quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A porta do fim da vida

Quando nada mais existir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
nem o torpor do sono que se espalha
quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório...”

Eu estava barbudo e um tanto triste. Dias antes, conversei com meu amigo Antônio (conversamos até altas horas da madrugada) e falei sobre solidão e como a vida era complicada. Naquela tarde, saí sem dizer aonde ia, cansado de relembrar poesias. Deixei a poesia acima incompleta. Meu amigo Antônio então chegou e perguntou a minha mãe onde eu estava. Ela não sabia, eu não disse aonde iria. Antônio foi até o quarto e se deparou com a poesia. Ele lembrou da conversa de dias anteriores e associou minha tristeza à poesia. E pensou que eu estava escrevendo um bilhete de despedida usando uma das minhas poesias sombrias favoritas. Meu amigo ficou deveras preocupado e resolveu me procurar. Estava temeroso do que eu poderia fazer. O Antônio foi o primeiro amigo que aprendeu o alfabeto dos surdos e que me animou a enfrentar a surdez. A gente conversava muito e eu disse a ele que, como muitas pessoas que sofrem um grande revés na vida, já tinha pensado em suicídio. Meu amigo foi até a casa do Irineu, que morava na mesma rua, levando a poesia inacabada e disse:
- Temo que ele vá fazer alguma maluquice!
- Por causa dessa poesia aí?
- Você não está vendo? Está escrito “a arquitetar na sombra a despedida”... para bom entendedor, meia palavra basta.
- E aonde ele iria se suicidar?
- Sei lá! Acho que antes ele conversaria com algum amigo. Por isso que vim te procurar.
- Não vi ele hoje, não. Vamos procurar o Amaral então.
Os dois saíram e foram até a casa do Amaral. Formiga é uma cidade pequena, a casa do Amaral era um pouco mais longe, no bairro Engenho de Serra, mas em vinte minutos estavam lá. Ainda mais que meu amigo Antônio, preocupado, acabava gerando uma tensão maior. Os dois caminharam rápido e chegaram perguntando:
- O Jairo teve com você hoje, Amaral?
- Não. O que aconteceu?
Antônio repete toda a história, mostra a poesia inacabada e apoiado pelo Irineu, diz suspeitar que eu poderia fazer alguma loucura. Confabulam, perguntam-se onde eu poderia ter ido, com quem eu falaria antes de tomar uma decisão tão drástica. O Amaral lembrou do Evandro e os três saíram apressados. O Evandro morava no Bairro do Rosário, pouco depois do cemitério. Subiam a Rua do Rosário quando perceberam que o Evandro vinha descendo. Ele se espantou:
- Uai, que isso, todo mundo junto hoje? Só falta o Jairo.
- Não esteve com você? – perguntou o Antônio.
- Hoje não, por quê?
Mais uma vez o Antônio explicou o que temia. Mostrou a poesia inacabada, que o Evandro também levou a crer fosse uma forma dissimulada de despedir-se da vida. Ele perguntou
- Se vocês acham que ele vai cometer suicídio, porque vocês me procuraram?
- Achamos que antes de tentar qualquer coisa, ele vai conversar com alguém. No caso, um de nós, os amigos mais chegados.
- Essa teoria está meia furada... pois ele não esteve com nenhum de nós hoje. E se ele procurasse um familiar? – perguntou o Evandro.
Lembraram do meu primo e desceram a Rua do Rosário quase correndo. Antônio, Irineu, Amaral e Evandro especulavam também sobre algum outro amigo.
- Tem o Chiquinho, que apesar de ser um amigo mais recente, também é de boa conversa com ele.
- Vamos nos separar, então. – disse o Evandro, o mais prático da turma. – Amaral e Irineu passem na casa do Chiquinho e eu e o Antônio vamos até o primo do Jairo.
Dois foram para a casa do Chiquinho, no Engenho de Serra e dois para a casa do meu primo, no bairro Quinzinho. Praticamente já tinham circulado por quase toda a cidade de Formiga, preocupados comigo.
Meu primo nunca teve conversas sobre solidão, tristeza e amargura comigo. Por isso, caiu na gargalhada quando o Antônio explicou a razão de estarem me procurando.
- Deixa disso, gente! Meu primo não vai tentar suicídio coisa nenhuma!
- Ele esteve com você hoje? – perguntou o Antônio.
- Não, mas isso não tem nada a ver. Não acredito muito nesta sua tese, não.
- O problema é que ele sumiu, não encontramos ele na casa de ninguém. – repetiu a história das conversas amarguradas e mostrou a poesia.
Meu primo continuou achando graça de tudo aquilo. Mas, quando os dois estavam saindo, disse:
- Qualquer coisa, vocês me telefonam. – naqueles tempos, só existiam os telefones fixos.
Os dois saíram e logo encontraram o Amaral, Irineu e o Chiquinho, vindo em direção a eles.
- Nem precisa falar que não encontraram. E agora, gente? – o tom de voz do Antônio já era de desespero.
- Se ele vai tentar alguma coisa, o que ele vai usar? Arma ele não tem. – disse o Evandro.
- Cortar os pulsos? – perguntou o Irineu.
- Não creio! – respondeu o Evandro – Por conversas que tivemos, sei que ele não causaria ferimentos em si mesmo.
- Beber veneno? – sugeriu o Amaral.
- Teria que gastar dinheiro... – e riram todos.
- Saltar na frente de um carro, então! – sugeriu novamente, o Amaral.
- Conseguiria no máximo, ficar todo ralado. – respondeu o Evandro, atento – Os carros aqui em Formiga não transitam a mais de 60 km por hora.
- Pombas, então só se ele se jogar na frente do trem! – reclamou o Irineu.
O Antônio então deu um pulo:
- É isso! Lembro agora que ele sempre me fala que quando está em lugares altos pensa como seria cair dali.
- O que isso tem a ver com o trem? – perguntou o Chiquinho.
- Ele vai se jogar da ponte de ferro!

