domingo, 1 de abril de 2012

Meus tempos trabalhando em gráfica - II

Toda empresa tem o colega excessivamente avacalhado, que não perdoa ninguém e todos são alvos de suas brincadeiras. O Salsicha (este eu nunca soube o nome verdadeiro) avacalhava com todos, mas azucrinava mesmo os crentes (naqueles tempos ainda não se usava a palavra evangélico). Tínhamos um colega crente na área de máquinas, que não lembro o nome e que por ser o mais fanático, era o único crente apelidado de Crente. O Salsicha o alugava muito na hora do café e do almoço. O Crente fazia uma oração de mais ou menos 10 minutos antes de começar a almoçar. Escondia o rosto entre as mãos e começava a rezar (eles preferem dizer orar). Às vezes a gente já estava terminando de almoçar e ele ainda não tinha terminado a oração. Até eu mesmo já tinha dito a ele:
- Cara, você devia fazer uma oração mais curta, porque senão todo dia você almoça comida fria e faz mal.
- Deve agradecer a Deus o alimento que Ele te deu.
- Bom, eu agradeço, mas, com uma oração curta, por que senão a comida fica fria.
Playboy de Março de 1984

Um dia no horário de café o Salsicha chega até o Crente e abre a revista Playboy na página central diante dele.
- Veja o que você está perdendo!
O Crente tapa os olhos com as mãos e baixa a cabeça. Durante a semana toda o Salsicha insistia em abrir a Playboy na página central diante dos olhos do Crente. Ele não olhou nenhuma vez. Todas as vezes cobriu os olhos com as mãos e esperou o Salsicha se afastar.

Dos crentes que trabalharam comigo, o mais complicado era o Kalunga (também não lembro o nome verdadeiro; ele ganhou esse apelido por ir trabalhar quase toda segunda-feira com a camisa do Corínthians, na época com patrocínio da Kalunga). Ele tinha o péssimo hábito de enfiar o diabo no meio de todas as conversas.
Eu e os colegas conversando sobre uma discussão entre duas brochuristas, opinando e tal e o Kalunga:
- O diabo cria inimizades e intrigas...
Outra vez um colega faltou uma semana devido a acidente e estávamos preocupados com ele, mas aí chega o Kalunga:
- O diabo dá os bens materiais e depois cobra caro...
  Um dia estávamos conversando sobre a noitada anterior, o Roberto rindo:
- Você ganhou duas partidas (de sinuca) que ninguém dava um centavo. E depois ainda ficou tomando cerveja com aquela morena bonita...
O Kalunga entra na conversa:
- Mas vocês deveriam evitar jogo, bebida e mulheres. Esta é a maneira que o diabo encontra para tentar os homens...
- Mas, Jesus Cristo transformou água em vinho... ou seja, beber não tem problema... – eu falei, meio que brincando.
- O diabo coloca este tipo de palavras na boca dos falsos profetas que vão levar o mundo à perdição total...
Como ele falou diretamente para mim, eu apelei mesmo:
- Cara, você tem fixação com o diabo. Fala um pouco de Jesus. Porque eu bebo mesmo, jogo, me envolvo com mulheres e mando o diabo para a p. que p ...
Enquanto os colegas caíam na gargalhada, o Kalunga se afastou carrancudo e pisando duro.

Ele parou de conversar comigo uns tempos. E só voltou quando uma vez, ao se aproximar do grupo de colegas eu já fui avisando:
- Se for falar de religião lembra o que aconteceu da última vez. Se for para falar do futebol e do seu Corínthians que perdeu ontem, tudo bem.
Eu era, por assim dizer, “popular” na gráfica. Praticamente todos me conheciam e embora lá trabalhasse outro surdo, quando diziam O Surdo, sabiam que estavam se referindo à minha pessoa. O outro surdo, José Penna, tinha um nível intelectual baixíssimo, tinha problemas de relacionamento e não convivia socialmente com os colegas. Não sabia Libras (que na época não era chamada de Libras e sim de Língua de Sinais) e só conversava mesmo comigo (todos diziam que eu tinha uma paciência de Jó com ele) e com uma das brochuristas (ela aceitava a companhia dele durante o almoço e na hora de ir embora). Como eu convivia socialmente com muitos colegas, jogando sinuca, tomando cerveja  ou simplesmente conversando banalidades, o que eu aprontava repercutia por dias. Essa de eu ter mandado o diabo a PQP ficou na boca do pessoal por muitos dias. Os colegas do setor me contavam, rindo. O pessoal passou a brincar de perguntar um para o outro “e o diabo?” e a resposta era “manda pra PQP!”. 

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