quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Surdos e a pronúncia de algumas palavras

Sou cem por cento surdo e falo normal. Mas, como eu não nasci surdo e só vim a perder a audição com 12 anos e meio, minha dicção é perfeita. Às vezes, falo muito baixo, ou muito alto. Justamente devido a não ter controle da tonalidade da voz é que, por instinto, comumente falo baixo, com receio de estar falando muito alto. Pronuncio errado, na maioria das vezes, as palavras em inglês, que fazem parte do cotidiano brasileiro, como playcenter, shopping, diet, design, iphone, etc.
Quando trabalhei, como terceirizado e junto com outros surdos, na gráfica da Empresa de Processamento de Dados de BH, os colegas se espantavam, porque eu não escutava nada, falava bem e um dos surdos, o Alexandre, ouvia parcialmente, mas não pronunciava as palavras corretamente.
Devido à minha curiosidade sobre tudo, uma das colegas me levou à sala de revelação das chapas de fotolito, me explicando o procedimento:
- A chapa é gravada através de fotolito. Depois, aqui no laboratório, utilizamos revelador, fixador e água... - ela então apontou para um balcão com diversos frascos e com um aviso logo acima. - Leia para mim...
- Fixador. - eu disse, pronunciando corretamente.
- O Alexandre fala "fichador" - ela riu.
Mais tarde, conversando com os outros colegas, ela me indagou:
- Porque você pronuncia a palavra corretamente e o Alexandre não?
- Por que eu já ouvi normalmente. Minha memória auditiva não se perdeu. O Alexandre, embora escute em uma porcentagem alta, não é capaz de diferenciar estes sons.
- Por isso que eu já corrigi ele algumas vezes, mas ele continua pronunciando errado.
- Para ele você é que está errada, pois não há um "quissá" na palavra "fixador".
Rimos bastante. Foi um dos momentos em que o pessoal que trabalhava com os surdos soube entender as enormes diferenças entre todos nós.
- E o Claudinei, ele é totalmente mudo. E por que obedece você e o Alexandre em tudo?
- O nível cultural dele é extremamente baixo. Como eu e o Alexandre vivemos nos dois ambientes, surdos e ouvintes, ele considera isto uma espécie de "autoridade", principalmente porque ele nos vê dialogando sem sinais. Já os outros surdos, que conversam com vocês também, mas usam sinais ou escrevendo, são considerados no mesmo nível dele.
- Se vocês dois mandarem ele fazer alguma coisa errada, ele fará? - perguntou um dos colegas, sério.
Eu ri:
- Pôxa, que pergunta!! Ele tem discernimento do que é certo e errado, mas dependendo do que mandarmos ele fazer, ele fará sim.
- Por exemplo??
- Se eu mandar ele pegar dinheiro na bolsa de uma das moças, ele não fará isso. Mas, se eu falar que ele deve levar um balde de água para a sala do chefe ou levar todo o serviço na mesa do Jorge para a expedição, ele fará.
- Está brincando? - perguntou o Jorge.
- Não. Ele acreditará justamente porque eu estou aqui conversando com vocês.
O Jorge estava com um arzinho de dúvida e eu fui lá, falei com o Claudinei para pegar todos os formulários na mesa e levar para a sala do chefe. Outro colega surdo já estava falando, com sinais que o serviço "ainda não está pronto", mas eu fiz um sinal de "espera" e ele riu. O Claudinei já estava para pegar os formulários, mas eu o impedi e disse que "não era para levar hoje, não".
- Perceberam que o Elisson não concordou com o que eu falei, mas o Claudinei, sim? - disse - É uma questão mesmo de nível cultural. O Claudinei é muito inocente.

Nos anos em que estudei junto com os surdos na Escola Estadual José Bonifácio, uma das ouvintes da sala me perguntou, curioso:
- Jairo, o que é "tachi"?
- Não tenho idéia. De onde você tirou essa palavra?
- A Dani sempre diz, quando vai embora, que vai pegar "tachi".
No mesmo instante entendi o que era:
- Ela quer dizer que vai pegar um táxi.
- Mas, táxi e "tachi" são palavras muito diferentes.
- Na verdade, não. O problema está somente na pronuncia do "xi".
Discorri sobre o porquê de eu pronunciar corretamente e a Dani não. De como temos dificuldades com palavras de outras línguas e de que o português é muito complicado para os surdos, devido justamente à necessidade de se ouvir para pronunciar corretamente as palavras.
Hoje, há um grande incentivo para que os surdos falem. Não importa se vão pronunciar razoavelmente o som correto das palavras. Já ocorreu campanhas insistindo para que o "mudo" de "surdo-mudo" seja definitivamente excluído. Os surdos, mesmo os que nascem com surdez profunda, não são mudos. Só não recebem estímulo suficiente para falar.


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