sábado, 30 de abril de 2011

Beco sombrio

Foto fonte: Google
Na minha infância as ruas de minha cidade natal ainda eram iluminadas por lâmpadas incandescentes, o que ocasionava partes escuras entre um poste e outro. Dois becos que davam para minha rua, só tinham postes de luz no princípio e no fim dos mesmos. Eram escuros, sem calçamento, com muros antigos, cheios de reentrâncias e grandes árvores, cujos galhos se debruçavam para o beco. Quando voltava da igreja, à noite, após a missa, tinha que passar por um destes becos. Eram dois becos que davam para minha rua (as pessoas identificavam estes becos pelos moradores, sendo o beco da D. Belinha de um lado e da D. Terezinha do outro). Diminuia o passo, esperando alguma outra pessoa que fosse passar por ali, para eu ir junto. Quando não surgia ninguém, eu ia a passos largos ou correndo mesmo.
O meu amigo João Nabão morava depois da curva da rua e sempre reunia uma boa molecada para brincar de pique. Como era muita gente, havia liberdade para correr em todo o quarteirão. Em uma noite, eu e o João éramos os últimos a ser "pegos" e todos os outros nos procuravam (cada um que o pegador tocava se tornava pegador também). Começamos a descer o beco da D. Terezinha e quando passávamos pela área escura do beco, onde havia uma reentrância de garagem, o João me cutucou:
- Olhalá... - mirando o canto escuro da reentrância.
Quase paralisado, fitei o vulto de um homem, negro, todo vestido de preto, de chapéu preto, agachado no canto da quina. A mão dele subiu vagarosamente para o chapéu, mas antes de qualquer outro ato, eu berrei:
- Corre, João!
Descemos o beco em desabalada carreira, assustados, com o coração aos pulos. Corremos em direção aos pegadores, que não entenderam porque corríamos para eles ao invés de fugir deles.
- Uai, vocês desistiram? - perguntou o Tonho.
- Não! - respondeu o João, resfolegando - Tem um homem agachadinho lá no canto da quina, todo de preto, de chapéu preto. Credo, Jesus Cristo, não passo mais lá... - e fez o sinal da cruz três vezes.
- Ahhh, mentira!
- Mentira nada, Tonho. Eu também vi. - eu disse, quase sem fôlego. - Vai lá então, já que não acredita.
O Tonho resolveu dar uma de corajoso, mas não sozinho:
- Vou sim. Quem vai lá comigo?
Ninguém se animou a subir o beco com ele. O Batista piora a situação falando:
- Nesta época de quaresma é quando aparece a mula sem cabeça.
- Mas, o que nós vimos é um homem preto!
- Então pode ser o negrinho do pastoreio.
- O negrinho do pastoreio não faz mal, ele ajuda a gente.
A conversa desencorajou qualquer um a ir lá no beco novamente. Durante muitos dias comentamos sobre o negro agachado na quina do beco. Eu tinha 9 ou 10 anos à época (ou seja, ainda ouvia) e este fato só piorou os momentos em que eu tinha que descer o beco sozinho. Ia a passos largos, olhando para a quina com o canto dos olhos. As sombras dos galhos das árvores tornavam tudo ainda mais sombrio. E muitas vezes o vento estalava os galhos das árvores, as folhas farfalhavam e eu descia o beco em desabalada carreira até chegar à parte iluminada.

Anos depois a prefeitura instalou lâmpadas mercúrio na cidade, os becos foram se modernizando, colocaram postes de luz também no meio, os lotes cheios de árvores deram lugar a modernas residências e passar por aqueles becos já não tinha mais nada de sombrio. Lembro que a quina da garagem continua lá, com um aviso pintado na parede: "Favor não fazer aqui de privada". E agora eu rio, ao lembrar que alguém fazendo ali de banheiro público, causou tanto temor à meninada da rua.

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