Ponte de Ferro - Formiga - MG

Os cinco saíram em desabalada carreira em direção à ponte de ferro, que fica próxima à Exposição Agropecuária de Formiga. Pareciam cinco maratonistas formiguenses. Começava a anoitecer quando chegaram à ponte. Perceberam que não havia nada, olharam as pedras lá embaixo, onde o rio serpenteava. Era uma ponte antiga, só permitia a passagem do trem. Uma pessoa podia passar caminhando pelo meio dos trilhos, mas era muito perigoso, não havia espaços laterais.
Irineu se arriscou a avançar um pouco pela ponte, tentando avistar melhor, mas estava anoitecendo e ele retrocedeu.
Preocupados, os cinco retornaram, quase que correndo, para o nosso bairro. Cada um falava uma coisa, tentando lembrar de lugares altos. Resolveram passar no bar perto da ponte do bairro Quinzinho, para tomar refrigerante. Todos com sede, cansados. Haviam feito uma verdadeira maratona pelas ruas de Formiga. Quando chegavam ao bar o Chiquinho berra:
- Olha o Jairo lá!!
Eu estava sentado numa mesa do bar, tomando uma cerveja tranquilamente, junto com o Rato. Vi, espantado, meus cinco amigos chegando juntos, todos me fitando.
- Tem alguma festa hoje que eu não tô sabendo? – perguntei, rindo.
- Você não ia se suicidar? – perguntou o Chiquinho, arrancando gargalhadas de todos, eu inclusive.
- Tô sabendo disso não, meu amigo! Que negócio é esse, Antônio? – perguntei, fitando meu amigo, que estava sério, o único que não riu da pergunta do Chiquinho.
- Você deixou uma poesia meio macabra lá no seu quarto... – respondeu ele, coçando a cabeça – Outro dia conversamos sobre a tristeza da vida, solidão... Você está com a barba por fazer... Estava meio triste... Não sei o que deu, pensei que a poesia era um bilhete de despedida.
Levantei-me e abracei meu amigo:
- Caramba, Antônio! Que imaginação! Fico emocionado com sua preocupação, mas essas idéias de suicídio foram há anos! Não passa pela minha cabeça morrer antes da hora não... Tava aqui tomando umas cervejas com o Rato, ele tá pensando em casamento. Deve ser o primeiro da turma a se enforcar.
Rimos todos, puxaram cadeiras, pediram cerveja e em volta da mesa fiquei sabendo de toda a história. Da correria deles por toda a cidade, procurando na casa de um e outro amigo, tentando adivinhar como eu me suicidaria. Eles explicaram que estavam preocupados sim. Se agora estavam todos rindo, a poucos minutos estavam tentando avistar meu corpo nas pedras do rio, abaixo da ponte de ferro.
- Vocês são incríveis! – eu disse, rindo – Aprontam cada uma!
- Você não pensou mesmo em suicídio, não? – perguntou o Evandro, sério, ainda meio preocupado.
- Não, colega! O Rato é testemunha que em nenhum momento a conversa foi sobre coisa tão triste. Falamos de casamento, mulher, a dificuldade que é entender as mulheres... e ainda assim querermos estar casados com elas.
E completei:
- Não tenho motivos para pensar em suicídio, amigos. Vocês são a melhor prova de que a vida tem muita coisa boa. Tendo amigos como vocês, vale a pena viver, surdo ou não.

lembra que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
entrar no acaso e amar o transitório”

A Solidão e Sua Porta


Quando nada mais existir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
nem o torpor do sono que se espalha
quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório...
lembra que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída
entrar no acaso e amar o transitório
Carlos Pena Filho

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