sábado, 12 de janeiro de 2013

Atitudes

Devido a meu semblante sempre “carregado”, muitos consideram que eu sou bravo. Muitas vezes o semblante é intimidador, causando receio até mesmo em quem tem um porte físico mais avantajado que o meu. Um jovem e sua esposa estavam discutindo com minha mãe, devido a problemas no apartamento de uma das minhas irmãs (infiltração de água do apartamento da minha irmã no apartamento deles). Era um jovem alto, bem mais alto que eu, que tenho 1,75. Ele deveria ter uns 2 m, mais ou menos e um porte físico atlético. Não sei o que o rapaz estava falando com minha mãe, mas em certo momento ele se tornou intimidador e ameaçou minha mãe ou minha irmã de alguma forma. Tanto que minha mãe começou a chorar, alegando estar mal e sentou-se nas escadarias do corredor do prédio. A visão de minha mãe chorando e sentindo-se mal foi suficiente para que eu entrasse em uma discussão da qual eu não sabia sequer o motivo (fiquei sabendo depois, claro). E fui em direção ao jovem, com o dedo em riste e um tom de voz irritado:
- Se acontecer algo com minha mãe você está perdido, cara! É melhor se retirar antes que fique pior para o seu lado...
E enquanto eu dava uns três passos largos em direção ao jovem, ele recuou quatro passos curtos, cabisbaixo.
Eles se foi com a esposa.
Minha mãe disse que estava tudo bem, que eu não precisava me preocupar. Eu tinha que ir embora com minha esposa e foi ela que resumiu a cena:
- O cara era enorme, bem mais alto que você, mas na hora que você foi em direção a ele apontando o dedo parece que ele ficou pequenininho.

Uma madrugada em Formiga, subíamos um morro no Bairro do Quinzinho, eu, Amarildo e Ivan, indo para uma festa na casa do Chiquinho. Eu tinha 21 anos. Em Formiga tínhamos o hábito de, em altas horas, andar no meio da rua. Um fusca sobe o morro em alta velocidade e tira fina de nós três, que em uníssono respondemos com palavrões. O fusca para mais adiante e nós três nos imobilizamos:
- E agora? – pergunta o Ivan, já temeroso.
- Calma! – respondo. – Ele quase nos atropelou.
E como era um fusca, eu jamais esperava que o motorista que saía do carro tivesse 2,10 m. O Amarildo ficou mais receoso ainda e o Ivan nem se moveu. Os dois eram baixos e o “gigante” que se aproximava intimidava mesmo. Brigar era a última coisa em que pensava. Já ensaiava as frases pedindo desculpas, mesmo sabendo que, se o gigante fosse encrenqueiro, estávamos perdidos. Seria uma surra sem dó nem piedade e não sabíamos se havia mais “gigantes” no fusquinha. Ou corríamos; melhor ser um covarde ileso do que um corajoso quebrado.
O grandalhão se aproximou de mim (ele veio mesmo em minha direção, deve ter pensado que era melhor acabar com o maior dos três primeiro), com passadas largas. Como disse, era um morro, e ele vinha de cima para baixo, fazendo que eu ficasse quase um anão diante dele.
A luz (naquela época, as lâmpadas incandescentes não iluminavam a rua cem por cento) mostrou o rosto do grandalhão e eu disse:
- Dilermano, como vai? – e estendi a mão.
Era um alívio que o grandalhão fosse um conhecido. E o Amarildo suspirou, também aliviado.
Ele não apertou minha mão. O cheiro de cerveja era forte, temi que não me reconhecesse.
- Você que me xingou de fdp?
- Ah, Dilermano – eu sabia que repetir o nome dele era uma vantagem minha – você quase atropela nós três aqui. – ele ainda estava com a cara fechada – Mas, tudo bem, foi só um desabafo, não foi com intenção de ofender ou de procurar encrenca.
Ele sabia que eu era surdo, ele conversava muito com minha mãe e meu tio. Então ele me abraçou (realmente me senti pequeno neste momento) e me deu uns cascudos de brincadeira, rindo e dizendo:
- Você é igual os ciganinhos: provoca os outros, mas na hora do vamos ver, tira o corpo fora.
Eu que não seria bobo de contradizer o que ele falava e fiquei calado.
Ele me apertou a mão, deu outro abraço (estava alto mesmo) e se afastou me apontando e rindo. Não sei como ele conseguia, mas acomodou aquele corpanzil todo no fusca e se foi.
Eu e meus amigos continuamos em direção à casa do Chiquinho.
O Ivan resolve fazer graça:
- Você perto dele ficou desse tamaninho, pequenininho...
- Pois agradeça aos céus que o pequenininho aqui conhecia o gigante, senão nós três estávamos amargando olhos roxos e dentes quebrados, viu?
O Amarildo manda o Ivan calar a boca, começa a rir sem parar, esticando os braços, mostrando as mãos que tremiam como vara verde...

