quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O ensino de Libras e o português

Devido aos erros da forma de ensino no passado, a maioria dos Instrutores de Libras não sabe português. Os que ensinam Libras básica não enfrentam problemas, pois em sua maioria, os alunos ainda estão em formação escolar, ou não têm curso superior. Da mesma forma, os que ensinam Libras para crianças não enfrentarão perguntas do tipo: “o que é escrutínio?” Escrutínio não tem sinal próprio em Libras, assim como diversas outras palavras mais difíceis. Eu me lembro de alguns dos meus professores de Libras, reclamando justamente da falta de conhecimento da língua portuguesa, por parte dos instrutores. Algumas vezes, em coisas muito banais, como confundir o significado de palavras homônimas:
- O pato nada. – em português, a palavra “nada”, do verbo nadar.
- Pato nada – em Libras, com o sinal para “nada” como sinônimo de nenhum, vazio, sem valor.
Acesse o programa clicando AQUI
Infelizmente, erros de tradução para palavras homônimas é comum em diversos programas de tradução de Libras, como o ProDeaf, por exemplo (veja imagem). Porém, o programa é um dos melhores que existem e meu blog passará a contar com o tradutor de sites do ProDeaf, o WebLibras.
Outro exemplo:
- Você sabe o caminho para a casa de Pedro? –em português. Caminho, substantivo, itinerário.
- Você sabe caminho casa Pedro? – em Libras, com a palavra caminho utilizada como verbo (caminhar, andar).
A justificativa da maioria dos Instrutores de Libras é que estão ensinando Libras e não interessa o português. Enquanto para alunos do mesmo nível escolar ou inferior, isso não é um problema, para alunos com nível escolar superior, gera desconforto. Algumas das aulas de que participei como aluno, para formação de instrutor, geravam incansáveis debates, porque eu e alguns outros colegas, afeitos a muitos questionamentos, perguntávamos demais qual seria o sinal correspondente para uma ou outra palavra.
Certa vez, o instrutor reclamou:
- É aula de Libras! Esquece o português!!
Mas eu o questionei:
- Mas eu vou ensinar Libras para pessoas que falam e escrevem em português. Muito do que eu pergunto é porque eu sei que um aluno ouvinte vai perguntar. Preciso saber como agir quando não há correspondente em Libras para tantas palavras em português. Tem o sinal para revista (impresso), mas não tem sinal para revista (do verbo revistar).
O professor aceita os argumentos, mas muito a contragosto. Ele detestava ter que dar exemplos para palavras que, às vezes, ele também não sabia o significado.
O que muitos não querem entender é a necessidade de um melhor conhecimento de português quando o Instrutor de Libras ministra aulas para professores ou alunos de curso superior. Um aluno do Curso de Libras, que é professor, com mestrado, fica deveras decepcionado ao perceber que o instrutor não tem conhecimento do português, que o instrutor simplesmente não sabe o que significa “esporádico”. O professor tem amplo conhecimento das matérias, está aprendendo, mas não aceita muito bem que quem agora está lhe ensinando não sabe o significado de palavras básicas do português.
Também para os intérpretes, o Instrutor de Libras deve ter amplo conhecimento de Libras/Português. O intérprete vai lidar com estas duas línguas. Ele precisa saber que não há sinal para diversas palavras e que ele utilizará classificadores, evitando a repetição constante de palavras com datilologia. E que a datilologia deve ser utilizada quase que exclusivamente para nomes pessoais. A datilologia utilizada para palavras que não têm correspondente em Libras não ajuda se o surdo não tiver conhecimento de português. Intérpretes de outras línguas são profundos conhecedores de sua língua mãe e da qual interpreta. Isso é essencial e não pode ser diferente em relação à Libras/Português.
Eu ministrei aulas para professoras e era constante o questionamento de diversas palavras em português. Em uma aula, as professoras queriam tradução de músicas para Libras e eu pedi que escrevessem, tentassem em Libras e que me perguntassem os sinais que não soubessem. Uma delas perguntou o sinal para “natureza”.  Eu fiz o sinal de árvores, mas ela esclareceu que o contexto era outro:
- Não é essa natureza. – me mostrou a parte da música – “Moro num país tropical, abençoado por Deus / E bonito por natureza, mas que beleza!”
Interiormente eu ri, porque percebi que ela estava me testando. Ela não explicou o sentido da frase. Ela só disse que não era “natureza” de ambiente. Era uma forma de verificar se eu sabia contextualizar a frase.
- Ah, sim. Natureza aí quer dizer que o país tem essa beleza natural, sem artificialismos. Vamos utilizar o sinal de “normal”, que também é usado para “natural”.
A minha aluna, professora, percebeu que eu a fitava com um sorriso irônico, de quem tinha entendido o que ela pretendia. Ela desviou os olhos, mas outra professora elogiou:
- Pois então, Jairo, você entende bem o português e facilita estes esclarecimentos. Fica difícil quando debatemos com outros instrutores, pois eles dão um contexto errado a diversas frases.
Esta foi uma aula que debatemos profundamente sobre os aspectos do aprendizado dos surdos. Que só agora está começando a crescer, sendo alvo de estudos e novas ideias. Eu defendi os colegas instrutores que não conhecem o português, mas que são excelentes Instrutores de Libras. Porque estão ensinando a Libras básica, em que se aprende os significados das palavras em conjuntos bastante divulgados (os meses, os dias, os anos, os animais, as frutas, as profissões, etc). Expliquei que são estes instrutores que dão a base de conhecimento para todos, pois eles são profundos conhecedores das imagens/sinais. Sim, imagens... lembrei de uma colega instrutora que utilizava em suas aulas, grandes cartazes com imagens de diversos objetos . Não escrevia praticamente nenhuma palavra em português.
- Então, não há tanto problema assim.
- O problema são aulas junto a alunas como vocês, que são professoras, com curso superior e que não se contentam em aprender simplesmente o significado de uma figura/sinal. Debatem, questionam, querem saber o “por que” e o “como”.
Frases em Libras, textos em Libras, eram a maior dificuldade junto às alunas. Eu repetia constantemente:

- Palavra = sinal -> fácil. Frase = Libras -> difícil.
Frases simples que elas tinham a maior dificuldade para traduzir em Libras, tipo: “Meu carro pifou na viagem”. Elas se atrapalhavam com o “pifou” e “na viagem”. Eu esclarecia que em Libras havia a liberdade da narração pessoal e não era necessária a tradução literal. Que podia simplesmente traduzir em Libras para “Eu viagem. Meu carro quebrou”. Que era importante a rapidez de raciocínio para encontrar sinônimos para “estragou”, “parou de funcionar”, “motor morreu”.
Por isso acredito que é importante que Instrutores de Libras que dão aulas para professores, alunos com curso superior ou em faculdades, devem sim, ter um bom conhecimento de português.

Muitos dos instrutores não gostam de ser questionados quanto ao seu conhecimento de português. Para eles, o que vale é o conhecimento em Libras. Há também a crença, errônea, de que todo surdo pode se tornar Instrutor. Há muita divergência nestas questões, mas o debate está longe de ser pacífico. Muitos são radicais, acreditam mesmo que não há nenhuma necessidade do instrutor conhecer português, que ele só precisa ser mestre em Libras. Ora, mas se quem ensina, por exemplo, Inglês, necessita ser fluente também em Português, porque o Instrutor de Libras não? É um debate que ainda está engatinhando junto aos Instrutores de Libras. 

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