quinta-feira, 16 de junho de 2011

Minha primeira professora, orelhas e coleguinhas

Minha primeira professora era brava de verdade. Era muito bonita, foi Miss Formiga, alta e loira. Jovem, conhecia os alunos, um por um, dando a todos a devida atenção. Ou os devidos puxões de orelha. Naqueles anos (1968), os professores puxavam as orelhas dos alunos. Davam nota zero. Escreviam bilhetes nos próprios cadernos dos alunos. E ninguém ficava traumatizado com isso. Hoje em dia se a professora esbarrar no aluno ou elevar a voz, estará sujeita a responder processo. Atualmente o ensino caiu muito, os professores não conseguem disciplinar seus alunos e temos até mesmo as desagradáveis notícias de alunos agredindo professores. Ídolos na minha infância, são hoje alvos de alunos (e até mesmo pais) que acreditam que os professores não podem nada, nem dar nota baixa, nem chamar a atenção, nem reclamar do mau comportamento do aluno.
Dona Wanda Rodrigues levou um mês para conhecer seus alunos e descobrir os que tinham um bom aprendizado, eram alunos exemplares e os que não conseguiam acompanhar os demais. E muitos levavam puxões de orelha. Eu lembro do Remaclo, irmão do João Nabão e do Roseléu, que sofriam muito com a professora. Mas, justiça seja feita, sofriam não devido às dificuldades na aula e sim por causa dos deveres de casa. O Remaclo vez ou outra não fazia os deveres e o Roseléu apresentava o caderno todo sujo, inclusive um dia a professora mostrou uma enorme mancha de gordura. O próprio Roseléu disse que estava comendo pão com manteiga quando fez o dever de casa. Se a gente não percebia se o puxão de orelha foi forte ou fraco porque o Remaclo era negro, com o Roseléu não tinha jeito. Branquinho como ele só, a orelha ficava vermelhinha. Antes que comecem a dizer "que absurdo!", "que horror!", "mete um processo nesta fera!", vamos em diante...
 A professora reservou uma mesa para os quatro alunos mais "adiantados". Nesta mesa, uma mesinha retangular, com quatro cadeirinhas, duas lado a lado e duas nas cabeceiras, sentavam o Alberto Jorge, a Fátima, eu e um outro que não lembro corretamente se o José Vicente ou José César. Eram os quatro que viviam a tirar nota 10 nas provas. A partir do segundo semestre, o Alberto Jorge (o Beto) ganhou a fama de craque em matemática e ficando quase sempre em primeiro lugar. Eu era melhor em português, mas como não era tão fera em matemática, ficava em segundo ou terceiro. A Fátima também era muito forte em matemática, mas não superava o Beto. Ali naquela mesinha, estas quatro crianças faziam todos os deveres com capricho, atenção e excelente comportamento. Quem me via no recreio não acreditava que aquele garotinho tão agitado, que vivia correndo por todo o pátio da escola, conversando com todo mundo era o mesmo que ficava caladinho na sala de aula.
No fim de um mês, a prova de português veio mais difícil do que esperávamos. Aprendíamos as palavras novas de acordo com os cartazes que contavam a história d'Os Três Porquinhos. Poucos dias antes da prova a professora havia "revelado" mais um cartaz com palavras difíceis, como "caldeirão", "acenderam", "lareira" e "chaminé". Aquela parte da história em que os porquinhos acedem o caldeirão da lareira porque ouviram o lobo mau no telhado, tentando entrar pela chaminé. O tempo foi curto para que aprendêssemos as palavras com mais facilidade e percebi que meus colegas de mesa estavam com mais dificuldade que eu com estas palavrinhas. Só que tocou o sinal, avisando que era hora do recreio. A D. Wanda avisou:
- Virem a prova e tirem a merenda. Aguardem um pouco que vou autorizar a saída para o recreio.
Então, ouvi (eu só fiquei surdo seis anos depois) a voz desesperada da Fátima:
- Jairo, deixa eu copiar sua prova! Não estou conseguindo fazer; meu pai é muito bravo...
Fiquei olhando o Beto tirar o lanche dele (eu não levava lanche) e fiz que não era comigo (mas não virei a prova).
Mas não se passaram nem dois minutos e ouvimos a voz estrondosa e brava da D. Wanda:
- Fáááátiiimaaaa! O que você está fazendo, menina! Você está copiando a prova do Jairo Fernando!
E antes de terminar a frase e sem sabermos como, ela já estava ali do nosso lado, puxando as orelhas da Fátima. A menina deu um berro, começou a chorar, não sabia onde enfiar a cara. Nós outros três da mesa, imóveis como estátuas, olhos arregalados, vimos a professora pegar a prova da Fátima e colocar um zero enorme no alto da folha. Foi nesse momento que eu pensei que estava frito, que minha prova também ia ganhar um zero (algo que nunca ocorreu na minha vida de estudante) e que minhas orelhas iam conhecer a força da mão da D. Wanda. Ela me fitou, a mão tremulando. Ela tinha um carinho especial por mim e devia ser um dilema fortíssimo.
- Mas, Jairo Fernando, eu falei para virar a prova! Ah, não, Jairo Fernando!!
 Ela fitou meus olhos, triste e enraivecida ao mesmo tempo. Mas, eu não desviei os olhos. Acredito que meus olhos estavam tristes. Não considerei errado o que eu fiz. E a mão que vinha para minhas orelhas não veio. A D. Wanda provavelmente compreendeu que eu não fiz por mal. Que eu estava só ajudando a coleguinha em dificuldade.
Foi a única professora que me tratou por Jairo Fernando.
A Fátima levou um zero, ficou sem recreio no dia, levou advertência no caderno. Mas, ela nunca deixou de me cumprimentar. Aos domingos eu ia à missa e ela estava lá, com o pai e me cumprimentava numa boa. O pai dela participava da missa, fazendo o recolhimento das contribuições, levando os itens da eucaristia e cantando no coral. Ele era sério, tinha uma cara de bravo mesmo. Tinha um aerowillys azul claro. Enquanto cantavam "a missa terminou, já nos vamos retirar, voltamos para casa com Deus no coração...", eu passava próximo a eles e a Fátima me cumprimentava:
- Oi, Jairo.
- Oi, Fátima.
O pai dela me encarava, nada dizia, mas me cumprimentava com aceno de cabeça. Mais velho, eu ficava matutando comigo mesmo: será que ele sabe que eu era em parte responsável pela filha ter tirado um zero na prova?

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