Já com mais de 40 anos, trabalhando com os surdos, eu era um dos Diretores. Tínhamos empregados ouvintes, secretária e intérpretes. Numa manhã, ao chegar ao trabalho, a secretária informa:
- Ih, Jairo, o cano da água da pia quebrou e inundou o bar tudo. – o bar ficava no andar de baixo – A mulher do dono do bar já veio aqui e xingou todo mundo, está xingando até agora. – ela escutava a mulher reclamando no bar, no andar de baixo.
Não era o cano debaixo da pia e portanto não dava para arrumar sem ter que ir no bar, verificar como a água estava inundando lá.
- Terei que ir no bar. – eu disse.
A secretária me alerta:
- A dona do bar é muito chata. Vai encher o saco até falar chega.
Desci as escadarias e rumei para o bar. Realmente, o bar estava inundado e percebi a mulher se aproximando. Ela falava gesticulando, irritadíssima. O dono do bar se aproximou, ia falar algo, mas a mulher falava mais alto que ele.
Eu, quase em câmara lenta, dobrei a barra da calça e a manga da minha camisa social. Usava roupa social, mas sem gravata. E peguei um dos rodos que estava ao lado da mesa de sinuca e comecei a puxar a água. E disse, muito calmo:
- A senhora nos desculpe, não são os surdos os proprietários do imóvel e não podemos fazer um conserto sem antes solicitar permissão ao dono do imóvel. Não sabíamos que tinha um cano quebrado, mas vamos tentar resolver da melhor forma possível. Vou puxar a água para a senhora, não se preocupe.
A mulher ficou boquiaberta, imobilizada, o dono do bar ficou sem ação, enquanto eu comecei, realmente, a puxar a água. Então o dono do bar saiu de sua imobilidade, tomou-me o rodo e disse:
- Sr. Jairo, desculpe minha mulher. Realmente, o senhor não é culpado disso, o dono do imóvel é que tem que resolver este problema
E a partir deste momento ele me tratou com muita cordialidade, sempre me chamando de Senhor (ele sabia que eu era surdo e falava devagar). Verificamos o cano quebrado, no alto, do lado de fora. Disse que mandaria minha secretária ligar para o dono do imóvel naquele mesmo dia. A esposa do dono do bar abriu a boca com intenção de dizer alguma coisa, mas o marido foi categórico:
- Fique calada!
Quando voltei para o segundo andar, minha secretária me fitou com olhos arregalados.
- O que foi agora? – perguntei.
- O dono do bar está xingando a mulher dele de idiota para cima... Nossa, ele nunca tinha ficado bravo com ela...
Eu já ia me afastar, mas a secretária não deixou:
- Afinal, Jairo, o que você fez lá?
- Nada demais. Dobrei a barra da calça, arregacei as mangas da camisa e comecei a puxar a água...
A secretária riu muito.
- Você fez isto? Ah, não, eu queria ter visto essa...

Durante os anos que trabalhamos ali, nós, os Diretores surdos e os funcionários ouvintes, fomos tratados com todo respeito pelo dono do bar. Até mesmo a mulher dele, tempos depois, me cumprimentava, ainda que baixando os olhos, de modo tímido:
- Bom dia, Sr. Jairo!


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