quinta-feira, 17 de março de 2011

O primeiro encontro

Como a gente se correspondia por carta, eu em Formiga, ela aqui em Belo Horizonte, resolvi ocultar o fato de eu ser surdo (era 1979 e correspondência só por carta! A internet, como a conhecemos hoje, surgiria uns 6 anos depois e a popularização de e-mail só ocorreria em mais ou menos 11 anos)
Tudo por uma experiência mal sucedida uns meses antes. Eu estava me correspondendo com uma menina de São Paulo, tudo ia às mil maravilhas, carta pra lá e pra cá. Até que eu resolvi revelar que era surdo. Contei, em poucas linhas, o que havia ocorrido comigo em 1973, minha perda auditiva, sequela da meningite. A menina nunca mais me escreveu!
Então, quando chegaram as férias e eu estava aqui em Belo Horizonte, marcamos de nos encontrar na Praça da Boa Viagem. Estava eu sentado, ansioso, aguardando a menina. E ela chegou. E sentou-se do meu lado e começou a falar direto:
- Que bom te conhecer. Eu gosto muito de ouvir músicas, sou fã dos Beatles, adoro a música Good Day Sunshine, estou quase conseguindo decorar toda a letra. Eu e minhas amigas estamos pensando em formar uma banda. Eu ganhei uma guitarra dos meus pais e estou aprendendo a tocar.
- Eu não te disse, mas eu sou surdo.
- Não tem importância. Nós poderemos ir escutar música na casa de uma das minhas amigas, eu combinei tudo com ela. Ela tem um disco dos Beatles, com as músicas mais legais, como Help! e Yesterday.
- Eu sou totalmente surdo.
- E você poderá conhecer meu primo, que já participou de um programa de calouros aqui em BH. Ele também estará na casa de minha amiga e cantará para nós. Sua opinião sobre o dom musical dele é importante, mas não seja muito crítico.
- Vou repetir novamente: eu não te disse, mas eu sou surdo.
O meu tom de voz saiu mais firme e então ela parou de falar. E me fitou espantada. E emudeceu totalmente. E começou a chorar. Levantou-se, disse apenas um “desculpe” e se afastou sem olhar para trás. Nunca mais eu a vi.
Eu fiquei sentado, sem saber se ria ou se chorava também.
Ela me escreveu. Lembrou tudo que ela disse, pediu desculpas pela gafe, falando tanto de música e eu  repetindo que era (sou) surdo. Ela realmente não ouviu o que eu disse, era o primeiro encontro dela também, ela estava muito ansiosa, queria muito me agradar. Tinha um discurso decorado e não ouviu mais nada quando começou a falar. Ela escreveu que naquele dia, eu podia dizer que era um ET, que era africano, que era um serial killer, que ela não teria escutado. Rimos disto tudo, através das cartas. Eu escrevi que eu tinha pensado que ela era meio maluca, que eu entendi corretamente, que ela estava falando de Beatles, de casa de amiga, de música, de um primo. Mas, que eu estava totalmente enganado pensando que ela tocava na banda da escola (“formar uma banda”). Que ela criava uma cigarra (“guitarra”). Que falou alguma coisa de vela (“combinei tudo com ela”). Que em BH estava fazendo um calorão (“calouros aqui em BH”) e que tinha alguma coisa muito irritante (“importante”).

E depois, como tudo nessa vida passa, este namorico através de cartas, também passou.

Publicado em 29/07/2008, no meu antigo blog.

Um comentário:

  1. Uau! Caí aqui por acaso e adorei este relato. Ótimo texto, interessante e engraçado!

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