segunda-feira, 21 de maio de 2012

A surdez e o respeito às deficiências


De todas as deficiências a surdez é a única que não causa nenhum pesar. E por isso mesmo é a deficiência que mais sofre com o desrespeito. Mesmo o grupo mais radical fica constrangido se tem um cego passando, jogando sua bengala à esquerda e à direita. A turma que zoa com todo mundo fica em silêncio e abre passagem para o cego. Se for um deficiente físico, com muletas ou em sua cadeira de rodas, ocorre a mesma coisa. Ninguém fala nada, ninguém faz nenhuma piadinha infame. Dão passagem e pronto. Você vê estas pessoas que gostam de satirizar todo mundo em silêncio diante do cego pedindo ajuda para pegar um ônibus. Ninguém faz gracinha, ninguém coloca o cego no ônibus SC02 se ele solicitou ajuda para pegar o SC01. Se o deficiente físico pede ajuda, estendem a mão e auxiliam. Hoje, os ônibus já estão adaptados e recebem os cadeirantes sem necessidade de outros ajudarem, porque implantaram elevadores automáticos em todos os coletivos. Mas, quando vem um coletivo sem elevador, ou com o elevador enguiçado, há sempre braços fortes disponíveis para suspender o cadeirante. E a galera que zoa com tudo e todos não faz piadinha com o cadeirante, não coloca um chiclete no aro da roda, que serve para impulsionar a cadeira. Se o deficiente físico usa muletas, não dá um chutinho em uma muleta para o deficiente ficar sobre uma muleta só. Se o deficiente com muletas tem dificuldade para subir no coletivo, não fazem piadinhas do tipo “sobe pulando”. Nem com o cadeirante diante do elevador soltam uma algo infame tipo “levanta-te e anda!”, como disse Jesus".
Infelizmente, com o surdo é totalmente diferente. Ao ver um grupo de surdos conversando com sinais, a turma que zoa com tudo e todos começa a imitar os gestos dos surdos, terminando com o dedo em riste, ou com um top top top, ou com um círculo formado pelo indicador e polegar. E caem na gargalhada. Quando um surdo profundo, já conhecido desta turma passa, não faltam os gritos em voz alta: “ô, viado!”, ou “ô, filho da puta!”, “espera aí, seu palhaço!”! O surdo não se volta, claro, e tome gargalhada. Muitas vezes o surdo precisa de ajuda, por não estar entendendo as instruções do motorista para chegar a um lugar que ele perguntou antes, mas dificilmente ele encontrará alguma pessoa que o ajude. Eu mesmo já fui esquecido em sala de espera de consultório, mesmo tendo informado à recepcionista que era surdo. O médico chamou, eu não vi (nem ouvi, claro) e ele chamou outro. Quando ele tornou a chamar, chamou o próximo da lista, acreditando que eu tinha desistido. Só quando fui perguntar à recepcionista porque o médico não me chamava ela se deu conta que se esqueceu de avisar o médico que eu era surdo. Outro dia, no Banco do Brasil, com a senha de atendimento prioritário, no momento exato que fui chamado, um idoso surgiu e a caixa pediu para eu esperar. Atualmente uma divisória impede a visão dos caixas. Consequentemente o idoso foi atendido, eu não vi, a caixa começou a gritar meu número. O guarda se aproximou, e como ninguém se levantou eu saquei que era o meu número. Ele elevou a voz comigo (os surdos sabem perceber perfeitamente quando uma pessoa eleva a voz):
- A caixa está te chamando e você fica sentado aí?
A despeito de toda minha irritação, respondi calmo:
- Desculpe, mas ela mesma pediu para eu aguardar um pouco enquanto atendia um idoso. E se ela está chamando, o erro é dela, porque eu sou 100% surdo.
Justiça seja feita, a bancária pediu desculpas e quando eu estava saindo, o segurança também.
Vale o velho ditado: o que os olhos não vêem o coração não sente. A surdez não é uma deficiência visível, então ela não comove as pessoas. Não é a mesma coisa de um cego, com sua bengala, sua dificuldade para transitar pelas ruas, sua dependência para atravessar uma via. Ou o deficiente físico e suas muletas. Mesmo o cadeirante hoje não necessitando mais de ajuda como antes, vez ou outra ele precisa de ajuda para subir uma rampa íngreme ou passeio não rebaixado. O surdo anda normalmente, corre, joga bola. Não depende de ninguém para pegar e entrar em um ônibus. Mas, justamente por toda essa independência é a deficiência que não causa nenhum pesar em ninguém e na esteira, a mais desrespeitada de todas. Consequentemente é a que mais sofre com as zombarias. Como o problema do surdo é muito mais de comunicação social que de dependência, muitos se acham no direito de zombar sem mais nem menos. Poucos percebem que é uma deficiência muito complicada, principalmente no dia a dia, quando precisamos dialogar, sem falar nos momentos que precisamos “ouvir”, uma palestra, uma música, um filme que não tem legendas, o grito da torcida no estádio, o choro do filho bebê, o primeiro “papai” ou “mamãe” deste mesmo filho, a necessidade de ensinar ao filho as palavras do mundo, alguém que chama ao longe, alguém que pede socorro, uma peça teatral, um concerto, banda, orquestra, coral, uma conversa simples com um desconhecido, a voz da pessoa amada...

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