só você mesma...
- Não gosta da minha música?
- Não tenho como responder a esta pergunta. Nunca ouvi sua música...
A expressão de espanto da cantora era indescritível. Ela me fitou, gaguejando...
- Como é...??
- Sou completamente surdo, Marian!!
- Mas sabe o meu nome e está conversando normalmente comigo...
- Seu nome está no cartaz na entrada do bar. Seu movimento labial é perfeito e eu já estou meio que acostumado a acompanhar algumas frases do tipo “você é meu amor”, “sou feliz por dizer”, entre outras...
- Não acredito. Você deve estar brincando comigo...
- Neste caso, não faz meu estilo. Porque eu realmente gostaria muito de ouvi-la. Deve ter uma voz maravilhosa, porque se eu aprecio somente sua beleza, outros ficam embevecidos com sua voz e sua música.
- E qual é o seu nome?
- Jairo. Jairo Fernando.
- Jairo, não dá pra acreditar que você é surdo, não... – a expressão era de quem já estava enjoada com uma brincadeira que começou interessante e de repente perdeu a graça.
- Tenho comigo somente o documento de beneficiário do transporte coletivo, mas que não comprova minha surdez, pois está escrito somente deficiente. Mas, pela lógica, posso me levantar, me mover, estou enxergando perfeitamente, apesar de míope, falo normal e pela nossa conversação acredito comprovar que não sofro das faculdades mentais. Sobrou a surdez como deficiência...
Mostrei o meu passe livre do transporte coletivo. Exibi meu melhor sorriso, sabendo por experiência própria que, quando descobriam que eu era surdo realmente, 90% das pessoas se calavam e se afastavam. Marian apoiou o queixo na palma da mão e ficou pensativa, enquanto me fitava pelo canto dos olhos, meneando levemente a cabeça. O gerente se aproximou e disse para Marian:
- Você tem mais uma música...
Após tanto tempo frequentando um mesmo local, de uma forma ou de outra acabamos conhecendo, ou os funcionários, ou o gerente do local. O gerente me conhecia devido a um dia meu cartão de crédito ter falhado. A bendita maquininha não lia o chip de jeito nenhum e chamaram o gerente. Foi quando eu disse que era surdo e expliquei como conversar comigo, falando um pouco mais devagar. A moça responsável pelo caixa me via quase que todo fim de semana no bar e ela disse que anotaria o valor, mas que precisaria do aval do gerente. Fui bem tratado e não tive problemas. Às vezes, a surdez é realmente uma vantagem.
Marian estava novamente no palco, linda, cantando mais uma música do seu repertório. Pensei no momento surreal que passamos e continuei admirando sua beleza. E lendo uma ou outra frase ou palavra em seus lábios. Era fácil ler “amor” em diversas passagens da música. Pensei comigo mesmo que a partir da agora ela só passaria e me cumprimentaria com um aceno de cabeça. Mas, fui surpreendido com Marian se sentando novamente na cadeira vazia à minha frente.
- Jairo, é inacreditável... – ela juntou as mãos espalmadas frente aos lábios – eu, eu... tudo que eu imaginava é que você ouvia atentamente minha música... 
- Não está mais duvidando da minha surdez?
- Não. – ela riu – O Reginaldo  me contou do seu problema com o cartão e de como você explicou para ele que era surdo.
A madrugada avançava. O bar, após as 3 h, só disponibilizava música eletrônica. Marian se interessou pela minha história. Quis saber como fiquei surdo, como convivia com isso e porque sentava ali na frente e prestava atenção em uma cantora que não ouvia? Como explicava isso?
- Não tem uma explicação lógica. Na verdade, sempre sentei aqui, desde quando era aquela bandinha sem graça que tocava, ainda toca, aliás, mas não nos dias que eu venho. Gosto de sentar e observar, de tomar o meu chopp tranquilamente e de curtir estes momentos meus. O som, a sua música, chega até mim através das vibrações, mas eu só pego basicamente o ritmo dos instrumentos graves, principalmente do tambor. Mas, admiro principalmente sua beleza, sua meiguice ao cantar. E tens uns olhos tão profundos, tão tristes, que me encantam de verdade...
Marian sorriu, um sorriso triste. Ela me fitava de modo estranho. Minha história parecia tornar aqueles olhos mais tristes ainda.
- Olhe, Marian, sou um cara feliz, na verdade. Ficar surdo foi um fato muito triste, mas que me proporcionou conhecer o lado mais difícil da vida dos deficientes, não somente os surdos, mas os cegos, paraplégicos e outros. É aquele momento profundo que você descobre que tem um problema sério, muito sério mesmo e depois descobre que há pessoas que têm problemas ainda mais sérios que o seu.
Ela me fitou em silêncio. O olhar triste, contrariado.
- Se colocar os fones de ouvido da aparelhagem de som, dá para você “ouvir”?
- Não. – eu ri – É a mesma coisa se eu apenas encostar a mão na caixa de som para sentir o som. Apenas sentirei mais as vibrações nas minhas orelhas. 
- Nem se aumentar o volume?
Percebi o que ela queria e esclareci logo:
- Não é possível para surdos como eu, com surdez bilateral profunda, praticamente 100% surdo, ouvirmos música como a música é. Posso sentir os sons e a vibração, razoavelmente o ritmo, mas não a voz humana entonando a canção.
Ela meneou a cabeça, tristemente.
- Você conhece alguma das minhas músicas?
- Não. Nenhuma. É você mesma que compõe?
- Sim. – me pegou pela mão e disse – Venha comigo.
Subimos o pequeno palco e próximo à aparelhagem eletrônica ela puxou alguns papéis e me entregou um. Era a letra de uma música. Eu ia começar a ler, mas ela me tocou.
- Espere.
Pegou um fone de ouvido para ela e colocou outro em mim, delicadamente.
- Já disse que isso não adianta muito, Marian...
Ela fez o sinal de silêncio em meus próprios lábios. Sentados em tamboretes, frente a frente, ela sorriu e cantou, olhos nos olhos, enquanto eu procurava acompanhar a letra da música no papel que ela me entregara antes e ler os lábios dela ao mesmo tempo.
“Eu quero apenas lhe dizer
e me escute, por favor,
eu quero apenas lhe dizer,
que você é o meu amor
que você é o meu amor
com o coração apaixonado
o que eu sinto por você
sou feliz por lhe dizer
que você é o meu amor
que você é o meu amor
me escute por favor
veja como sou feliz
por apenas lhe dizer
que você é meu amor
que você é meu amor”


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Os comentários não passam por aprovação, mas serão apagados caso contenham termos ofensivos, palavrões, preconceitos, spam. Seja coerente ao comentar.