Eu e meu primo estávamos
cantando músicas de carnaval. Eu cantei:
“Tava jogando sinuca, uma
nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo,
dizendo pro povo
Que o filho era meu.
Toma que o filho é seu,
olhalá
Leva o que Deus lhe deu!”
Meu primo gostou e como
sempre, quando ele gostava de uma música ele se empolgava e ficava cantando a
música até falar chega. Tinha uma voz poderosa e minha tia o ouviu lá do
quintal. E gritou de lá mesmo:
- P.H.!!! Não pode cantar
essa música!!
Era o tempo em que os filhos
(e sobrinhos) obedeciam às ordens dos adultos sem contestar nada. Nem eu, nem
meu primo sequer perguntamos “porquê?”. Paramos de cantar imediatamente. Em voz
mais baixa, meu primo desconta em mim:
- Ih, Jairinho, tá vendo o
que você aprontou?
Eu só fiquei no “mas, mas,
mas...”, mas não tinha argumento algum para contestar a reprimenda da minha
tia. Eu devia ter uns dez anos à época e meu primo, nove. Só muitos e muitos
anos depois eu fiquei pensando porque minha tia disse que não podia cantar
aquela música. Era uma música de carnaval, cantada nos salões onde íamos
brincar o carnaval.
Ficava matutando comigo mesmo
que minha tia Madalena reclamou da música porque falava de sinuca. Eu e meu
primo não pegamos em taco de sinuca antes de 16 anos. Era proibido para nós,
moleques ainda, entrarmos em bar para jogar sinuca. Não, depois eu dizia, não
deveria ser isso. Então, eu acreditava que era o fato da “nega maluca” ter um
filho que dizia ser “meu”. Os princípios religiosos de minha tia eram bastante
rigorosos, o suficiente para considerar um absurdo que o filho cantasse uma
música que alegava ser ele pai solteiro, ainda por cima com uma “nega maluca”.
Hoje, isto é realmente engraçado, principalmente que na época eu não entendia
tanto assim a mensagem da música. Eu e meu primo, na verdade, só achamos a
música engraçada. Tanto que meu primo gostou do “olhalá”, que repetia nas duas
frases finais e não somente em uma.
Minha tia Madalena faleceu há
cinco meses.
Há uns quatro anos atrás,
estava com minha irmã mais velha em Areias, no sítio de minha outra irmã. Nós
descemos pela estrada asfaltada, rumo a um sítio dos familiares do meu cunhado,
marido da minha irmã mais velha.
Lá conversamos com todos, eu
conhecia os familiares do meu cunhado, todos sempre me trataram muito bem.
No portão, minha irmã estava
conversando com o pai do meu cunhado, o Sr. L. Minha irmã me contava a
conversa:
- O Sr. L. está falando que
na mata lá na frente, tem um pântano.
- Ele ia muito lá quando era
jovem.
Minha irmã gargalha
alegremente e me conta:
- O Sr. L. está falando que
ele e os amigos iam lá caçar jacaré. – e riu novamente.
Eu li direto nos lábios do
Sr. L.
- Você não acredita? –
indagou ele, indignado.
Minha irmã, ainda com o riso
estampado na face, explica:
- Não, Sr. L., eu acredito
sim. É que eu achei engraçado; imaginei agora o senhor caçando jacaré.
O Sr. L. faleceu
recentemente.
O irmão de minha amiga desce
comigo do ônibus, na rodoviária de Formiga e me chama, educadamente:
- Jairo, você não está com
malas?
- Não, T. Por quê? – eu viajava
para Formiga em fins de semana e levava mochila com pouca coisa.
- Você poderia me dar uma
ajuda?
- Claro.
Eu ia para a R. 13 de Maio e
ele morava próximo. Pensei que era uma mala pesada e que ele estivesse pedindo
ajuda devido ao porte físico dele, pequenino. Mas, não era questão de peso e
sim de quantidade. Ele estava com duas malas e mais umas dez sacolas. De
repente pensei que nós dois não daríamos conta de tanta sacola. Demos um jeito
e fomos levando.
- Você deveria arrumar um
jeito mais fácil de fazer a mudança de BH para Formiga...
- Não tô mudando não... – e
riu, ao compreender que eu estava brincando.
Isto ocorreu há mais de
trinta anos e só tive notícias dele há poucos dias, então com problemas no
coração e na fila para transplantes.
Ele também faleceu
recentemente.
Quando as pessoas se vão,
desencadeiam lembranças de coisas simplórias do nosso viver. Percebemos o quão
pequenos somos diante da vida. Tão frágeis somos, diante da morte. Uma música
de nega maluca, um jacaré, sacolas em excesso, são coisas tão simples que
fizeram parte da vida de diversas pessoas, inclusive da minha. E percebemos que
as pessoas podem marcar nossa vida com coisas banais, simples, mas que
justamente por isso, marcam para sempre.
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