- O Amarildo quando bebe muito fica encrencando com tudo.
Não pense que ele encrenca só com você, não. Com a gente também ele adora
discordar de tudo. Não sei pra que...
Momentos depois, quando acompanho o Ivan até a entrada da
mata, onde ele ia tentar matar algum pássaro para o almoço:
- Não deixa o Edson fazer o arroz de novo, não, senão vai
ficar uma porcaria de novo.
- Tá, ta... eu faço junto com ele. O problema ontem é que
colocamos muita água.
- O Edson não sabe cozinhar coisa nenhuma...
Ele entra mata adentro, eu volto para a casa. Eu e o Amarido
resolvemos jogar baralho, do lado de fora da casa, aproveitando o sol.
- O Ivan só sabe reclamar e não faz nada para ajudar. –
reclama o Amarildo.
- Ele foi ver se caça alguma coisa para o almoço.
- É, mas só foi porque o Edson disse que ele devia ajudar em
alguma coisa.
Estas situações sempre me constrangeram um pouco. Porque eu,
muito amigo de todos os três, tinha que “ouvir” calado cada um reclamando do
outro. Por conseguinte eu jamais ampliava as reclamações de um e outro. Se
algum deles pensava que eu iria repassar a reclamação ao outro, estava
enganado, porque eu me mantinha neutro. Eu não reclamava de nenhum deles,
aliás, na maioria das vezes, os defendia dos outros, dissimuladamente, usando a
palavra “nós”. Claro, imaginava que eu também entrava na roda, com algum deles
reclamando de alguma coisa minha.
O Walter chegou meio-dia e meia, trazendo pão, sardinha e um
frango abatido. Eu e o Amarildo estávamos exaustos do jogo, “burro”, que ele
chegou a estar ganhando de 6x3, eu fiz 6x6, empatamos mais uma e ele parou.
Rimos, com o Edson, Ivan e Walter do lado, querendo o desempate, mas o Amarildo
disse:
- Paramos por aqui. O empate é a paz entre os adversários.
- Só até a próxima disputa. – respondi, entre gargalhadas do
pessoal.
O almoço saiu melhor, porque eu não deixei que colocassem
tanta água como no dia anterior. Comemos, acompanhado do que sobrou da galinha.
O Ivan reclamou que a galinha já estava meio perdida, mas comemos assim mesmo.
Tanto que o mesmo Ivan colocou mais comida e pegou mais pedaço de galinha. O
Edson:
- Olha a vontade do Ivan, comendo a galinha perdida...
- Galinha perdida? Nós já encontramos o melhor caminho para
ela!! - eu disse, arrancando gargalhadas do pessoal.
A tarde estávamos na parte da frente da casa, conversando,
bebendo e fumando. O Edson estava com o violão. São momentos complicados, pois
não tem como eu participar. Até que eles começaram a cantar músicas religiosas,
pois participavam do Grupo Jovem e organizavam a Missa dos Jovens. Algumas
músicas eu acompanhei; “Senhor, faze de mim um instrumento de sua paz; onde houver
ódio que eu leve o amor;...”, “o Senhor me chamou a trabalhar, a messe é grande
a ceifar, a ceifar o Senhor me chamou, Senhor aqui estou, Senhor aqui
estou”..., “pão e vinho que é o próprio Cristo, nessa mesa Senhor nós te
ofertamos”, “Glória, glória, aleluia, glória, glória, aleluia, louvemos o
Senhor...”.
O pessoal se espanta:
- Como você conhece estas músicas tão bem?
- Eu e meu primo íamos mais à Missa dos Jovens do que na
Missa das Crianças. Essas músicas eram as mais cantadas. Como eu já disse,
minha memória auditiva é excelente. E mesmo lembrando só partes da música, eu
procurava a letra completa e decorava.
- Seu primo canta na Missa dos Jovens até hoje.
