quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Os diferentes

- Jairo, você acha que eu sou esquisito?
Meu amigo Zé Luis, esquisito pra caramba, me faz a pergunta difícil. Mentir ou não mentir?
- Sim. – arrisquei falar a verdade e pagar para ver.
- Por que?
- Zé Luis, a sua primeira pergunta já foi muito delicada e esta é mais delicada ainda. Só posso dizer que você, assim como eu, é bastante retraído. Aliás, mais retraído do que eu.
- Só você e o Álvaro são amigos meus e no entanto, só você respondeu “sim”.
- Porque é um assunto que deixa todos desconfortáveis. E eu respondi a sua pergunta com “sim”, porque eu mesmo fico satisfeito quando as pessoas se aproximam de mim, não temem minha surdez e perguntam sem rodeios como fiquei surdo, porque não escuto. A oportunidade de explicar como fiquei surdo já possibilita um melhor entendimento de minha capacidade de compreensão, seja com a leitura labial, ou mesmo escrevendo num pedaço de papel.
- O meu jeito também é um problema, não é mesmo? Já ouvi o pessoal dizendo que sou esquisito e que ando como uma pessoa desconfiada de tudo, um predador, vagaroso, dissimulado.
Eu ri.
- Você anda ouvindo o que não deve... As pessoas consideradas normais, em sua maioria, não aceitam facilmente as diferenças. Assim, eu, você, os gays, as lésbicas, os deficientes, os loucos mansos, somos todos levemente rejeitados pela sociedade, alguns mais, outros menos. Opção sexual que não seja hetero, então, é causa de aversão, homofobia.
- Não tenho facilidade para conversar com qualquer pessoa. Você se tornou meu amigo quando me abraçou no meu aniversário, único abraço que recebi dos colegas. Os demais, preferiram um aperto de mão. Percebo que muitos deles têm medo de mim.
- Sim, alguns pensam que você é um pouco esquizofrênico e poderia se desentender com eles.
- Jairo, que fique entre nós: eu sei como construir uma armadilha explosiva, acionada, por exemplo, por uma ratoeira.
- Bom, se você já tem sua lista de nomes que pretende explodir lá no trabalho, permita-me acrescentar alguns...
O Zé Luis riu muito. Nunca tinha visto o mesmo rindo de verdade. Na maioria das vezes era um esgar horrível. Rindo daquela forma tão despreocupada e feliz, ele era bem menos assustador do que parecia aos olhos dos demais.
- Você tem um senso de humor incrível. Não acredita no que eu disse?
- Acredito. Mas, não acredito que o seu saber sobre armadilhas explosivas seja para fazer mal a alguém. – eu disse confiante mas, sinceramente, não tinha nenhuma certeza sobre isso. Confiei nos meus instintos: ele era superesquisito, mas não era uma pessoa má.
Eu o fitei, aguardando a resposta. Ele respondeu tranquilamente:
- Na fazenda do meu pai as ratazanas conseguiam fugir das ratoeiras e meu pai não concordava em utilizar veneno próximo ao celeiro. Fizemos um estudo e descobrimos que surgia uma ninhada de mais de dez ratos quando deixávamos as ratoeiras armadas. Eles conseguiam escapar da maioria das ratoeiras. Só os menores eram pegos. Então, falei com meu pai que criaria uma armadilha explosiva, disparada pelas ratoeiras. Meu pai não acreditou e disse que eu podia tentar. Tempos depois, com minhas armadilhas explosivas detonei mais de nove ratos, que mais pareciam gambás de tão grandes. O cenário era triste, porque alguns ratos não morreram no momento da explosão e sim depois, pois era perceptível que perderam partes do corpo e sobreviveram o suficiente para morrer longe do celeiro.
De todo o relato, percebi que ele não tinha realmente nenhuma satisfação em causar sofrimento. Ele disse “o cenário era triste ... Os sociopatas ou psicopatas não se preocupam com as dores que causam.
- Zé Luis, mantenha isto em segredo. As pessoas já não lidam bem com as diferenças, imagine com alguém que sabe criar armadilhas explosivas.
