quinta-feira, 19 de abril de 2012

A surdez como aliada - II

Eu sempre estava alegre e brincalhão com todos. Essa é a melhor atitude diante de um problema sério, que é não ouvir os sons em derredor. Sempre havia uma boa alma ali no meio do pessoal, o Tiãozinho, o Josué, o César, que davam um jeito ou outro de me colocar na conversa, de me inteirar dos assuntos. Eu participava de tudo com o pessoal. Jogava sinuca, palitinho, damas, baralho. Só não jogava muito futebol, devido a minha miopia. Na maioria das vezes o pessoal jogava futebol de salão à noite, o que piora e muito a visão de quem é míope. Lembro de jogos de sinuca, em dupla, valendo cervejas. Jogos de palitinho, também valendo cerveja: quem perdia pagava uma. Muitas noites indo embora de ônibus com o Josué, ele me perguntava:
- Quantas cervejas você pagou?
Eu respondia rindo:
- Nenhuma! Bebi de graça hoje!
No palitinho ainda ríamos muito quando eu estava na final com algum colega e este dizia:
- Seis. – sendo apenas dois competidores, o máximo é seis.
- Três? – o movimento labial (o som também, né?) é muito parecido para seis e três.
- Não! Seis.
A galera em volta desenhava o número no ar. Eu ria:
- Está pedindo seis e eu estou com lona na mão. Então é três.
- PQP, acertou de novo! Vou ter que pagar outra cerveja.
Eu jogava damas desde pequeno. Mas o aprendizado maior veio com (eu já escrevi sobre isso) as tardes solitárias que eu passava no barracão, na época que estudei no Instituto Santa Inês. Eu lia o que caía em minhas mãos, como já disse, livros de ginástica, esportes, regras de jogos, devido a minha irmã professora de Educação Física. Um dia estava lendo um livro com mais de 200 páginas, sobre estratégias de damas. Minhas irmãs chegavam e indagavam, espantadas, pensando que a meningite, além da surdez, talvez tenha causado algum dano no meu cérebro:
- Você está jogando damas sozinho??
Mas, a mais velha um dia percebeu o livro ao lado e deve ter comentado com as outras. Minhas irmãs não se preocupavam muito com estas minhas maluquices, porque sabiam que no fundo havia uma explicação lógica.
Quando, na gráfica, o pessoal começou a jogar damas na hora do almoço, tinha uma fila de bons jogadores e uma boa galera só de espectadores. Eu ganhava bastantinho, mas o Márcio, um colega também surdo, era melhor que eu. O pessoal dizia que não, que nós dois éramos muito bons. Que eu me atrapalhava ao jogar contra ele. Porque ele ganhava de mim, perdia para o Zé Luís e eu ganhava do Zé Luis.
A surdez pois, era um atrativo, uma aliada, que acabava despertando curiosidade nas pessoas, devido justamente ao fato de eu participar de tudo e ser surdo.
Hoje já não é possível a associação jovem/surdo/inteligente, por causa da minha idade. O tempo desmoraliza um bocado com tudo. Uma pessoa mais jovem, surda, é surpreendente. Já uma pessoa de idade, não. Muitas vezes ocorre a associação errônea de idade e surdez:
- Este é o Jairo, meu amigo, ele é surdo.
- Ah, eu tenho um tio que também é meio surdo. – diz o distraído, sem atentar para o fato do colega “falar” comigo usando Libras (Língua Brasileira de Sinais).
Assim, uso hoje o fator conhecimento de informática, programas de computador e videogames. Conheço muita coisa de informática, conheço muito bem os programas da Microsoft (Windows, Word, Excel, Powerpoint, etc) e jogo videogame, razoavelmente bem. Sei que com mais idade a surdez acabará deixando de ser um fator de surpresa. Um jovem surdo é surpreendente, fora dos padrões. Um velho surdo, é comum. Será algo realmente comum, tipo:
- Este é o Jairo, meu amigo, ele é surdo.
- Ah, bom, meu avô também é meio surdo!

"A cultura é o melhor conforto para a velhice."
Aristóteles

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