- Nós tínhamos uns 10 anos, mais ou menos, quando ele ia à
Missa dos Jovens e soltava a voz cantando “Jesus Cristo”, do Roberto Carlos. –
foi uma música que tocou muito nas Missas, e também, “A Montanha”. – Eu não
tinha o mesmo entusiasmo do meu primo e não cantava nada.
- E da Missa das Crianças?
- Tem aquela da Primeira Comunhão: “chegou o dia da querida
festa, chegou a hora em que vamos comungar, a inocência brilha em nossa testa,
queremos sempre a Jesus amar...”
O Edson diz “isto!” e acompanha com o violão.
Eram os tempos em que a maioria dos jovens eram católicos. O
Ivan era ex-seminarista, o Edson e Amarildo participavam ativamente do Grupo de
Jovens, não só na paróquia, mas também em atividades externas, como visitas ao
Orfanato, Asilo e Hospitais. Anos depois Amarildo e Ivan eram quase ateus. Eu,
não gosto de muita coisa da Igreja Católica, mas ainda valorizo muito os seus
dogmas.
Cantamos mais algumas músicas. Principalmente que o pessoal
achou interessante eu acompanha-los na cantoria.
- A Missa das 7 horas da manhã era daqueles homens sérios,
que levavam os Estandartes de Cristo.
- Lembra de alguma música deles?
Eu entoei, engrossando a voz:
- “Vamos todos a casa de Deus, do Deus que alegra a nossa
vida, a Igreja é a imagem dos céus, nós somos a família reunida”. – o pessoal
riu muito da minha entonação.
Só o Edson conhecia esta.
Fonte: Google |
A noite foi tranqüila. O frango abatido era muito mais fácil
de preparar do que a galinha. Jantamos e conversamos bastante.
O Walter ficou curioso:
- Jairo, como é que você tem esse nível de informação tão
elevado?
- Ué, eu leio muito. Porque o espanto?
- Você não percebe, mas a gente fica admirado, porque você é
surdo e muitas vezes sabe mais do que nós aqui, que ouvimos normalmente.
- Bom, eu fiquei surdo e como conseqüência da surdez, perdi
muito o contato externo. Quando morei com minhas irmãs em BH e estudava de manhã, as tardes eu
lia e escrevia muito. Aqui em Formiga, sim, eu ainda tinha mais amigos de
futebol, natação, rua... Mas, não deixava de ler. Acho que minha frustração por
não ter continuado os estudos me levava a devorar pilhas de livros, revistas,
jornais. Só tem 2 anos que trabalho na gráfica. Mesmo assim, nos fins de semana
meu maior divertimento ainda é ler.
- Tem uma memória muito boa, pra lembrar de tanta coisa. –
riu o Ivan.
No domingo de manhã, arrumamos tudo e resolvemos voltar
logo. Fizemos o caminho de volta avacalhando e rindo, como sempre. Paramos na
casa do Edson, onde a avó dele não estava acreditando, de jeito nenhum, que eu
era surdo. O Edson ficou enchendo minha bola, a tia e os avós dele passaram a
me dar toda atenção. Eu tinha falado antes que queria café, porque o café que o
Edson fazia lá na roça era ruim demais. Não tinha café.
- Não tem problema. Vamos indo, pessoal. Estou doido para
tomar um banho... estamos parecendo os cinco porquinhos...
Nem pensar. A avó do Edson fez questão de preparar café,
praticamente obrigando a gente a esperar.
O avô do Edson conta:
- O pessoal da outra roça passou aqui e disse que a minha
casa da roça tinha sido invadida por um monte de jovens... armados com uma
espingarda.
Nós rimos muito.
(Fim)
Abençoado Jairo!
ResponderExcluirMuito mais que amigo!
Não estão mais entre nós, meu vô, vó e Dinha! A roça não existe mais! Dos amigos, guardo as boas lembranças, momentos como o que relatou!
ResponderExcluirRapaz a saudade é grande!
Que bom proporcionar estas boas lembranças, Edson. Fiquei emocionado ao lembrar dos seus avós, da sua tia e o enorme carinho que demonstraram por mim. Mas, o ciclo da vida é esse, né? Todos passaremos...
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