- Ou seja, todos têm medo do esquisitão aqui e se eu disser que posso explodir o prédio, ninguém mais trabalhará tranquilo.
Ele fez uma pausa, um tanto triste e perguntou:
- O que posso fazer para mudar esta visão errônea das pessoas?
- Vou lhe explicar como é o meu caso, talvez assim você entenda como o assunto é complexo. Num primeiro momento as pessoas me vêem como meio bobo, burro e incapaz de compreender alguma coisa mais profunda do trabalho. Meio bobo porque eu, sendo surdo, fico alheio a tudo e para captar alguma coisa, alguma mensagem das conversas, fico olhando para a cara de um e outro que esteja falando. E me consideram burro, num primeiro momento, porque falam alguma coisa sem me darem tempo de entender e como eu não respondo, consideram que não conheço o assunto. E incapaz porque, se sou meio bobo e burro, não darei conta do que quer que seja. Esta situação só se modifica entre dois e seis meses depois.
- Dois a seis meses? Você está de brincadeira?
- Não, é sério. Dois meses para as pessoas de mente mais aberta e que lidarão comigo no dia a dia e perceberão que todos os (pré)conceitos estão errados. Seis meses para os que não acreditam mesmo que quem não é normal não tem as mesmas capacidades que ela, a pessoa normal, acredita ter.
- E como mudam de opinião? O que você faz?
- Na verdade, quase nada. A convivência acaba mostrando que não sou nada do que prejulgaram que eu fosse. Coisas simples, como apontar um erro numa cláusula contratual, mostrar que a formatação de um texto pode melhorar e assim por diante. Um dia o chefe disse para mandar outro colega dar andamento à renovação de um contrato e eu disse que o contrato já tinha cinco anos e não poderia ser renovado (contratos públicos têm limite de 60 meses). Uma coisa comum no dia a dia do meu serviço, mas sendo eu a apontar o fato demonstrava que não era o incapaz surdo que acreditavam que eu fosse.
- Eu sou antissocial por natureza, Jairo. E já tem mais de quatro anos que lá trabalho e tenho somente você e o Álvaro como amigos. É o meu jeito e sendo assim mesmo, para mim está bom. Não quero ser amigo de todos. Apenas não gosto que pensem que eu sou um maluco capaz de explodir o prédio.
- Não há como mudar isso. Como eu lhe disse, a sociedade considerada “normal” não aceita muito bem os que são diferentes. E no seu caso, como você é arredio, o preconceito vem do estereótipo dos assassinos e terroristas do cinema, que são retratados como pessoas esquisitas e arredias.
- Mas, você muda. Como você disse, de dois a seis meses você acaba se tornando um “normal” entre eles.
- Sim, mas devido também a um grande esforço de minha parte. Passar meses sendo considerado incapaz não é nada fácil. Demonstrar minha capacidade de forma sutil, sem forçar a barra. Não é fácil porque um “normal” chega no setor e em quinze dias já está enturmado com todos. Todos nós, os considerados diferentes, desejamos ser tratados normalmente, enturmar rapidamente como os normais e em qualquer ambiente, casa, rua, trabalho, igreja, etc, ser considerado capaz, dentro de nossas possibilidades. Sermos nós mesmos.
- Realmente, não é fácil... Algo mínimo, que eu deveria modificar?
- Quem dera fosse eu expert neste assunto para lhe indicar soluções. Acredite, seja você mesmo. Ou os outros aceitam você assim como você é ou que vão se danar. Nem todo mundo é meu amigo, mas os que são o são por me aceitarem como sou, surdo mesmo.
O Zé Luis riu e concordou.
Um dia, no elevador lotado, nos encontramos e eu provoquei:
- Dia difícil, Zé Luis. Estou sem um pingo de paciência hoje, com tudo e todos.
- Dá uma vontade de explodir tudo, né? Mandar este prédio pelos ares...
Nós dois seguramos o riso, enquanto percebíamos as caras assustadas de todos os outros que estavam no elevador.

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