- Vamos chamar o Jackson.
- Que Jackson?
- O Japonês, cara. Você já
bebeu muito, heim?
- É que a gente chama ele
mais de Japonês que de Jackson. Onde ele mora?
- Ali na favela mesmo. Só que
mais para dentro.
O Niltinho comprou uma
garrafa de pinga e adentramos a favela. Viramos por diversos becos, eu comecei a
rir:
- Não sei mais como voltar...
Na casa do Japonês a irmã
dele informa que ele estava num terreiro. Eu só peguei a palavra terreiro e o
Niltinho complementa:
- Num terreiro de pai de
santo ali na frente.
- Nós vamos lá?
- Por quê? – riu o Niltinho –
Tá com medo? Vou levar esta pinga para ele.
- Não. – respondi
tranquilamente.
E dobramos mais alguns becos
até chegar em um casebre com entrada lateral. Por ali entramos e quando nos
aproximamos do quintal, ainda que surdo, senti o barulho dos tambores. Já no
quintal, havia uma roda de dança, algumas mulheres de branco e o pai de santo,
com o Japonês do lado. Também era possível ler o “ôôôôô” nos lábios de todos os
cantadores.
Ainda que meio afastados, eu
e o Niltinho chamamos a atenção do pai de santo, que se voltou para nós. Ele se
aproximou, o Niltinho entregou a garrafa de pinga, mas o pai de santo se virou para mim:
“Olá, Jairo. Ainda pensando
em partir desta para a melhor?”
Fiquei petrificado. Ele
“falou” comigo usando a língua de sinais. Não usou o alfabeto-manual, que
era o que meus amigos Niltinho e Japonês sabiam. Inclusive, ele sabia o sinal
que identificava meu nome.
Ainda que com o coração
disparado, em vias de entrar em pânico, respondi só com sinais, sem voz: “Não,
estas idéias ficaram para trás.” Os olhos do pai de santo me fitavam profundamente, olhos vermelhos de bebida. Os meus também estavam vermelhos por causa da cerveja. Foram alguns segundos assim, nos fitando, olhos nos olhos.
Momentaneamente pensei que
meus amigos falaram com o pai de santo que eu era surdo e ele sabia a língua de sinais (naqueles anos não era chamada de Libras). Também pensei que eles
contaram uma ou outra história de minha vida para ele. “Então, você percebeu
que a vida vale a pena ser vivida, independente de como estejamos fisicamente?”
Balancei a cabeça afirmativamente. Ele se voltou repentinamente para o
Niltinho, agradeceu pela garrafa de pinga e voltou para o meio da roda de
dança.
O Japonês veio até nós e
saímos os três dali.
- Que foi aquilo, Jairo?
- Aquilo o que, Japonês?
- O que você estava
gesticulando com o pai de santo!
- Essa é boa! Vocês dois
falam de mim para o pai de santo e ficam perguntando o que foi... Claro que ele
sabia conversar com surdos e sabia que eu era surdo.
- Eu que digo “essa é boa”,
Jairo. Nunca falei de você para o pai de santo. – disse o Niltinho.
- E eu... – riu o Japonês –
posso dizer que já disse que tenho amigos deficientes, você surdo e o Arnaldo
paralítico. Mas, nunca disse seu nome, sequer disse como você era, baixo, gordo
ou se usava óculos.
- Vocês dois estão querendo
me assustar. Eu bebi muito e estou meio alto, não acredito em nada disso.
O pai de santo até poderia
saber a língua de sinais, poderia ter percebido antes o Niltinho usando o
alfabeto dos surdos comigo e deduzido que eu deveria ser o "Jairo". Mas, eu jamais esqueceria que o pai de santo usou o
sinal que me identifica junto à comunidade surda. E este sinal, nenhum dos meus
amigos sabia.
Em relação às religiões eu sempre respeitei todas. Sou católico, não praticante, e sei que os católicos taxariam de milagre fosse um padre no lugar do pai de santo. Da mesma forma, os evangélicos considerariam algo dos planos de Deus, se fosse um pastor no lugar do pai de santo. As pessoas aceitam facilmente como de Deus o que envolve sua religião e do diabo o que envolve as outras religiões, principalmente se as outras religiões forem afro-brasileiras. O respeito às crenças diferentes da nossa é de extrema importância para a paz neste mundo.
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